A atividade teórica anarquista necessita abandonar a fobia de constituir instrumentais, e deve abandonar o relativismo que tudo flexibiliza e pouco indica, e a iconoclastia teórica que menos propõe do que critica. Por Rafael V. da Silva

Leia aqui a 1ª parte deste artigo.

II. Alienação e autonomia: pela necessidade de um projeto coletivo transformador

victor-vasarely-5O conceito de alienação de Castoriadis é essencialmente social. A alienação não é “inerente” à história humana, mas simplesmente uma modalidade de relação da sociedade com suas instituições em determinado contexto. A sociedade capitalista é, por excelência, uma sociedade que não permite o usufruto da autonomia, nem individual, nem coletiva. Um dos principais pilares de dominação do sistema capitalista é sua estrutura econômica. No sistema produtivo capitalista, a economia é dirigida e controlada por um grupo minoritário que detém os meios de produção. Todo excedente de riqueza produzido é apropriado por esta classe social. Além da apropriação dos frutos da produção, a gestão da produção é restrita a determinados especialistas, que podem ser donos dos meios de produção ou não, neste último caso sendo apenas seus gestores [13]. O trabalhador na sociedade capitalista, usando as palavras de Castoriadis, é transformado em um “fragmento de homem” sob a racionalização capitalista.

Entendemos por alienação – momento característico de toda sociedade de classe, mas que aparece com dimensão e profundidade muito maiores na sociedade capitalista – o fato de os produtos da atividade do homem adquirirem em relação a ele uma existência social independente, e, ao invés de serem dominados por ele, o dominarem. A alienação é, portanto, aquilo que se opõe à criatividade livre do homem no mundo criado pelo homem; não é um princípio histórico independente, que tenha uma origem própria. É a objetivação da atividade humana, na medida em que escapa de seu autor, sem que seu autor possa escapar dela. (CASTORIADIS, 1983: 68).

Racionalização que é apenas aparente, pois o aumento e o aperfeiçoamento da produção são tomados como fins em si mesmos, o que acaba ganhando um sentido extremamente irracional. Irracional, pois a idéia de acumulação e de desenvolvimento é extremamente problemática. Desenvolvimento implica alcançar um fim, um limite. Um organismo se desenvolve para alcançar outro estágio. Um plano de estudos de desenvolve para alcançar outro conteúdo. Já a economia sob o capitalismo, ao contrário, não possui limites específicos. “O limite (péras) define ao mesmo tempo o ser e a norma. O ilimitado, o infinito, o sem-fim (apeíron) é seguramente inacabado, imperfeito, menos-ser. (CASTORIADIS, 1987: 143.) No caso do sistema capitalista, esta técnica não está a serviço de nenhum fim determinável, os indivíduos é que permanecem subordinados à técnica.

Em vez da produção e do sistema econômico estarem a serviço da sociedade, a sociedade é que está a serviço da produção. Derivamos disto as idéias mais gerais sobre o conceito de alienação a partir de Castoriadis. Primeiro, as instituições podem ser alienantes em seu conteúdo específico e sancionar uma sociedade de classes, uma dominação de uma categoria sobre outra, como é o caso das instituições da sociedade capitalista, onde o domínio de uma classe sobre outra é exercida principalmente pela esfera econômica [14]. Mas há também outro fator de alienação, que é a subordinação da sociedade às suas instituições, que pode ocorrer em qualquer contexto sócio-histórico [15]. A sociedade, então, não reconhece nas suas instituições o seu produto.

victor-vasarely-9A alienação é a autonomização e a dominância do momento imaginário na instituição que propicia a autonomização e a dominância da instituição relativamente à sociedade. Esta autonomização da instituição exprime-se e encarna-se na materialidade da vida social, mas supõe sempre também que a sociedade vive suas relações com suas instituições à maneira do imaginário, ou seja, não reconhece no imaginário das instituições seu próprio produto. (Idem: 159-160).

Referimo-nos ao fato, mais importante, de que a instituição, uma vez estabelecida, parece autonomizar-se, que ela possuía sua inércia e lógica própria, ultrapassa, em sua sobrevivência e nos seus efeitos, sua função, suas “finalidades” e suas “razões de ser”. As evidências se invertem; o que podia ser visto, “no início”, como um conjunto de instituições a serviço da sociedade transforma-se numa sociedade a serviço das instituições. (Idem: 133).

