Por Passa Palavra
A labiríntica farsa jurídica que envolvia o caso de Cesare Battisti parece mesmo ter chegado ao seu fim. Com claro tom de estarrecimento, a grande mídia nacional e internacional não pôde deixar de noticiar a libertação do ativista italiano, que agora deve cuidar de se restabelecer socialmente aqui no Brasil, driblando o ódio e o clima de perseguição que os derrotados procuram lhe impor.
Cesare está solto. No campo jurídico, os setores mais reacionários da sociedade brasileira foram parcialmente derrotados. Mas, e nós, só por isso teríamos saído vitoriosos? Nos meios de esquerda, todos os aspectos deste episódio foram, e têm sido, utilizados para confirmar a tese de que a direita é truculenta e o Estado, repressor. Sem querer se opor a esta obviedade, parece-nos, porém, que as lições a serem tiradas do caso dizem mais respeito a nós, os anticapitalistas, do que a eles, os mantenedores da ordem.
As campanhas de solidariedade a presos políticos, tal como foi a luta pela libertação de Battisti, caracterizam-se por serem lutas defensivas, quer dizer, se inscrevem num campo de primariedades que deveriam ser comuns a todas as organizações de tipo anticapitalista: o reconhecimento de que dependemos uns dos outros e de que não devemos deixar o inimigo avançar por sobre territórios já ocupados, ou seja, conquistas sociais obtidas por lutas anteriores. Implicam o consenso de que as diferenças ideológicas e programáticas devem ser suspensas, ou pelo menos minimizadas, a fim de se atingir um claro objetivo, impedir que o oponente se adiante e, por consequência, criar as condições e fortalecer os laços para futuras frentes de batalha. Tem-se aí, além dos efeitos imediatos de uma demonstração de companheirismo, a possibilidade de serem criados elos entre as diferentes gerações combatentes, vínculos entre militantes de diversas localidades, nacionalidades e contextos. Portanto, ao serem testados os nossos mecanismos de defesa coletiva, é posta em causa também nossa capacidade de forjar o tecido que servirá de base para lutas posteriores, estas, sim, de maiores alcances.
Empreitadas desse tipo, entretanto, normalmente têm de avançar em dois níveis diferentes, os quais, na prática, são de difícil conciliação. Por um lado, é preciso alcançar um objetivo imediato: no caso, retirar Cesare Battisti da prisão. E, até que tenhamos acúmulo de força e organicidade suficientes para fazermos isso com nossas próprias mãos, esta dimensão da luta deveria passar inevitavelmente por quedas de braço no campo da burocracia, da jurisprudência, enfim, da legalidade burguesa. Por outro lado, até para que se diferenciasse de uma campanha de caráter meramente humanitário ou legalista e não perdesse de vista a sua função político-pedagógica, convinha que esta luta suplantasse a máscara do Direito e se ligasse a horizontes mais amplos. Nesse episódio em particular, era de grande importância inserir a perseguição a Battisti no contexto da crescente criminalização dos movimentos sociais, do entrincheiramento de setores da direita brasileira em órgãos do Poder Judiciário, da renitência de setores da direita e da esquerda parlamentar italiana em reconhecer a excepcionalidade do regime político de seu país nos anos 1970, a precariedade da democracia vigente e, obviamente, recolocar na ordem do dia os anseios que animaram a militância de Battisti, ou seja, a luta anticapitalista. Ignorada esta dimensão, digamos, utópica, Cesare Battisti seria só mais uma vítima, dentre milhões, do sistema carcerário e judiciário brasileiro.
Dada esta sua amplitude em potencial e o seu caráter dualista, era esperado que a campanha pela libertação de Battisti mobilizasse pessoas e organizações de uma larga fatia do espectro político, abrangendo desde entidades de direitos humanos e setores progressistas da Igreja, passando por partidos, sindicatos e movimentos sociais, até grupos e coletivos menores da extrema-esquerda. No entanto, não foi bem isso que aconteceu. Raras organizações integraram-se de forma efetiva e contínua à campanha. Já dissemos isso em outras oportunidades, Cesare contou apenas com o apoio de poucas pessoas dedicadas, oriundas e dispersas pelas mais diversas orientações políticas e segmentos sociais. E, embora isso tenha sido imprescindível para que ele, Cesare, prosseguisse vivo e com coragem em sua batalha particular, foi irrisório para compor uma força política concreta que realmente intervisse na atual correlação de forças, de modo a pavimentar o caminho para outras lutas sociais.
Passada a tormenta, e para o nosso bem, é preciso dizer: a luta pela libertação de Cesare Battisti não conseguiu superar as clivagens expostas acima, quando poderia ter feito delas nós de articulação. Desprovidos de qualquer estrutura, os entes avulsos que a ela se devotaram não puderam imprimir um ritmo unitário de atuação que fosse superior a esta sobreposição de incompatibilidades, unindo as dimensões pragmática e utópica da luta e relegando para segundo plano o corporativismo ou o preciosismo ideológico de que padeciam suas respectivas organizações.
Esta imbricação de problemas fica evidente quando se repara que não houve, em nenhum momento da Campanha, um simples ato unificado que agregasse um número significativo de apoiadores de todas as regiões do país sob uma mesma palavra de ordem. E mesmo iniciativas mais modestas, como a de fazer correr um simples abaixo-assinado ou redigir um manifesto coletivo, tropeçavam em pendengas de somenos importância: radicais demais, para uns, moderadas demais, para outros.
