Mesmo que as alterações na infra-estrutura sejam implementadas a curto prazo, elas só a médio e longo prazo se repercutem plenamente sobre a produtividade. Por João Bernardo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
Ao contrário do que pretendem os agoureiros com a tese de que a abertura económica do Brasil e a política cambial compatível com esta abertura provocariam a desindustrialização, elas têm como consequência pressionar as empresas brasileiras, se quiserem sobreviver, a passar a patamares superiores de produtividade e, ao mesmo tempo, tornando mais baratas as importações, disponibilizam bens de capital modernos, que facilitam essa promoção tecnológica. Mas isto não basta, e para que os factores externos exerçam efeitos é necessário que dentro do país se proceda a extensas reformas.
Num estudo publicado em 2007 os economistas da firma financeira Goldman Sachs consideraram que as áreas exigindo a atenção prioritária do governo brasileiro eram a reforma fiscal; a diminuição do proteccionismo e o aumento do comércio externo em proporção do Produto Interno Bruto, PIB, e do comércio mundial; a melhoria do ensino; e reformas estruturais destinadas a aumentar a produtividade [1]. Tendo em conta o que já está em curso e o que falta fazer, creio que as atenções devem incidir sobretudo na questão dos investimentos. A tabela 1 indica a evolução dos investimentos, medidos pela formação bruta de capital fixo [2].
Tabela 1: Formação Bruta de Capital Fixo (em % do PIB)
Fonte: Werner Baer, A Economia Brasileira, São Paulo: Nobel, 2009.
É certo que o Ministério da Fazenda apresenta dados um pouco diferentes, possivelmente por adoptar outros preços base, como vemos na tabela 2.
Tabela 2: Formação Bruta de Capital Fixo (em % do PIB)
Fonte: Programa de Aceleração do Crescimento, PAC-2, Relatório 1.
Mas a discrepância entre as tabelas 1 e 2 não altera o quadro de estagnação que sobressai destes números.
O estudo da Goldman Sachs publicado em 2007 indicou o facto de que «o governo procedeu também a cortes no investimento público, reduzindo a taxa efectiva de investimento público para 0,5% do PIB, de 1,0% em 2002» [3]. Ora, já antes havia ocorrido uma queda de graves proporções dos investimentos governamentais, que em 1992 foram quase 50% inferiores aos valores de 1986, enquanto os investimentos privados caíram só 12% no mesmo período. Esta permanente escassez do investimento público faz com que as infra-estruturas padeçam de uma crise de longa data, como se pode verificar na tabela 3.
Tabela 3: Taxa de investimento em infra-estruturas (em % do PIB)
Fonte: Ricardo Carneiro, Impasses do Desenvolvimento Brasileiro: A Questão Produtiva, Texto para Discussão IE/UNICAMP nº 153, Novembro de 2008.
Não espanta, assim, que uma comissão oficial tivesse classificado como deficientes, más ou péssimas 80% das estradas do país. Para agravar a situação, calcula-se que em meados da década de 2000 os custos portuários médios no Brasil fossem de cerca de 41 dólares por tonelada, enquanto se reduziam a 18 dólares por tonelada nos Estados Unidos. E em Singapura 100 containers podiam ser carregados numa hora, mas em Santos, apesar de ser o maior porto da América Latina, a capacidade limitava-se a 30 containers por hora. As deficiências nas vias de comunicação criaram grandes problemas para as exportações do agronegócio, pois as áreas produtoras situam-se longe dos portos. «Por exemplo», elucidou Werner Baer, «o custo de transporte da soja no Brasil atingiu uma média de US$ 50 por tonelada, comparado a US$ 20 por tonelada nos Estados Unidos» [4]. E o deficiente escoamento portuário contribuiu para aumentar as dificuldades. É realmente preciso que o ramo das commodities tenha atingido um elevadíssimo grau de produtividade para ser mundialmente competitivo em tais condições de transporte. Aqueles que tanto peroram acerca dos inconvenientes da actual taxa de câmbio para as exportações fariam melhor em prestar mais atenção às infra-estruturas.