A faculdade de abstraçcão, fonte de todos os nossos conhecimentos e ideais, é sem dúvida a única causa de todas as emancipações realizadas pelo homem. Mas o primeiro despertar desta faculdade no homem não produziu imediatamente sua liberdade.
Logo que ela começa a formar-se , desembaraçando-se lentamente dos princípios da instintividade animal, começa por se manifestar, não sob a forma duma reflexão ponderada, com consciência e conhecimento da sua própria actividade, mas sob a forma duma reflexão imaginativa, inconsciente do que faz e por isso mesmo tomando sempre os seus PRÓPRIOS PRODUTOS por seres reais, aos quais atribui inocentemente uma existência independente, anterior a todo conhecimento humano, e só atribuindo a si o mérito de os ter descoberto fora de si própria. Devido a este procedimento, a reflexão imaginativa do homem povoa seu mundo exterior de fantasmas que lhe parecem mais perigosos, mais fortes e mais terríveis do que seres reais que o cercam. (BAKUNIN, 1975: 68-69).

Já para efetivar o processo de alienação em seu conteúdo mais específico, a organização do trabalho no modo de produção da economia capitalista e em outros ramos da vida é essencialmente hierárquica. A hierarquia não foi inventada pelo sistema capitalista; mas neste tornou-se universal. A hierarquia permite que uma categoria da população dirija a sociedade e outra apenas execute suas decisões. À hierarquia de decisões complementa-se uma hierarquia de rendimentos e remunerações. A hierarquia, portanto, é a forma mais preponderante de organização da sociedade capitalista, e é pelo sistema hierárquico universalizado, por este sistema econômico, social e político, que a alienação pode se reproduzir. Hierarquia supõe dominação e por isto alienação. Distinguimos dominação de poder. “O estado de domínio se identifica pela falta de opção, pela coação, pela hierarquia, pela alienação, pela falta de voz, pela recompensa residual […]” (LÓPEZ, 2001: 98). A dominação de uma classe por outra não pode ser compreendida apenas no que tange à apropriação do excedente da produção e em seu controle dos meios de produção (capital), mas também deve ser percebida no interior das relações de produção pela “divisão antagônica dos participantes da produção em duas categorias fixas e estáveis, dirigentes e executantes” (CASTORIADIS, 1983: 53-54).

Mas a burocracia só pode comandar a utilização do produto social porque ela comanda também a produção. É porque ela gere a produção ao nível da fábrica que pode constantemente obrigar os trabalhadores a produzir mais pelo mesmo salário; é porque gere a produção ao nível da sociedade que pode decidir pela fabricação de canhões e de sedas em vez de moradias ou tecidos de algodão. (Idem).

Para Castoriadis,

[…] no essencial, a divisão das sociedades contemporâneas – ocidentais ou orientais – em classes já não mais corresponde à divisão entre proprietários e não-proprietários, mas àquela, muito mais profunda e mais difícil de eliminar, entre dirigentes e executantes no processo de produção.
[…]
O socialismo é a supressão da divisão da sociedade em dirigentes e executantes, o que significa ao mesmo tempo gestão operária em todos os níveis – da fábrica, da economia e da sociedade – e poder dos organismos de massa – sovietes, comitês de fábrica ou conselhos. (Ibid, 1985: 81).

Segundo este, a conquista da autonomia só pode ser realizada por um empreendimento coletivo, que inevitavelmente envolve o conjunto dos oprimidos. Isto porque a discussão sobre a autonomia nos leva diretamente ao problema político e social; “[…] não podemos desejar a autonomia sem desejá-la para todos e que sua realização só pode conceber-se plenamente como empreitada coletiva” (Idem: 129). Essa abordagem aproxima-se do conceito bakuninista de liberdade, concebido como um produto social. Ao discutir a liberdade, Bakunin distancia-se do conceito de liberdade individual e metafísico.

