Os movimentos sociais não existem em Portugal, por isso se esvaiu a propensão basista observável nos primeiros anos de existência do Bloco de Esquerda. Não pode haver basismo se não houver base. Por João Bernardo
Quando os problemas económicos e sociais se precipitam é impossível ficar a meio, um pé lá e outro cá. No caso do Bloco de Esquerda isto significa que ou se entra plenamente no jogo das instituições ou não se entra. Mas que outro jogo existe?
Não há em Portugal movimentos sociais como os que se encontram em vários países da América Latina e de outros lugares. O que caracteriza os movimentos sociais é desenvolverem-se num plano próprio, independente das instituições dominantes, e não aspirarem a subir nessas instituições nem a participar no poder dentro dessas instituições. E, contrariamente aos partidos políticos de esquerda, os movimentos sociais formam-se não sobre um programa ideológico mas em torno de uma plataforma reivindicativa prática — ter terra para cultivar ou ter casa para morar ou não ser desalojado ou não ser alvo do racismo homicida da polícia…
Os movimentos sociais não existem em Portugal nem é possível inventá-los de um dia para o outro. Por isso se esvaiu a propensão basista e extra-institucional observável nos primeiros anos de existência do Bloco de Esquerda. Não pode haver basismo se não houver base. Aliás, esse basismo nunca existiu a não ser nas esperanças de alguns, e estas esperanças ficaram agora frustradas.
Contrariamente ao que julga uma certa esquerda trepidante, as lutas sociais são escassas, timoratas e defensivas em períodos de declínio económico. Um amigo objecta que nas épocas de crise as lutas são defensivas quase de certeza, mas não necessariamente moderadas, e argumenta que uma cultura de luta e de conflitos sociais pode revelar-se tão decisiva como a situação económica de um país ou do mundo. Talvez ele tenha razão, mas o caso da Grécia, assim como tem evidenciado a capacidade ofensiva de uma minoria irredutível, tem mostrado também que esse espírito combativo não se generaliza. Na Grécia não se conseguiu ultrapassar a clivagem entre um activismo de rua e um movimento sindical bem comportado e enquadrado, e o problema agravou-se pelo facto de a extrema-esquerda hostil à União Europeia e às instituições financeiras internacionais se misturar nas manifestações de rua aos ultranacionalistas, que adoptam posições convergentes.
Aliás, se for certo que uma tradição de luta possa ser um factor determinante na actual conjuntura, então o diagnóstico do caso português fica mais pessimista ainda, porque não devemos esquecer que a derrota de uma revolução, quando é acompanhada por uma reestruturação do tecido social, tem consequências muito profundas e duradouras. Foi o que sucedeu entre nós depois de 1974 e 1975, e ainda estamos a viver essa derrota.
No Portugal de hoje a população comum não é composta por intelectuais e estudantes bolseiros que procuram realizar na prática excelentes ideias — ou menos excelentes, mas, apesar disso, ideias. A população comum é composta por gente que precisa de um emprego para levar comida para a família, e a ameaça de desemprego é para o capital uma rédea muito sólida e curta. Quando uma sociedade não capitalista se apresenta viável e iminente, os trabalhadores largam o quotidiano e lançam-se no futuro, mas isto tem sucedido raramente. Se a alternativa à crise económica for uma crise mais grave ainda, se a alternativa à recessão, ao corte de salários e à perda de direitos — quantos deles, aliás, já perdidos na prática — for o caos económico e o desemprego generalizado, então a grande maioria dos trabalhadores prefere deixar a rua aos estudantes e colocar no governo quem julga mais capacitado para fazer com que o Produto Interno Bruto cresça ou, pelo menos, não caia muito. Foi assim que nas últimas eleições uma parte significativa da população substituiu os tecnocratas pelos patrões, esperando que estes salvem a economia quando foram eles que a comprometeram.
Sem base que lhe sustente o basismo e com a maioria dos trabalhadores receando aventuras que ponham em risco os empregos ainda existentes, o Bloco de Esquerda só poderá sobreviver ao descalabro eleitoral — que o fez passar de 9,82% dos votos expressos nas eleições legislativas de 2009 para 5,17% nas de 2011 — se rumar mais para a direita. O Bloco não tem outra alternativa que não a de ingressar plenamente no jogo das instituições dominantes, com tudo o que isto significa, e resta aos seguidores do Bloco perder as ilusões e acompanhar os dirigentes para onde estes dirigentes já estão. O Partido Comunista pôde inserir-se nos mecanismos do poder no âmbito municipal e aí tem sobrevivido. Mas o Bloco de Esquerda, com os quadros que o compõem e com o seu perfil eleitoral, não parece apresentar credibilidade para os empreiteiros e as construtoras que se impõem nos municípios. Prosperará, se conseguir prosperar, como aliado socialista-de-esquerda de um PS socialista-de-direita.