Colocada a coisa nestes termos, não nos sentimos à vontade para afirmar que a derrota de Peluso, Mendes e companhia corresponde a uma vitória da nossa parte; dado que não diminui a justeza e o merecimento da comemoração, mas deve servir tão-somente como elemento para reflexão e autocrítica. Battisti está solto. Mas, fomos nós, a esquerda anticapitalista, que o retiramos de lá? Menos do que isso: teríamos conseguido acumular algum capital político que esta empreitada tinha para nos render? Não vale responder “experiência”.
De uma perspectiva mais radical, não seria sensato dizer que obtivemos aí uma vitória política, sendo que, por diversas ocasiões, fomos levados a abdicar dos princípios anticapitalistas que levaram Cesare à prisão. Numa vã tentativa de adequarmos o nosso discurso, consentimos e aceitamos as regras do jogo, caímos na bem montada armadilha do antiterrorismo. Ao invés de dizermos que “terroristas” éramos todos nós, preferimos pintar um Cesare inofensivo, quando ele próprio nunca tinha afirmado isso. Estaríamos sendo sonhadores demais?
Tudo bem. Tudo isso seria relevável se por essa via houvéssemos, em contrapartida, obtido rápidos resultados. Porém, não foi isso que sucedeu. Pois, mesmo da limitadíssima ótica dos Direitos Humanos, parece-nos equivocado dimensionar como vitória o fato de Cesare Battisti ter sido mantido preso ilegalmente, privado de todas as suas “liberdades democráticas”, debaixo de nossos narizes, durante quase 2 anos e meio – tempo que se estendeu desde o então ministro da Justiça, Tarso Genro, lhe ter concedido o status de refugiado político até a sua soltura. Isso significa reconhecer que o inimigo não só avançou como marchou e desfilou sobre nossos territórios mais caros.
Antes que sejamos tomados como ingratos, convém observar que iniciativas um tanto mais ousadas aconteceram, e de vários tipos, é verdade, mas não sem que houvesse desgastantes debates internos ao movimento. Quem acompanhou o processo desde as primeiras convocatórias de apoio, há de se lembrar que poucas eram as figuras de renome e prestígio entre a esquerda que se atreviam a comparecer. Quadro distoante do encontrado na reta final da campanha, quando um número impressionante de pessoas e instituições assinaram a manifestação de apoio escrita pelo jurista Dalmo Dallari. A construção desse moroso percurso ascendente, entretanto, envolveu um embate não só contra as forças hostis ao Battisti, o que era óbvio, mas também contra elementos da própria campanha que, tanto no Brasil como no exterior, privilegiavam a estratégia dos bastidores. Aliás, o leitor que se debruçar com cuidado sobre os registros destes intentos de mobilização irá notar o não pronunciamento de vários nomes e lideranças de prestígio da esquerda dita anticapitalista.
Assim entendido, resta-nos dizer, com o perdão do clichê, que assistimos à libertação de Cesare Battisti com um olho que ri e outro que chora. De um lado, porque traz-nos imensa satisfação saber que uma pessoa que lutou intensamente contra a exploração capitalista terá a chance de recomeçar a sua vida e voltar a caminhar junto a nós. Por outro, não podemos fingir que fomos nós, os anticapitalistas, o fator determinante deste grande feito. Assim como o ex-extraditando, sem meios para reagir, estivemos por todo esse tempo reféns dos acordos de bastidores e da burocracia mais ou menos progressista.
Obviamente que não se trata aqui de procurar culpados individuais. O limbo em que se meteu Cesare Battisti durante estes últimos 4 anos apenas reflete o atual estágio das coisas, qual seja, a precariedade de nosso protagonismo político. Em seu conjunto, o caso revela para os mantenedores da ordem que a nossa fragilidade é ainda maior do que eles imaginavam e, para nós, que há muita tarefa pela frente, a começar pelo tema primário da solidariedade. Refaçamos a lição de casa.
Soube que entre os nomes que se recusaram a assinar a carta de apoio a Cesare, exigindo sua libertação está Plínio de Arruda Sampaio. Apesar das inúmeras discordâncias que eu tenho com o Plínio confesso que o mínimo que eu esperava é solidariedade.
Parabéns pelo artigo! Importante reflexão!
Boa análise.
Ao arthur, sobre Plinio:
“Perguntado sobre sua posição acerca do ativista italiano Cesare Battisti, o candidato do PSOL disse que, se for eleito, aprovará a permanência dele no País.”
http://www.abril.com.br/noticias/brasil/plinio-arruda-sampaio-psol-primeiro-candidato-chegar-band-585231.shtml
Arthur e Eduardo,
Curioso isso, vai saber o que se passa na cabeça do Plínio.
Porque até onde eu sei, a assinatura do Plínio chegou a ser solicitada mas ele preferiu não se pronunicar. Agora o porquê eu não sei.
Excelente artigo. De fato, acompanhei a campanha com um grande sentimento de fraqueza e impotência. Preocupa-me muito constatar que a luta pela liberdade de um companheiro foi vista como uma questão menor e secundária.
O que será que o Helio Bicudo achou?
muito bom artigo, coerente e real levando a uma reflexão sobre a esquerda hj