À medida que a entorpecida fumaça entorpecedora tomava conta de meus pulmões, o inexplicável fantasma inexplicante violentamente expropriava meus pensamentos: “O que de fato acontecera àquele homem?”. Por Hugo Scabello de Mello
Parte II – Segundas Impressões
Desço no ponto final, o Largo da Pólvora: uma pracinha com jardim no estilo oriental, e um busto d’um imigrante japonês, sem absolutamente nenhum vestígio de pólvora. Já é quase noite, se não fosse horário de verão já seria, e ainda chove, não muito forte, mas a constância incomoda bastante. À primeira vista o centro de sampa me lembrou muito o centro de minha cidade: antigos prédios, em geral caindo aos pedaços, moradores de rua pedindo esmola e muito lixo. Uma grande diferença dessa região específica do centro, a Liberdade, é sem dúvidas os traços orientais: lampadas chinesas substituem os tradicionais postes de rua, lojas com placas escritas em ideogramas diversos, pessoas com olhos puxadinhos, algumas construções com arquitetura nipônica, como o lindo templo budista pelo qual passei ao descer a São Joaquim.
Procuro em minha mochila, tiro o papelete no qual anotei o endereço do albergue “Rua São Joaquim, 1022”. Um quilômetro abaixo, chegar parece fácil, o problema será a volta… São Joaquim é uma longa e íngreme ladeira que liga a Avenida Vergueiro com a Galvão Bueno, principal rua comercial da Liberdade. Passo por construções curiosas: um alto e largo prédio da Caixa Federal com o padrão de decoração, uma loja Maçônica cheia de seus bizarros símbolos e com altos pilares imitando pateticamente a arquitetura greco-romana, um feio e simplório, porém muito espaçoso salão onde funciona a igreja evangélica nipo-brasileira, o já citado templo budista e, depois de algumas quadras, finalmente o albergue. Uma placa bilíngue pendurada na porta o identifica: “Albergue Nissei. Camas para homens” diz a parte em português da placa, acredito que a parte japonesa diga a mesma coisa, mas daí é fé da minha parte – nada entendo destes hieroglifos orientais.
A porta dá para uma estreita e antiga escada de concreto. Subindo-a chego numa pequena sala de recepção. Um senhor oriental com uma daquelas longas, triangulares e ralas barbas típicas, já passado dos cinqüenta ou sessenta (é difícil para mim identificar a idade dele), ali me aguarda “Esperado você é, rapaz meu” diz-me ele, eu já havia ligado avisando. Confirmo o preço combinado – duzentos reais mensais e nada mais – e sou acompanhado até o quarto. Um pequeno aposento com dois beliches, duas escrivaninhas, uma janela daquelas de ferro que abrem lateralmente e dois homens a dormir. Mesmo com tão pouca coisa, é um quarto desorganizado, mas não muito sujo – dá pra agüentar de boa. Pago o primeiro mês, despeço-me e vou dormir “Boa noite tenha você, jovem”.
Na manhã seguinte fico sabendo melhor como é o albergue: quatro quartos, dois beliches em cada quarto, resultando em dezesseis albergados, isto quando todas as vagas estão ocupadas – fato raro, pois poucos vêm aqui para ficar. Há dois banheiros, um para cada dois quartos, ambos pequenos, e sem divisão de boxe, o que faz com que fiquem molhados quase o dia inteiro. Há também uma cozinha comum, com uma geladeira bem antiga e barulhenta, um fogão de quatro bocas, com duas funcionando bem, e um armário de madeira embutido na parede. Passando ela, chega-se à lavanderia, um cômodo realmente pequeno equipado com uma grande máquina de lavar conservada e um varal de teto sempre lotado de roupas masculinas, só a janela dá uma compensada na sensação de espaço, pois ocupa toda uma parede. Por último temos o sempre trancado quarto-escritório do velho Edgar. Não vou alongar-me mais nesta descrição, o albergue é irrelevante.
Tomo meu banho, após uma meia hora de fila. Depois sigo para conhecer o centro, o forno da locomotiva do Brasil.
