Tela de Edvard Munch.

Aos militantes que aceitam a tarefa de construção organizativa territorial, nas periferias, tendo sido eles criados ou não nelas, cabe desenvolver a capacidade de perceber as especificidades de cada espaço e as questões pertinentes a eles. Por Gustavo Moura

Por dentro e por fora é uma série de artigos de debate sobre as lutas e os movimentos sociais, da iniciativa conjunta de Paulo Arantes e do coletivo Passa Palavra. Série aberta a um amplo leque de colaboradores individuais, convidados ou espontâneos, mais ou menos empenhados (ou ex-empenhados) nas lutas concretas, que ajude a aprofundar diagnósticos sobre a sociedade que vivemos, a cruzar experiências, a abrir caminhos – e cujos critérios seletivos serão apenas a relevância e a qualidade dos textos propostos.

Tela de Edvard Munch.

Mesmo num tempo em que o pensamento anda tão em baixa e em que o engajamento político fora das raias do reformismo nos absorve tanto, dada a desproporção entre a quantidade de tarefas e o número de militantes para realizá-las, um convite à reflexão é bem-vindo. Principalmente quando vemos inaugurar a série “Por dentro e por fora” uma análise bastante rica, feita pela Carolina Malê [1]. E isso quase concomitantemente à publicação, no mesmo meio, do texto “Entre o fogo e a panela” [2], pelo coletivo do Passa Palavra, também muito instigante. Ambos os textos servirão de pano de fundo às linhas que seguem.

Esse último, ao caracterizar e ao apresentar as origens dos “inimigos internos” da classe no âmbito dos movimentos populares, que é o que interessa aqui, enfatiza como fatores degenerativos de nossas organizações o corporativismo; o descolamento entre “dirigentes” e “base”; o centralismo autoritário, decorrente da monopolização de funções e das tarefas de negociação e articulação política na mão de poucos; a criação de sistemas de financiamento que minam toda e qualquer autonomia; a especialização de funções; a proletarização e a hierarquização decorrentes de mecanismos de “liberação” de militantes. Enfim, todo um conjunto de processos que os autores designam sinteticamente por burocratização, a qual leva ao esvaziamento político dos espaços coletivos e à perda do horizonte emancipatório, que deveria impregnar cada decisão, cada instância, cada luta que construímos e travamos. Ao contrário; a manutenção de um aparato organizativo opressor e das pequenas posições de poder em seu interior se torna o objetivo último de muitas das organizações que se pretendem revolucionárias.

No mesmo sentido, ao mencionar a “esclerose” da esquerda, Carolina Malê denuncia que nossas lutas (“previamente ajustadas no limite da negociação”), símbolos, espaços de formação, toda a dinâmica organizativa se convertem, cada vez mais, em mero simulacro.

A essa lista de fatores de degeneração das organizações eu acrescentaria, brevemente, o patrimonialismo e o pragmatismo imediatista (muito relacionado ao caráter predominantemente imagético e midiático dos movimentos populares e de suas estratégias). Num contexto em que somos muito poucos, qualquer esforço organizativo nascente exige muita dedicação e sacrifício; isso faz com que os militantes que o empreendem tendam a se sentir donos daquilo que ajudaram a construir, e busquem consolidar privilégios. Acreditam que eles têm mais direito sobre a bandeira da organização do que os que chegaram depois ou que despenderam menos energia. O mesmo ocorre com aqueles que estão há mais tempo numa organização; ao invés de aproveitar sua história e experiência a favor do conjunto de militantes, transformam-nas em meras posições de poder. Isso contribui para que a organização se engesse, perca a capacidade de se renovar e se feche sobre si mesma.