Será que existem agora condições para inverter a situação? Terá o Export Hub sido demasiado optimista ao escrever que «nos últimos quatro anos, os investimentos públicos em infraestrutura cresceram mais de 50% em termos reais»? [5] Com efeito, os investimentos públicos passaram de 1,62% do PIB em 2006 para 3,27% no período de Outubro de 2009 até Outubro de 2010.
O investimento público do governo federal foi activado no início de 2006, e em Janeiro do ano seguinte foi adoptado o Programa de Aceleração do Crescimento, PAC, que na sua versão inicial previa um investimento total de 503,9 milhares de milhões [bilhões] de reais entre 2007 e 2010, verba ampliada posteriormente. «O PAC é fundamentalmente um Programa de gastos de investimento público para estimular o crescimento», definiu sinteticamente João Sicsú, insistindo que o investimento público do PAC teria como objectivo a abertura de um espaço para a expansão do investimento privado [6]. «De modo geral, o principal mérito do PAC foi liberar recursos para o aumento do investimento público e estimular o investimento privado», escreveram Nelson Barbosa e José Antonio Souza [7]. O PAC previa uma estratégia tripla, aumentando o investimento público em infra-estruturas, estimulando o investimento privado e procedendo a remodelações administrativas e jurídicas que desimpedissem o investimento, mas o eixo principal era a melhoria das infra-estruturas. Por outro lado, os estímulos fiscais propostos pelo PAC, além de aliviarem os empreendimentos de infra-estrutura e a construção civil, beneficiaram ramos industriais de bens de capital com maior intensidade tecnológica, como equipamentos para televisão digital, computadores e semicondutores.
Os críticos do PAC observaram que a verba proposta, de 503,9 milhares de milhões de reais, incluía recursos orçamentais já previstos anteriormente, bem como programas de investimento já formulados por grandes companhias estatais, e portanto o impacto do Programa no crescimento dos investimentos seria bastante menor do que o anunciado. Gilmar Lourenço destacou «a natureza tímida e parcial do PAC» e, segundo a Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base, ABDIB, o Programa responderia a menos de metade do necessário para resolver os estrangulamentos logísticos do país [8]. À medida que o PAC se aproximava do seu termo os críticos faziam notar o atraso na implementação dos investimentos previstos e em Março de 2010, data anunciada para a conclusão do Programa, só 63% da verba havia sido gasta. Mesmo o secretário-executivo do Ministério da Fazenda e um seu assessor reconheceram que um «problema revelado pelo PAC» foi «a baixa da capacidade de formulação e execução de investimento por parte do Estado brasileiro» [9].
No entanto, o Comité Gestor do PAC explicou: «Os investimentos executados pelo programa chegarão a R$ 619 bilhões [milhares de milhões] até 31 de dezembro de 2010. Esse valor representa 94,1% dos R$ 657,4 bilhões previstos para serem investidos pelo programa no período 2007-2010. Até 31 de outubro deste ano, o montante investido atingiu R$ 559,6 bilhões, equivalentes a 85,1% do total previsto. Os empreendimentos concluídos no âmbito do PAC alcançarão R$ 444 bilhões até dezembro de 2010. O valor representa 82% dos R$ 541,8 bilhões previstos para serem concluídos no período 2007-2010» [10]. E em Março de 2010 o governo lançou o PAC-2, que o Comité Gestor classificou como «o maior projeto estratégico já feito no Brasil» [11]. Com efeito, o plano de investimento em infra-estruturas de incidência material e social previa a aplicação de 958,8 milhares de milhões de reais de 2011 até 2014.