Parte III – Harakiri Paulistano
Caminho contra o sol insurgente. Os raios dele refletem nas poucas torres envidraçadas do centro, vão até os capôs dos milhares de carros que lentamente transitam, e eventualmente atingem minhas pupilas, ofuscando-me um pouco. Essa louca dança de raios luminosos acaba por transformar toda região numa gigantesca estufa, agravando o calor e a sensação de abafamento, naturais nessa época do ano e da atual era. Esse ar quente junto com a longa e suave subida da Galvão Bueno faz-me suar um pouco – se estivesse subindo a São Joaquim suaria o triplo.
Contudo, não me recordo muito bem do início dessa quinta-feira, sempre que tento resgatar os detalhes desta manhã minha mente é tomada pelo fresco cheiro da morte, e logo a imagem do homem vem me importunar. Sei que caminhei por diversas ruas: conheci a Sé, a República, o Anhangabaú, o Largo São Francisco, a Prefeitura, o Fórum, o Teatro Municipal em reforma, a Galeria, o Ay!, o Viaduto do Chá… O Viaduto do Chá… Acho que gostei do passeio, bonitas e grandiosas arquiteturas temperadas com milhares e milhares de pessoas das mais diversas e das mais estranhas. Foi uma longa caminhada.
Quando passo pelo Viaduto do Chá um triste acontecimento me marca: estou tranqüilo, distraidamente admirando a cidade, vendo os muitos carros da grande avenida que passa por baixo do viaduto. Ao voltar-me para frente, percebo que um homem está de pé em cima do parapeito. Parecia ter uns trinta e poucos, era gordo, não de físico naturalmente avantajado, mas com uma graxa daquelas advindas de um extremado sedentarismo. Vestia roupas simples (uma camiseta vermelha e uma calça jeans) e era branco de pele, acho que tinha a barba feita, e o cabelo castanho. Ele devia estar a uns vinte metros de distância, a frente de mim. Eu estranho seu ato, porém nada faço, continuo a andar me aproximando. Nem mesmo presto muita atenção, perdido em minhas divagações. Quando chego a poucos passos do rapaz, ele respira fundo, olha em minha direção (sinto um melancólico vazio em seu olhar); olha para o alto – uma brisa bate em seu rosto; solta o ar e salta. “Como assim? Ele saltou? Saltou mesmo?” penso eu. Um baque surdo ecoa pelos blocos de concreto. Aproximo-me da mureta e observo, sem parar minha caminhada mas diminuindo o ritmo: o corpo meio de bruços, bastante torto e com uma faixa de pele de suas costas à mostra, por debaixo da vermelha camiseta. Ele ainda geme, sofrendo espasmos incessantes de agonia. O homem treme e treme diante do eminente fim. Uma poça de sangue se forma no chão ao redor de sua cabeça, expandindo aos poucos.
“Por que será?”.
Em seguida a multidão de curiosos se joga contra a mureta: “Ele pulou!” “Ainda tá vivo, olha lá” “Virou presunto!” “O cara se matou!” “Porra!” “Que houve?” “Pulou” “Pulou” “Caralho!”. Os próximos a chegar são os coxinhas, com o teatrinho da autoridade. Continuo meu caminho, não gosto desse tipo de coisa. Continuo meu caminho, agora cabisbaixo e ainda mais pensativo.
“Por que será?”
A fragilidade da vida me impressiona. Acho que sou uma pessoa sensível, não tenho certeza. Mas, o que leva uma pessoa a findar sua própria existência? Não sou um amante absoluto da vida; as vezes gosto de viver, outras vezes não. Nesses momentos chego a pensar no pulo, no corte, no tiro, no veneno, na overdose, mas nunca com muita seriedade, sempre sei que é só uma idéia passageira. No fundo, eu não consigo ver a morte como uma opção, acho que essa é uma idéia de Sartre, ou talvez só uma conclusão imediata para quem sabe que só se vive uma vez, e só se vive aqui: se nada existe depois da morte, se a morte é o fim do mundo-visto-por-mim, matar-se não é uma opção, é o fim das opções. Não compreendo um ato destes, e essa falta de compreensão me atormenta profundamente.
