O que se passou naquelas ruas tem como alvo todos aqueles que se cansaram de assistir ao jogo e decidiram começar a jogar. Por Ricardo Noronha
Estive ontem em Setúbal e pude testemunhar pessoalmente (e até de bastante próximo) os acontecimentos no bairro da Fonte Nova. Para não variar, a PSP [Polícia de Segurança Pública] está a fabricar novamente uma versão à sua conveniência, somando vários pontos ao seu conto, de maneira a transformar a sua violência repressiva num gesto de defesa dos cidadãos.
A primeira coisa que deve ser destacada é que a manifestação – cerca de centena e meia de pessoas – percorreu toda a cidade sem qualquer incidente, sendo apoiada e saudada por vários setubalenses pelos quais passou e que receberam com interesse os panfletos distribuídos. Apesar de não ser acompanhada por qualquer agente da polícia, todos os automobilistas foram pacientes e respeitadores do direito de manifestação, aguardando enquanto o cortejo passava e demonstrando por vezes o seu apoio às palavras de ordem e às faixas. O mesmo aconteceu com os vários proprietários de restaurantes e cafés localizados no bairro da Fonte Nova, inclusive os que estavam no largo onde tudo viria a acontecer.
A segunda coisa que deve ser destacada é que a manifestação coincidiu com a da CGTP [a principal central sindical, hegemonizada pelo Partido Comunista] em parte do percurso, aguardando que o desfile sindical passasse para assumir posição na sua cauda. Cada um dos cortejos gritou as suas palavras de ordem (que eram, naturalmente, muito diferentes) sem qualquer tipo de incidente ou hostilidade a assinalar.
Após algumas centenas de metros na cauda da manifestação da CGTP, da qual estava separada apenas por um cordão de agentes da PSP (cerca de 5), a manifestação anti-autoritária seguiu um rumo diferente, em direcção ao bairro da Fonte Nova, uma das zonas da cidade mais carregadas de memória histórica pelas lutas operárias de vários anos. Mais uma vez, e apesar de não haver qualquer agente da PSP nas imediações, a manifestação prosseguiu o seu rumo pacífico e combativo, gritando palavras de ordem e comunicando com a população e os transeuntes. Após cerca de duas horas, chegou ao Largo da Fonte Nova, onde foi ligada uma aparelhagem sonora na parte de trás de um carro. Tocava Zeca Afonso.
O pessoal dispersou pelo largo e pelas ruas à volta, a conviver. Não houve qualquer dano a qualquer tipo de propriedade, nenhum conflito com os moradores. Aliás, não chegámos a estar ali mais do que vinte minutos.
Chegou um carro com dois polícias (talvez fossem mais, mas só dois se aproximaram), que solicitaram que o volume fosse reduzido, o que aconteceu. Na conversa que se seguiu, enquanto um dos polícias pediu a uma das pessoas que estava junto do carro que se identificasse, o outro começou a ordenar às outras pessoas que se afastassem. Quando a pessoa que estava junto do carro respondeu que não tinha identificação, o agente em questão imediatamente a agarrou e lhe disse que tinha de ir à esquadra [delegacia].
Quem estava à volta teve apenas tempo para se aproximar para perguntar o que se passava, uma vez que no espaço de 30 segundo chegou uma carrinha, de onde saíram meia dúzia de agentes que começaram a disparar tiros de caçadeira. Repito, chegaram a alta velocidade, pararam, saíram e dispararam. Várias pessoas foram atingidas pelo que se veio a revelar serem tiros de borracha (aqueles mesmos que tiraram um olho a um adepto do Benfica há duas semanas). Foram disparados para o ar tiros de pistola de fogo real.
Começaram a chegar vários carros da PSP, enquanto os agentes no local aproveitaram a surpresa para isolar cerca de 3 ou 4 manifestantes (o primeiro, que não tinha identificação, e mais alguns que se aproximaram), começaram a espancá-los no chão e a atirar-lhes gás pimenta para os olhos. Perante este cenário, os restantes manifestantes avançaram, puxaram os que estavam a ser espancados, defenderam-se da melhor maneira possível e recuaram para o outro lado do Largo. Quando a polícia resolveu continuar a investida, foi recebida por uma chuva de pedras e garrafas. Alguns manifestantes pegaram em chapéus e mesas de uma esplanada vizinha, para se defenderem. Um carro da PSP que chegou a alta velocidade foi embater numa carrinha de um morador/comerciante que ali estava estacionada, danificando-a. Para trás ficou o indivíduo que vem aparecendo em várias fotografias e que quase ninguém conhecia. Várias testemunhas afirmam que ele foi baleado no chão com uma caçadeira, quando já estava detido pela polícia.
O resto da manifestação dispersou em pequenos grupos, que foram literalmente “caçados” pelas ruas de Setúbal, onde continuaram a ser disparados tiros de borracha e efectuadas detenções com grande aparato, para estupefacção da população que passava e assistia a polícias sem identificação que ameaçavam, insultavam e empurravam todos os que tinham um ar suspeito. A senhora da PSP que parecia coordenar as operações deu indicações pela rádio segundo as quais deveriam ser detidas todas as pessoas que usassem “roupa preta” ou tivessem um “aspecto esquisito”. Alguns manifestantes foram detidos dentro de cafés e metodicamente espancados dentro da carrinha antes de serem conduzidos à esquadra.
Testemunhei tudo o que relato em pessoa, com excepção do que aconteceu após a carga inicial, quando toda a gente dispersou em pequenos grupos pela cidade. Pude em todo o caso ver as marcas deixadas pela PSP nos corpos de vários manifestantes (e não só, muitos moradores também apanharam simplesmente por terem vindo à rua tentar acalmar a polícia) e cruzar diversos relatos e versões que se confirmam mutuamente.
A polícia mente quando afirma que foi recebida à pedrada e mente de forma descarada quando refere comportamentos impróprios por parte dos manifestantes. Tal como no 25 de Abril de 2007 fomos premiados com a notícia de montras [vitrines] estragadas e cocktails molotovs que ninguém chegou a ver, no 1º de Maio de 2011 a PSP procura inverter as responsabilidades pelos acontecimentos, escrevendo um romance policial de escassa qualidade.
Tornou-se um hábito a polícia responder com bastonadas às ideias que considera perigosas e subversivas. Que tenha passado às balas demonstra apenas a sua desesperada lucidez. Nos conturbados tempos que correm – quando se prepara um gigantesco roubo organizado aos trabalhadores e aos pobres a pretexto da crise – até os mais pequenos gestos de revolta e recusa podem assumir proporções inesperadas. Sem legitimidade nem representatividade nem soberania, o Estado português demonstra que lhe resta apenas um aparelho de violência para lançar sobre os que se organizam para lutar. Cem anos depois dos tiros da GNR sobre operárias grevistas, naquelas mesmas ruas de Setúbal, a oligarquia que governa demonstra não ter aprendido nada nem esquecido nada. O que se passou naquelas ruas tem como alvo todos aqueles que não aceitam submeter-se e resignar-se perante a escandalosa jogada mafiosa da classe dominante portuguesa. Todos os que dizem não. Todos os que se cansaram de assistir ao jogo e decidiram começar a jogar.
Este artigo foi publicado originariamente no Vias de Facto.
Veja um vídeo sobre o ocorrido aqui.