victor-vasarely-7Ser coletivamente livre é viver no meio de homens livres e ser livre pela liberdade deles. O homem, já dissemos, não poderia tornar-se um ser inteligente, dotado de uma vontade refletida, e, por conseqüência, não poderia conquistar sua liberdade individual fora e sem o concurso de toda a sociedade. A liberdade de cada um é, portanto, o produto da solidariedade comum. Mas essa solidariedade, uma vez reconhecida como base e condição de toda liberdade individual, evidencia que, se um homem está no meio dos escravos, ainda que fosse seu amo, seria necessariamente o escravo de sua escravidão, e só poderia tornar-se real e completamente livre por sua liberdade. Portanto, a liberdade de todo o mundo é necessária à liberdade; daí resulta que não é absolutamente verdadeiro dizer que a liberdade de todos seja o limite de minha liberdade, o que equivaleria a uma completa negação desta última. Ela é, ao contrário, a sua confirmação necessária e sua extensão ao infinito. (BAKUNIN, 2009a: 76)

O que significa dizer que as dimensões da autonomia individual são constantemente limitadas pelas condições sociais.

Em uma sociedade de alienação, mesmo para os poucos indivíduos para quem a autonomia possui um sentido, ela só pode permanecer truncada, porque encontra, nas condições materiais e nos outros indivíduos, obstáculos constantemente renovados do momento em que tem de encarnar-se numa atividade, desenvolver-se e existir socialmente; ela só pode manifestar-se, em sua vida efetiva, em interstícios dispostos pelo acaso e pela astúcia, em quotas sempre pequenas. (CASTORIADIS, 1986: 131.).

A chamada autonomia individual, muitas vezes, é concebida por parte do anarquismo contemporâneo como um processo de busca de autonomia do indivíduo sob o capitalismo. Neste ponto, tornar-se autônomo seria cada vez “depender menos do capitalismo individualmente ou em pequenos grupos” e de suas instituições, o que do ponto de vista de um projeto revolucionário deve ser alvo de reflexões. Primeiro, é preciso afirmar que é impossível “fugir” da sociedade capitalista; não há, jamais, grupo da sociedade apartado de suas instituições:

A dimensão social-histórica, enquanto dimensão do coletivo e do anônimo, instaura para cada um e para todos uma relação simultânea de interioridade e de exterioridade, de participação e de exclusão, a qual não pode ser abolida nem mesmo “dominada”, mesmo num sentido pouco definido desse termo. O social é o que é o que é todos e não é ninguém, o que jamais está ausente […]. (Idem: 135.).

Segundo, esta tese ignora que a possibilidade da autonomia, entendida aqui como necessariamente social, é impossível sem estratégias que apontem para a destruição das instituições heterônomas e a construção de instituições que a garantam. Ou seja, estamos todos no mesmo barco e precisamos traçar estratégias coletivas para modificar sua rota.

victor-vasarely-4Esta tese, ou mito, por sinal, autonomizou-se, transformou o significado original do conceito de autogestão, que significava gestão completa da produção e da política pelos trabalhadores, em simples autonomia individual, que significa “fazer você mesmo” e não toca na questão fundamental dos modos de dominação do capitalismo.

Sabe-se, por exemplo, que a sociedade capitalista, apesar do modo de produção hegemônico assalariado, tolera e convive com outros modos de produção. A existência de artesãos “autônomos” (no sentido de não venderem sua força de trabalho) e profissionais liberais demonstra que é possível, dentro da sociedade capitalista, a coexistência de diferentes formas de relação social, desde que o essencial dos processos de dominação esteja garantido. Tal fato jamais ameaçou a sobrevivência do sistema capitalista. Uma comunidade alternativa ou “autônoma” pode coexistir facilmente com uma metrópole e um complexo industrial-militar, já que, garantidos os mecanismos de dominação do capitalismo, esta existência não ameaçará o uso das bombas produzidas pela indústria da guerra e muito menos o modo de produção e as relações capitalistas hegemônicas.

Além disto, no sistema capitalista, a tensão entre passividade e a criatividade está sempre presente, pois isto também é uma condição para sua manutenção, seja no terreno da produção ou até mesmo da política, mantendo o horizonte da criação não com vistas ao estabelecimento de uma sociedade autônoma, mas de manutenção da falsa liberdade dentro do próprio sistema. Falsa, não por reflexões filosóficas feitas a priori ou por julgamentos pessoais abstratos, mas sim pelo que vimos anteriormente, a liberdade e autonomia só podem ser conquistadas enquanto um produto social coletivo, o que sob sistema capitalista, um sistema de dominação e opressão, é de fato impossível. Bakunin compreendera muito bem a dimensão social da autonomia quando afirmara que não pode haver liberdade num mundo de escravos. “Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres”. (BAKUNIN, 1975: 22).