Parte IV – Quinta e Breja
Mas a vida continua. Meio abalado sim, mas continuo o caminhar.
Para a noite combinei com Humberto uma balada na USP. Toda semana ela acontece, chama-se Quinta e Breja, e é uma festa organizada pela ECA (Escola de Comunicação e Artes). Pelo que me contou, é mais uma hora feliz do que uma festa propriamente dita. Tudo bem, meu principal interesse na verdade é conhecer um pouco da cidade universitária. Alguns dizem que ela é quase tão grande quanto minha ilha, mas eu não acredito muito nisso não.
Enfim, resolvi seguir o conselho do meu colega e ir pra lá no começo da tarde, afim de evitar horas no trânsito. Acabo meu passeio, almoço (preferi não comer carne, a lembrança recente d’homem do Chá ainda me incomodava demais) e embarco num ônibus. Mesmo assim a viagem demora uma boa hora…
Chegando na USP, fico passeando a esmo. O campus é um lugar curioso: uma área extremamente grande, com uma vegetação exuberante a competir com as também exuberantes construções arquitetônicas. Destaque especial para o prédio de história e geografia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), e para o da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo). O primeiro parece um enorme galpão, com uma rampa gigantesca e sólida de concreto em seu centro. Subindo ela chega-se ao piso superior, onde se encontram a maior parte das salas de aula. O teto do prédio deve ter algo como trinta ou quarenta metros (não confiem em mim, sou péssimo para este tipo de coisa). No piso térreo ficam os auditórios, as salas de atendimento para os estudantes, e o espaço estudantil – chamado de aquário, pois fica atrás de uma parede de vidro – sempre bastante movimentado. Contam as lendas que este prédio foi construído em plena ditadura militar, e que o verdadeiro motivo da largura e resistência da rampa é possibilitar a passagem de um tanque, para o caso de uma eventual revolta estudantil. Já o prédio da Arquitetura, bem, esse eu não sei descrever… Acho que só um arquiteto conseguiria com exatidão – convido-te a conhecê-lo um dia (só cuidado para não ser aliciado pelos trotskistas do MNN, eles adoram a FAU).
Enfim, parto para encontrar-me com Humberto no bosque das Sociais, mas chego um pouco mais cedo, fico então a admirar o lugar: um pequeno espaço estudantil a céu aberto, com várias árvores altas cheias de verdes folhas, uma porção de bancos, e neles, muita maconha e maconheiros. Mal chego, um grupo já se senta próximo a mim. Começo a me sentir bem, essa atmosfera liberal para com a minha erva me faz lembrar da minha prainha – claro que sem a brisa marítima, mas até um ventinho marca presença, trazendo até mim o perfume da natureza. Convido-me a participar da roda, sabendo que não seria recusado – faz parte da Lei de Jah (para aqueles que não conhecem, os usuários de erva possuem um código de conduta, e este inclui nunca recusar um pega – mesmo para um total desconhecido). Outra regra, a título de exemplo, é “quem bola, acende”. A roda era formada por três pessoas, uma do sexo feminino e duas do masculino. A garota é relativamente baixa, com cabelos castanhos bem escuros, meio crespos, meio cacheados, na altura das costas. Usa óculos de acetato escuro, que fazem com que seus olhos amendoados pareçam maiores e aguados, deixando-a, na verdade, mais interessante. Cobre seu magro corpo reto com um longo vestido de alcinha fina em tons de marrom e bege – um estilo meio ripongo bem abrasileirado. Um dos garotos tem olhos puxados e bem pequenos, certamente um descendente de orientais, chutaria japoneses. Mais ou menos a mesma altura da garota, e também usa óculos, mas não de acetato. Seu cabelo é bem preto e liso; curto, mas não completamente. Tem uma nascente barbicha triangular, um protótipo da senhora barba do senhor da pensão. Já o outro moleque é alto e magrelo com longos e grossos dreads em seus cabelos castanhos. De tez branca, mas do branco típico da terra do pau-brasil. Pela cara, parece ingenuamente feliz, mas isso pode ser só preconceito meu – talvez porque ele me lembre o Salsicha.