O que é útil nos termos esquerda e direita é serem relativos. Esquerda de quê, direita de quê? Se o Partido Socialista evoluir ainda mais para a direita, como é o seu destino natural no presente contexto europeu, o Bloco pode evoluir para a direita e continuar a apresentar-se de esquerda. Este milagre cumprem-no as palavras todos os dias. O que seria da política capitalista sem a ambiguidade das palavras!
E então o Bloco de Esquerda, plenamente inserido nas instituições dominantes e deixando para trás quaisquer ilusões, continuará a reformular a sua orientação económica. E já é mais do que tempo para isso. Salvar os bancos, dizem uns; não os salvar, bradam outros — como se o problema fosse os bancos e não os depósitos que lá estão, e o crédito sem o qual não existe actividade económica no capitalismo. Um dos indícios mais preocupantes do estado de decrepitude ideológica e de retrocesso histórico em que a esquerda hoje se encontra é vê-la defender a respeito da crise financeira doutrinas que caracterizaram a direita mais retrógrada aquando da crise da década de 1930. Pior ainda, porque a esquerda, que outrora foi internacionalista e mesmo depois de ter adoptado o nacionalismo na prática se manteve durante muito tempo internacionalista no discurso, defende agora na União Europeia as posições nacionalistas da direita retrógrada e vocifera contra a ampliação da soberania comunitária. Ora, a crise sentida pela Irlanda, pela Grécia e por Portugal e cuja sombra ameaça estender-se a Itália e à Espanha decorre, em última análise, da ausência de uma unificação fiscal completa na União Europeia. Irá a esquerda defender o nacionalismo da direita retrógrada ou o supranacionalismo dos capitalistas modernos?
São questões como estas que o Bloco de Esquerda vai ter de encarar, e fá-lo-á tanto mais facilmente quanto o economista que lhe preside raciocinar como economista. Mas as raízes do problema são profundas em Portugal. Contrariamente ao que sucede na Grécia, onde no final de 2009 um pouco mais de metade da dívida externa era da responsabilidade do governo, em Portugal o governo só é responsável por cerca de 1/4 da dívida externa, cabendo 55% às companhias financeiras. Ora, outro indício preocupante da situação ideológica da esquerda portuguesa é vê-la atacar mais o governo do que os empresários, como se governo e capitalismo se confundissem ou como se o capitalismo se limitasse ao governo. A actual crise portuguesa não se deve ao governo mas aos empresários, e quem são eles?
Num livro recente (Portugal Agrilhoado. A Economia Cruel na Era do FMI, Lisboa: Bertrand, 2011) Francisco Louçã, a principal figura política do Bloco de Esquerda, mostrou que um aumento da competitividade baseado numa redução dos salários, já de si baixos, não significa nenhum aumento da produtividade. «[…] a diminuição dos salários […] não resolve o problema da competitividade, porque cria uma economia especializada em produtos de pouco valor acrescentado […] e portanto cada vez menos competitiva» (pág. 57). Curiosamente, este livro, atribuindo todas as culpas da crise económica portuguesa a uma alta burguesia privilegiada pela sua ligação íntima ao aparelho de Estado, insuflou nova vida a uma das principais teses defendidas durante o salazarismo por Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista, para quem havia de um lado os «portugueses honrados» e do outro um «punhado de monopolistas» beneficiários do sistema corporativo fascista. «Os grandes grupos económicos dominam a economia», escreve Francisco Louçã, «precisamente porque vivem paredes meias com o Estado» (pág. 125). Mas a «relação estreita entre a política e os negócios», a que ele se refere, não singulariza Portugal, muito pelo contrário, caracteriza as elites capitalistas em todos os países, por isso não tem como regra o parasitismo económico e nem sempre se destina a «favorecer a acumulação rentista» (pág. 127).