Do ponto de vista individual prefiro pensar na autonomia de outra forma, sem jamais deixar de relacioná-la com uma dimensão social. O indivíduo autônomo é aquele que consegue reconhecer em si próprio a existência do discurso do outro, e, assim, é capaz de negá-lo ou afirmá-lo [16]. Negá-lo, não o eliminando, pois tal procedimento é impossível, pela relação de interioridade e exterioridade descrita anteriormente; mas reconhecendo em si próprio a existência deste discurso, o que implica necessariamente em poder escolhê-lo ou não, mas sempre lucidamente. Do modo contrário, quando não reconhecemos a existência deste discurso do “outro”, seja do discurso das instituições (capitalistas, por exemplo) que nos formam e do domínio do “imaginário autonomizado que se arrojou a função de definir para o sujeito tanto a realidade quanto o seu desejo”, (CASTORIADIS, 1986: 124) não há mais autonomia, mas simplesmente alienação.

A maior parte dos indivíduos… só quer e pensa o que toda a gente que os rodeia quer e pensa; eles acreditam, sem dúvida, querer e pensar eles próprios, mas só fazem reaparecer servilmente, rotineiramente, com modificações quase imperceptíveis ou nulas, os pensamentos e as vontades dos outros. (BAKUNIN, 1975: 14)

Esta autonomia individual tem mais chances de emergir e se multiplicar quando envolve uma práxis, ou seja, uma prática e elucidação coletiva que envolva determinados fins.

Portanto, quaisquer projetos que se pretendam revolucionários precisam ter em seus objetivos e caminhos o horizonte da autonomia coletiva, buscando-a não apenas como um objetivo finalista, mas aplicando-a nos métodos e meios para alcançá-la. Defendo que estes meios podem ser realizados nos movimentos sociais; e permitem que, em seus processos e lutas, os agentes que dela participam (trabalhadores/as) percebam do ponto de vista individual que parte de seu discurso, e de suas exigências, eram exigências e discursos das instituições e desígnios da sociedade capitalista. É a emergência, no processo da luta, da chamada autonomia individual.

Deste modo, as simples relações pessoais, apesar de serem sociais, não podem ser consideradas como uma práxis, ou seja, como uma atividade no sentido coletivo e transformador. Para a práxis, o desenvolvimento da autonomia é o fim e o meio (CASTORIADIS, 1986: 94). As relações pessoais não têm um fim exterior à própria relação. Não fazemos amigos para alcançar determinado fim [18]; não nos apaixonamos [19] para buscar determinado objetivo. Obviamente que questões políticas estão presentes nas relações, assim como questões culturais, sociais e até ideológicas, mas precisamos diferenciá-las de um projeto coletivo que possua horizontes revolucionários, o que implica certas condições organizativas. Amizades libertárias podem tornar nosso cotidiano mais aprazível e reduzir as tensões políticas e ideológicas dos embates cotidianos entre diferentes percepções individuais sobre o sistema capitalista, mas, por si só, não conduzem a transformação social e não oferecem perigo nem ao Estado nem ao sistema econômico capitalista, pois não se configuram enquanto uma ação de classe, ação de classe que envolve movimentos sociais.

Na prática política anarquista, que é essencialmente coletiva, há determinados elementos que não estão presentes nas relações pessoais: estamos nos referindo aos planos, programas e projetos que visam uma transformação coletiva; esta transformação só pode ser alcançada mediante uma ação que extrapola o nível das relações pessoais e que, assim, visa a autonomia do outro e da sociedade em que estamos inseridos, incluindo a destruição e a construção de instituições.