Logo menos eles se apresentam, respectivamente: Gabriela, Leandro e Rafael; estudante de Geografia, estudante de Ciências Sociais e Motomenino. Os três formam, ou melhor, nós quatro formamos um grupo heterogêneo, porém, dou-me muito bem com eles. Inclusive, conversando, consigo convencer dois a irem na Quinta e Breja comigo, só o Leandro que não topa. Pouco depois chega Humberto, e partimos para a ECA.
A festa já começara, mas não está muito lotada. O espaço é bastante interessante: uma praça com algumas árvores e alguns bancos entre os prédios da ECA. As apresentações de conjuntos musicais acontecem numa curiosa construção circular conhecida como canil – parece que antigamente ali era de fato um lugar de cães (teria vindo dali o famoso cachorro espancado até a morte pela Soninha?). Já as bebidas são vendidas no espaço de convivência estudantil da ECA, próximo à sala do Centro Acadêmico e da Atlética. Seguimos direto para lá, pegamos uma latinha cada um, e voltamos para a parte aberta. Ficamos um tempinho só jogando conversa fora, até meu conterrâneo reivindicar um cigarrinho “sei que vocês já fumaram, mas eu ainda não…”. Sem perder tempo, ele mesmo prepara e acende um. Uma outra garota, conhecida da Gabi, se junta a nós nessa segunda ciranda. Contudo, nem mesmo sei dizer como era ela, não me recordo, não prestei atenção.
A medida que a entorpecida fumaça entorpecedora tomava conta de meus pulmões, o inexplicável fantasma inexplicante violentamente expropriava meus pensamentos: “O que de fato acontecera àquele homem?”. Certeza já não tenho mais se ele de fato pulara, ou se involuntariamente caíra – uma brisa batera nele, talvez o empurrara, talvez? Talvez ele tenha só desistido. Mesmo admitindo a verdade de que o suicídio não é uma opção; viver, hoje, é uma luta diária. Um confronto cotidiano interminável e inexorável para afirmar-se e firmar-se como ser humano; para se preservar o pouco de nossa essência – o irredutível mínimo teimoso que nos torna igual em espécie, ao mesmo tempo em que nos diferencia em indivíduos. Um sangrento secular duelo de pistolas e baionetas, bombas e coquetéis, facas e flores contra um sistema que tenta a todo custo nos reduzir a máquinas (e por que não usar-me de todas as palavras? Reduzir-nos a máquinas de mais-valia). Mas, se nossa vitória beira o impossível, transcende os limites da imaginação, nossa derrota é absolutamente inaceitável – e inimaginável para meros seres-humanos. Nossa derrota seria a extinção da espécie, pois o combustível que alimenta nossa luta é o que nos faz Humanos. E enquanto humanos formos, lutaremos, pois, só assim, só na luta, humanos somos. Quem sabe, então, ele tenha só desistido da Luta. Entregara seu cansado corpo derrotado ao ar, ao vento, à brisa. Parece-me, agora, que ele não pulou. Parece-me, agora, que ele desistiu.
Defenestro este fantasma de minha mente, no momento em que o Humberto me traz minha próxima breja “vai mais umazinha?”. Volto à realidade; volto à luta. O beque se fora, junto com este a colega da Gabi – nem a vi… Nem a vi…
Bem, tomei mais algumas, ouvi outras, falei pouco e ainda queimei mais um. E logo fui posar na república do Humberto. Se alguém perguntar minha opinião a respeito da Quinta e Breja, responderei num tom monótono: “Bem… É legal.”
(Continua)
Ilustrações: Alfredo Pirucha
Leia aqui Perdido na Poluída Pólis (1ª Parte) e Perdido na Poluída Pólis (3ª Parte)
“…viver, hoje, é uma luta diária. Um confronto cotidiano interminável e inexorável para afirmar-se e firmar-se como ser humano…” – E se formos reduzidos a menos do que humanos? O que nos resta, além da morte?