Dado o caráter totalitário do capital, tudo compete para que as organizações se pautem por sua gramática – por exemplo, com medo de serem esmagadas em experiências locais, e necessitando de capacidade de mobilização, se lançam a uma corrida ensandecida e imagética por crescimento a qualquer custo, cuidando apenas dos aspectos “quantitativos” da luta. Com isso a base social dos movimentos passa a ser tida como número, pernas e gargantas para serem levadas daqui para lá; torna-se então necessário criar uma organicidade extremamente centralizada, hierarquizada e burocratizada, para manter essa massa sob controle, e supostamente garantir a “coerência política” e a “unidade interna” da organização, que se tornam meros jargões.

Diante de tantos perigos e numa conjuntura tão desfavorável como a que vivemos é que passa a imperar o pragmatismo; tudo é para ontem e todo tipo de barbaridade se justifica em nome de uma suposta “revolução”, cuja construção se encontra pronta e acabada na cabeça de meia dúzia de dirigentes. Ninguém discordaria que hoje não é possível escapar às garras do capital, mas isso não justifica que as organizações lidem com suas propaladas “contradições” internas do pior jeito, sucumbindo a elas em nome de um mais ou menos sofisticado “materialismo” ou simulando uma autocrítica. Daí a necessidade de refazer as análises de conjuntura e repensar as táticas e estratégias que estão levando ao pior tipo de derrota: a que acontece por integração ao capital, por perda do horizonte revolucionário, ao mesmo tempo em que as organizações ou agonizam, ou se consolidam e se fortalecem como instrumento de classe… só que da classe dominante.

Outro importante aspecto do texto da Carolina Malê é a crítica a uma leitura dogmática e tosca acerca da composição da classe trabalhadora, segundo a qual a classe é algo dado, imutável, acabado, encontrada vestindo macacão [fato macaco] azul no chão-de-fábrica de uma metalúrgica. Essa visão tradicional ignora que a classe é algo que pode se constituir ou não, e que essa classe tem por base o lugar que se ocupa na produção, mas também dimensões simbólicas, culturais e sua prática política real e cotidiana. Em todo caso, seguramente não pressupõe a posse de carteira de trabalho assinada… E nesse mesmo sentido, além dessa tosca visão que despreza enormes contingentes populacionais sob o rótulo de “lúmpem-proletariado”, é preciso pôr de lado as leituras estreitas acerca das relações de classe como uma simples relação de exploração no interior da fábrica.

Aqui mais uma vez o texto de Carolina Malê avança, ao focar as periferias urbanas como espaços de construção organizativa, sem com isso cair em mera retórica ou em mistificações. Aos militantes que aceitam a tarefa de construção organizativa territorial, nas periferias, tendo sido eles criados ou não nelas, cabe desenvolver a capacidade de perceber as especificidades de cada espaço e as questões pertinentes a eles, a disposição em aprender com as formas de organização neles existentes, que muitas vezes desprezamos ou não conseguimos enxergar, a sensibilidade para perceber o que não é dito e para travar contato com os diferentes imaginários que são ali gestados, a paciência para aceitar a lentidão dos processos de maturação organizativa dessa natureza, e a firmeza para se lidar com as derrotas e a impotência diante de tantos inimigos. Uma série de disposições que são impensáveis no interior de organizações que não conseguem perceber a relação que existe entre suas práticas, estratégias e estruturas, e o horizonte revolucionário que elas sustentam.

Ao analisar os atuais desafios e as dimensões necessárias da intervenção político-organizativa na periferia, Carolina Malê faz bem em chamar a atenção para o inominável sistema prisional, que determina a vida de milhões, de ambos os “lados do muro”, e para as questões do patriarcalismo e do racismo. Sem cairmos em lugares-comuns, poderíamos também falar de intervenções políticas sobre pautas mais óbvias (onde também se manifestam enfaticamente aquelas trazidas pela companheira), como os despejos, a precariedade dos ditos “serviços sociais” – saúde, transporte, educação, etc. -, e mesmo a falta de acesso a “espaços de lazer”, que, por surpreendente que possa parecer para alguns, é sentida em muitos lugares como uma das principais carências, a qual pode abrir brechas para experiências auto-organizativas interessantes, como a tomada de espaços ociosos para a realização de atividades culturais e processos de formação política, que não dependam de negociações com o Estado, tampouco de suas migalhas.