victor-vasarely-10Para isto, é indispensável a definição de uma estratégia de luta prolongada, que só pode ser alcançada por meio de um projeto que aglutine o maior número possível do conjunto dos oprimidos; um projeto que é imprescindivelmente coletivo. A auto-organização dos trabalhadores dominados pelo sistema capitalista nos movimentos sociais e organizações populares é uma condição indispensável para a transformação radical; pelo menos, somos sugeridos a crer nisso com base nas rupturas históricas e nos projetos coletivos que tentaram instituir uma sociedade autônoma (Comuna de Paris, Revolução Espanhola, Revolução Mexicana, etc.). Rupturas que ocorreram pela ação política coletiva de homens e mulheres e não pelas “leis ocultas da história” ou pela emergência “espontânea” da autonomia. Não se trata da predestinação do sujeito histórico, que obliterou a prática política e a teoria marxista em algemas conceituais, mas sim de uma ação classista que, para ter chances de sucesso, precisa ser realizada com a organização de um grande contingente de oprimidos pelo sistema capitalista. É importante ressaltar que a concepção de transformação dos anarquistas não concede primazia da transformação ao proletariado industrial, sendo, deste modo, mais ampla em sua concepção de classe.

Os acontecimentos revolucionários só puderam ocorrer mediante um processo de criação e organização revolucionária, uma mobilização de forças coletivas, cujas possibilidades de fracasso e sucesso, evidentemente, estão em aberto, pois são sociais. “As revoluções ocorrem por contingências sociais, não históricas”, dizia Proudhon. Ao deslocar os processos revolucionários para o campo social, Proudhon deslocou a emergência da autonomia na história para o terreno social; a autonomia, portanto, é definida enquanto uma possibilidade última e intencional da práxis, e de sua prática política, não pelas “leis históricas” ou enquanto um produto infalível de determinadas “contradições” de estruturas econômicas, ainda que crises eventuais possam precipitar determinadas condições em aberto aos processos revolucionários; mas elas não os definem.

A prática política que possui os objetivos finalistas da autonomia social (ou, utilizando nossos termos, socialismo libertário), neste contexto, inclui a aplicação de uma estratégia, construída pela auto-organização do arco dos oprimidos, que chamamos de instância social. A auto-organização da classe, em seus respectivos movimentos sociais, é uma condição fundamental para a construção do poder popular.

Mas também é preciso lembrar que há outro componente, fundamental para a transformação radical, que é a organização específica anarquista, que chamaremos de instância política.

victor-vasarely-8Portanto, a estratégia que concebemos baseia-se nos movimentos populares (movimentos de massas), em sua organização, acúmulo de força, aplicação de violência visando chegar à revolução e ao socialismo libertário. Processo que se dá conjuntamente com a organização específica anarquista que, funcionando como fermento/motor, atua conjuntamente com o nível de massas e proporciona as condições de transformação. Estes dois níveis (dos movimentos populares e da organização anarquista) podem ser complementados por um terceiro, o da tendência, que agrega um setor afim dos movimentos populares. (CORRÊA, 2010: 6-7).

A organização específica anarquista é “o agrupamento de indivíduos anarquistas que, por meio de suas próprias vontades e do livre acordo, trabalham juntos com objetivos bem determinados.” (FARJ, 2008: 128). A organização política anarquista, também formada por trabalhadores e trabalhadoras, pode atuar como catalisadora deste projeto político. Além de produzir teoria, pode estabelecer planos, definir programas e lutar para alcançar projetos.

A organização política atua ainda como local de produção das análises conjunturais e das orientações fundamentais pertinentes. Por isso, é a organização política a instância adequada para assumir os distintos e complexos níveis de atividade que o trabalho revolucionário pode exigir, a única instância capaz de assegurar o conjunto de recursos técnicos, materiais, políticos e teóricos, etc., que são condição indispensável de uma estratégia de ruptura.
[…]
Nossa visão da organização política é contrária às distintas formas de “vanguardismo”, de “guardiões da consciência”, enfim, de grupos auto-eleitos, que se sentem tocados pelo dedo de Deus. A organização, mantendo e promovendo o espírito de revolta, assume como próprias todas as exigências presentes e futuras de um processo revolucionário. É a partir do trabalho militante organizado, e somente a partir dele, que se pode promover coerentemente e com força redobrada a criação, o fortalecimento e a consolidação das organizações populares de base, que constituem os núcleos do poder popular revolucionário. (FAU. A Organização Política Anarquista).