Depois de recordar que «conseguir aumentar a produtividade é um problema essencial para a nossa economia» (pág. 107), Francisco Louçã considera que o investimento tem sido escasso, mal orientado e pouco eficiente e, retomando à sua conta um projecto ambicioso idealizado por José Sócrates e José Mariano Gago, respectivamente primeiro-ministro e ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior nos anteriores governos, ele inclui entre as suas propostas governativas «uma política industrial» voltada para a criação de «novos sectores produtivos, ligados a capacidades endógenas em campos de investigação como o mar, a cortiça, os produtos de consumo de qualidade ou produções científicas especializadas, como a farmacogenómica, as energias alternativas e os meios de transporte como os da mobilidade eléctrica. E deve criar novas empresas para esse efeito. Naturalmente, a actividade económica que crie exportações ou substitua importações deve ser impulsionada pelo investimento ou subsídio público, pelo apoio fiscal, nomeadamente à investigação, e por parcerias com unidades científicas como as universidades» (págs. 181-182).
Mas nas páginas do seu livro dedicadas ao aumento da produtividade Francisco Louçã não se preocupa com a estrutura do tecido empresarial, que além dos grandes grupos económicos é composto por empresas médias, pequenas e micro. Ora, é aí que reside o problema. Em 2004, na União Europeia, em média 29% dos empresários e 24% dos empregados tinham licenciatura universitária. Mas, de acordo com um inquérito realizado pelos institutos nacionais de estatística dos dois países ibéricos, nesse ano, em Portugal, apenas 11% dos empresários e 13% dos empregados tinham licenciatura universitária. Não é o facto de o país ter ficado abaixo da média europeia que nos deve espantar, porque a isto já estamos habituados. O que importa ressaltar é o facto anómalo de haver em Portugal uma maior percentagem de trabalhadores do que de patrões com o curso universitário. Um amigo brasileiro diz que é o caso de os pais ameaçarem os filhos: «Menino, olhe que se não estudar vai para patrão»! E a diferença agravou-se, porque em 2010, segundo o Instituto Nacional de Estatística, 9% dos patrões possuíam curso universitário, contra 19% dos empregados. Um tecido social em que os trabalhadores são, em média, mais qualificados do que os patrões explica muito dos limites que se erguem em Portugal ao desenvolvimento económico.
É neste meio empresarial ignaro que os doutores do Bloco de Esquerda terão de mergulhar ao passarem com armas e bagagens para as instituições dominantes. O Bloco de Esquerda só poderá lutar pela sobrevivência se caminhar para a direita, porque na esquerda não encontra amparo nem arrimo, e o ilusório basismo do Bloco ficou definitivamente condenado pela evolução dos Acampados do Rossio. Outro amigo observa-me que existe um barómetro simples e infalível — quanto maiores forem a audiência dos grupúsculos políticos e a sua capacidade de manipulação, tanto menores serão o dinamismo de um movimento e a sua força mobilizadora. Com efeito, num comunicado de 8 de Junho o movimento Democracia Verdadeira Já anunciou a intenção de realizar assembleias semanais nos bairros populares de Lisboa, mas os comunicados recentes informam que em vez disso os acampados colocaram as mochilas nos ombros e partiram além-fronteiras encontrar-se aqui e acolá com economistas alternativos. Ainda bem para eles, porque partilham mais a linguagem das franjas universitárias do que a da população comum. E há poucos dias o Democracia Verdadeira Já avisou que iria acampar na praia, uma espécie de curso de férias com programa, inscrições e doutores convidados.
O acampamento do Rossio não iniciou uma onda de entusiasmo que pusesse toda a população nas praças, debaixo de toldos, de lés a lés. Para que os Acampados se convertessem num movimento de base faltou uma coisa — a base.
Fotografias de Gérard Castello-Lopes.
A única base que precisa o BE são os trabalhadores por conta de outrem, os desempregados, os precários, os estudantes. Esta base representa 80% do pais. Que o BE ainda não seja capaz de chegar a ela com a sua mensagem, e a não ter credibilidade eleitoral é outra coisa distinta, mesmo que fundamental para os seus objetivos.
Em qualquer caso, a ideologia dominante que faz acreditar aos trabalhadores que os seus exploradores são os seus salvadores e que ricos e pobres sempre existirão, explica muito melhor a falta de capacidade de luta dos trabalhadores que a sua “confiança no governo que julga mais capacitado” como afirma o autor.
A direita tem sempre muitas penas mais ou menos boas para convencer aos de abaixo para aceitarem o seu destino. E a doctrina do BE como muleta do PS é uma proposta sempre muito utilizada.
Não, precisamos explicar ainda melhor que esta é uma guerra de classe onde os inimigos dos trabalhadores são entre outros os banqueiros e os seus comentaristas de serviço.