Mas por que digo que mesmo aqui não chovemos no molhado? Porque na atual conjuntura, em que predominam o individualismo, a repulsa e o ceticismo em relação a qualquer esforço para luta coletiva, em que o Estado é infinitamente mais forte do que aqueles que o combatem e possui inúmeros meios para reprimir e para conter nosso inconformismo, em que se imbricam políticos, crime organizado, polícia, empresários (donos de construtoras, de empresas que gerem os “serviços públicos”, etc.), pastores, conselheiros tutelares ou de saúde ou qualquer coisa que o valha, lideranças comunitárias corruptas, ou seja, em que existe um imenso aparato estatal e para-estatal pronto para ser mobilizado ou permanentemente mobilizado contra nós, qualquer experiência de luta direta, independente do objeto de reivindicação e do seu alvo, é um desafio de fôlego.

Ilustração de Eric Drooker.

Como aponta Carolina Malê, enfrentá-lo exige de pronto que se abandonem os dogmatismos e outros vícios arraigados. Para citar apenas um: é preciso romper a idéia de militância como martírio ou como tarefa especializada, abolindo a figura do militante profissional. Para tanto, devemos criar práticas organizativas e formas de luta não completamente apartadas da dinâmica de vida dos militantes. Ao contrário, elas devem estar abertas a diferentes tipos de participação, que não exijam a entrega total e, por conseguinte, a “liberação” dos militantes, que não discriminem e desconsiderem aqueles que podem se dedicar pouco; enfim, que sejam desenvolvidas por pessoas que trabalham, que têm problemas pessoais, que ficam doentes, que necessitam de descanso e assim por diante. Junto com isso anda o esforço para se fugir à criação de estruturas organizativas e de formas de luta dispendiosas, que são sendas para a burocratização.

Mas paremos por aqui com essas considerações, até porque, muito mais importante que a formulação de princípios gerais é a sua expressão na prática. E isso é mote para outra prosa.

Notas:

[1] “Critérios de periferia”

[2] “Entre o fogo e a panela: movimentos sociais e burocratização”

3 COMENTÁRIOS

  1. Queridos/as do Passa Palavra!

    Não sei bem onde estão querendo chegar, mas “Aos militantes que aceitam a tarefa de construção organizativa territorial, nas periferias, tendo sido eles criados ou não nelas, cabe desenvolver a capacidade de perceber as especificidades de cada espaço e as questões pertinentes a eles”, como introdução para mais uma matéria verborrágica, é querer muito insistência de seus/suas leitores/as.

    Eu já estou desistindo… (a desistir).

    E um * junto ao nome do autor, explicando quem é e o que já fez na vida, também não cairia mal.

    Brjs, Eric

  2. Contrariamente ao Eric, acho este artigo muito bom. Ele resulta da experiência prática e é dirigido para a acção prática. Verborreia é escrever para não dizer nada, o que não é o caso aqui. Pode haver mais verborreia em cinco palavras do que num milhão.
    Aproveito para dizer que este conjunto de artigos que o Passa Palavra tem publicado de análise crítica da burocratizaçao nos movimentos sociais me parece uma iniciativa muito importante. Ou os anticapitalistas, militantes de base, são capazes de ler textos eventualmente longos e densos e são capazes de reflectir sobre problemas complicados; ou os burocratas e especialistas da política continuarão a monopolizar o pensamento estratégico e a dominar todos nós. A reflexão é uma conquista.

  3. Assino embaixo do João Bernardo, pros que desistem já existem milhares de sites com “matérias” em lugares de artigos como esse, que nao se encontra fácil. Não gostou da palavra, passe, porque tem mta gente a fim de pensar enquanto age.

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