É por meio da organização específica anarquista que os anarquistas se articulam no nível político e ideológico, apontando sempre para os objetivos finalistas, ou seja, revolução social e socialismo libertário. O terreno da prática política dos anarquistas é o terreno da luta de classes e dos movimentos sociais, não por simples “escolha” ou “preferência”, mas, como argumentei anteriormente, a partir das respectivas referências teóricas utilizadas, a autonomia social só pode ser conquistada enquanto uma ação popular. Isto porque, para realizar a transformação que desemboque num processo revolucionário, é necessário um acúmulo de força social, força que só pode ser conseguida pela organização coletiva dos explorados e exploradas, pois quando “indivíduos conjugam seus esforços para alcançar um objetivo comum, constitui-se entre eles uma nova força [20] que ultrapassa, e de longe, a simples soma aritmética dos esforços individuais de cada um” (BAKUNIN, 2009b: 35). É importante dizer que esta concepção anarquista de estratégia, necessariamente, não deve envolver relação de subordinação ou domínio entre as instâncias, ao contrário da concepção política marxista-leninista, onde a luta política (do partido) é vista enquanto “superior” à luta econômica (dos movimentos sociais).

A organização específica anarquista também produz teoria, o que chamo aqui, insistentemente, de atividade teórica, o que não significa dizer que a instância social não possa também produzi-la. A produção teórica da instância social, no entanto, normalmente é mais específica e circula em torno de suas necessidades (moradia, trabalho, igualdade étnica, etc.). Para articular a prática política, ou seja, ligá-la aos objetivos finalistas, é preciso estratégia; esta envolve planos e um programa. O plano

[…] corresponde ao momento técnico de uma atividade, quando condições, objetivos, meios podem ser e são determinados ‘exatamente’, e quando a ordenação recíproca dos meios e dos fins apoia-se sobre um saber suficiente [21] do domínio em questão. (CASTORIADIS, 1986: 97).

Para os anarquistas a prática política, enquanto orientada por esta elucidação, por conseguinte

[…] é cálculo e criação de forças que realizam a aproximação da realidade ao sistema ideal, mediante fórmulas de agitação, de polarização e de sistematização que sejam agitadoras, atraentes e lógicas num dado momento social e político. (BERNERI, Camillo In Socialismo Libertário nº 24, pp. 08.).

victor-vasarely-6Já o programa, é

uma concretização provisória dos objetivos do projeto quanto a pontos considerados essenciais nas circunstâncias dadas, na medida em que sua realização provocaria ou facilitaria, por sua própria dinâmica, a realização do conjunto. O programa é apenas uma figura fragmentária e provisória do projeto. Os programas passam, o projeto permanece. Como em qualquer outro caso, pode, facilmente, ocorrer decadência e degeneração do programa; o programa pode ser tomado como um absoluto, a atividade dos homens pode ser alienada no programa. Isso, em si, nada prova contra a necessidade do programa. (CASTORIADIS, 1986: 97-98).

Ter um programa não implica “engessar” a prática política. Não há incoerência em assumir que o programa pode ser inconsistente em um ou outro aspecto ou necessitar de correções. O programa se “enferruja”, é modificado, atualizado, mas o projeto permanece. No caso do anarquismo, o projeto é o socialismo libertário, o objetivo finalista da organização política anarquista (a organização específica anarquista).

Se existe um grupo revolucionário cujo projeto socialista busca a emancipação da classe trabalhadora a partir de métodos que não permitam a esta mesma classe a condução e gestão deste processo, podemos dizer que este grupo não possui a autonomia, nem como objetivo finalista e nem como método, estabelecendo, assim, outras relações [22], diferentes das relações autônomas, e até mesmo conformando novas relações de dominação e opressão.

Para Castoriadis, a autonomia se efetiva mediante uma práxis, que é conformada pelo desenvolvimento de novas relações, as quais surgem no interior dos projetos coletivos. A autonomia, portanto, cria mais a história do que é criada por esta. O objetivo da práxis e a lógica do projeto revolucionário são a “[…] ação autônoma dos homens e a instauração de uma sociedade organizada para a autonomia de todos” (CASTORIADIS, 1986: 116).

Primeiramente, é preciso entender que Castoriadis compreende o socialismo enquanto um projeto, ou seja, uma possibilidade dada pela ação dos trabalhadores e trabalhadoras segundo contingências e especificidades sociais e históricas, e não um desdobramento do funcionamento das leis da história [23], cuja previsão poderia ser demonstrada segundo uma teoria. É a partir da experiência da classe e de sua práxis que a possibilidade de uma sociedade socialista se erige, e não pela afirmação de um saber absoluto que a priori determinaria o caminho que os trabalhadores devem seguir para atingir o socialismo. Sendo assim, o socialismo, para Castoriadis, é um projeto, uma possibilidade, algo a ser feito, não um teorema ou uma verdade posta, sendo possível concluir, a partir disto, que o termo socialismo científico recobre-se de grandes incoerências.

Aproxima-se, assim, da concepção dos anarquistas, da revolução enquanto um processo de acúmulo de força social e não uma consequência de uma contradição “inerente” ou do avanço das forças produtivas.

III. Conclusões preliminares

victor-vasarely-3A partir deste esboço preliminar, tentei levantar algumas questões para as possibilidades de uma atividade teórica anarquista profundamente conectada à prática política. A atividade teórica anarquista, que é constituída e constitui a prática política, se deseja ser crítica sem ser cética, necessita abandonar a fobia de constituir instrumentais, mas sempre ciente de que não se pretende definitiva, e muito menos se instituir como uma teoria acabada. Sugiro da mesma maneira que devemos abandonar o relativismo que tudo flexibiliza e pouco indica, e a iconoclastia teórica que menos propõe do que critica.

De qualquer modo, sem uma estratégia coletiva, a autonomia se manterá cada vez mais restrita aos curtos interstícios, temporários e fugazes [24]; espaços supostamente autônomos ou “libertados”, que, longe de construírem alternativas ao largo conjunto dos oprimidos, apenas sugerem a poucos iluminados que é possível ser livre num mundo rodeado de escravidão. Isto, de fato, do ponto de vista ético, para os libertários é no mínimo constrangedor, e contraria fundamentalmente tudo aquilo pelo que os anarquistas lutaram durante a história da classe trabalhadora.

Notas

[13] Sobre os gestores, Cf. BERNARDO, João In: Economia dos Conflitos Sociais, Expressão Popular.

[14] “Assim, a liberdade do trabalhador, tão exaltada pelos economistas, juristas e republicanos burgueses, é apenas uma liberdade teórica, sem quaisquer meios de realizar-se, e, conseqüentemente, é apenas uma liberdade teórica, sem quaisquer meios de realizar-se, e, conseqüentemente, é apenas uma liberdade fictícia, uma absoluta mentira. A verdade é que toda a vida do trabalhador é simplesmente uma sucessão contínua e horrível de períodos de servidão – voluntária do ponto de vista jurídico, mas compulsória pela lógica econômica – interrompida por momentâneos e breves intervalos de liberdade acompanhados de fome; em outras palavras, é a verdadeira escravidão.” (BAKUNIN, 2007: 16).

[15] Concluímos, a partir disto, que o surgimento do anarquismo pode ser compreendido não só como a emergência de uma nova significação no interior do movimento operário, mas também como a superação de certa alienação, num momento específico das práticas da classe trabalhadora, ao reconhecer, nas instituições da sociedade, os seus produtos. A partir disto, o Estado, o capitalismo, para estes trabalhadores, não serão mais fruto das leis históricas ou consequência das leis naturais ou necessidades humanas, mas possíveis de serem eliminados pela ação coletiva de classe.

[16] Cf. CASTORIADIS, 1986: 122-129.

[17] Como, por exemplo, a idéia do homus economicus capitalista. Esta significação imaginária, quando autonomizada, permite no âmbito individual que o sujeito deseje ter, consumir, comprar ilimitadamente, ao invés de ser. O inconsciente é o ‘discurso do outro’ e em grande parte, o “[…] depósito dos desígnios, dos desejos, dos investimentos, das exigências das expectativas – significações de que o indivíduo foi objeto, desde sua concepção, e mesmo antes, por parte dos que o engendraram e criaram”. (Jacques Lacan Remarques sur le rapport de D. Lagache in La Psychanalyse, nº 6 (1961), p. 116 opp. Cit CASTORIADIS, 1986: 124). É por isto que Bakunin dizia, respondendo a Rosseau, que “O homem não criou a sociedade, nasceu nela. Não nasceu livre, mas acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de influências passadas, por desenvolvimentos e fatos históricos. Está marcado pela região, o clima, o tipo étnico, a classe a que pertence, as condições econômicas e políticas da vida social e, finalmente, pelo local, cidade ou aldeia, pela casa, pela família e vizinhança, em que nasceu”. (BAKUNIN, 1975: 12-13). Portanto, quando determinados indivíduos dizem que o capitalismo existe porque as pessoas desejam o capitalismo, devemos relativizar tal afirmação e considerar até que ponto as instituições reafirmam este desejo, desejo outro, que se torna “seu”. Evidentemente, não desconsideramos as escolhas neste processo, mas para desejar outra coisa, esta outra coisa (no caso de uma sociedade autônoma) deve estar apresentada. Numa sociedade alienada, as instituições heterônomas esmagam cotidianamente quaisquer tentativas de autonomia e de desejo de autonomia.

[18] Alguns poderiam dizer que o fim das relações pessoais é a satisfação de necessidades sexuais ou de outras necessidades: culturais, sociais, etc. Castoriadis rejeita esta visão funcionalista. “Um cachorro come para viver, mas também podemos dizer que vive para comer: viver, para ele (e para a espécie cachorro) não é senão comer, respirar, reproduzir-se. Mas isso nada significa para um ser humano, nem para uma sociedade. Uma sociedade só pode existir se uma série de funções for constantemente preenchida (produção, gestação e educação, gestão da coletividade, resolução dos litígios, etc.), mas ela não se reduz só a isso, nem suas maneiras de encarar seus problemas são ditadas uma vez por todas por sua ‘natureza’; ela inventa e define para si mesma tanto novas maneiras de responder às suas necessidades, como novas necessidades”. (CASTORIADIS, 1986: 141).

[19] E no caso da paixão isto seria ainda mais absurdo, pois envolve questões irracionais. Estamos nos referindo ao conceito do inconsciente freudiano.

[20] Este conceito bakuninista é visivelmente inspirado em Proudhon.

[21] Este saber suficiente é fruto da aplicação de uma atividade teórica, obviamente, conectada intimamente com a prática política e ideológica: círculo da práxis.

[22] Para Castoriadis, é incoerente a idéia de “Estados Operários degenerados” defendida pelos trotskistas em relação a existência da burocracia na URSS. Havia uma dominação de classe (da burocracia sobre o proletariado), estabelecida, essencialmente, pela divisão antagônica no interior do sistema produtivo.

[23] Segundo Castoriadis: “Não pode existir teoria perfeita da história e a idéia de uma racionalidade total da história é absurda. Mas a história e a sociedade não são também irracionais num sentido positivo. Já tentamos mostrar que racional e não-racional cruzam-se constantemente na realidade histórica e social, e é precisamente esse cruzamento que é a condição da ação”. (CASTORIADIS, 1986: 99).

[24] O que algum cretinismo teórico (e retórico) chamará de “Zonas Autônomas Temporárias”, nada mais do que se contentar com os curtos interstícios de liberdade, que estão muito longe de se constituírem enquanto uma alternativa a longo prazo para o conjunto dos oprimidos. O indulto de Natal dos presos do sistema carcerário burguês pode ser considerado uma Zona Autônoma Temporária, ou apenas uma pausa na escravidão?

REFERÊNCIAS

BERNERI, Camillo. In Socialismo Libertário nº 24 – Ano VII – Trimestre: Julho/Agosto/Setembro – 2010.

BAKUNIN, Mikhail. Catecismo Revolucionário: Programa da Sociedade da Revolução Internacional. São Paulo: Editora Imaginário, 2009a.

_. A Ciência e a Questão Vital da Revolução, São Paulo: Editora Imaginário, 2009b.

_. O Conceito de Liberdade – Vol. 3, Porto: Rés Limitada, 1975.

_. O Sistema Capitalista. São Paulo: Editora Faísca, 2007.

CASTORIADIS, Cornelius. Socialismo ou Barbárie: O conteúdo do socialismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

_. A Experiência do Movimento Operário. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

_. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

_. As Encruzilhadas do Labirinto No 2: Os Domínios do Homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

CORRÊA, Felipe. Criar um Povo Forte. São Paulo: Editora Faísca, 2010.

FARJ. Anarquismo Social e Organização. Rio de Janeiro: Editora Faísca, 2008.

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Ilustrações: telas de Victor Vasarely.

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