Entretanto o governo federal lançara em Maio de 2008 a Política de Desenvolvimento Produtivo, PDP, baseada na parceria do sector público com o privado, com o objectivo central de acelerar a inovação e aumentar a produtividade da indústria, principalmente através do aumento do investimento. Prevista para durar até 2010, os seus resultados não foram satisfatórios. Nomeadamente, a percentagem ocupada no PIB pela formação bruta de capital fixo, que fora de 17,6% em 2007 e que o governo pretendia elevar para 21% em 2010 — era este «o eixo central da nova política» [12] — ficou em cerca de 19%. Perante isto, em Maio de 2011 foi anunciada para breve uma nova versão da PDP e em Agosto foi lançado o Plano Brasil Maior, que tem como um dos principais objectivos o aumento dos investimentos em capital fixo de 18,4% do PIB para 22,4% até 2014.
Admitindo que no futuro a PDP funcione com eficácia e o mesmo suceda ao Plano Brasil Maior, e admitindo que os apologistas do PAC tenham razão e este Programa suscite efeitos em cadeia sobre o investimento, o certo é que mesmo que as alterações na infra-estrutura sejam implementadas a curto prazo, elas só a médio e longo prazo se repercutem plenamente sobre a produtividade. Porém, um verdadeiro optimismo foi manifestado por Victor Yuan, presidente no Brasil e vice-presidente mundial da companhia transnacional de matriz chinesa Sany Group, fabricante de máquinas e equipamentos pesados para engenharia, que estabeleceu uma filial no Brasil, representando um investimento de 200 milhões de dólares. Yuan considerou que o Brasil e a China «têm muitos aspectos similares no que diz respeito ao ritmo de crescimento da economia. “Nos últimos vinte anos a China experimentou um crescimento significativo nas áreas de infraestrutura e vejo que isso está acontecendo hoje no Brasil”» [13].
Todavia, num interessantíssimo texto, Carlos Gonçalves argumentou que o investimento, geralmente apresentado como um motor do crescimento económico, é ele mesmo um resultado desse crescimento. Para este economista o mecanismo central é o aumento da produtividade, que provoca expectativas de maiores lucros e, assim, leva ao aumento dos investimentos [14]. Ora, um estudo do McKinsey Global Institute, publicado em Março de 1998, constatou que «com exceção do aço, a produtividade de todos os sectores no Brasil não atinge a metade da produtividade nos Estados Unidos, e a do processamento e comercialização de alimentos atinge menos de 20% que a dos Estados Unidos. Mesmo os modernos setores de companhias aéreas, telecomunicações, bancário e montagem de veículos são 50% inferiores» [15]. Em que medida a situação se alterou? Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, no período de 1990 a 2003 o crescimento médio da produtividade na indústria de transformação brasileira foi de 2,3% por ano [16], e André Nassif considerou que se atribuirmos à produtividade do trabalho no Brasil, medida como taxa da produção física por pessoal ocupado, o índice 100 no ano de 1991, ela atingiu em 2005 um índice superior a 160 [17]. Todavia, citando pesquisas da Organização Internacional do Trabalho, Gilmar Lourenço afirmou que a produtividade no Brasil, medida em produto por trabalhador, desceu de 15,1 mil dólares anuais em 1980 para 14,7 mil em 2005, o que representou uma queda de 19% para 5% relativamente à produtividade da mão-de-obra nos Estados Unidos [18].
Se admitirmos a tese proposta por Carlos Gonçalves e considerarmos que a produtividade é a variável que antes de tudo deve ser mudada, então no caso do Brasil a educação fica colocada em primeiro plano. Sem dúvida que existem outros factores além da educação a determinar o nível de produtividade, nomeadamente factores institucionais — os que mais preocupam Carlos Gonçalves, na perspectiva neoliberal que adopta — e também factores tecnológicos. Mas os problemas na educação são mais difíceis de resolver do que os problemas da tecnologia material ou dos sistemas organizativos dependentes de decisões governamentais.
Notas
[1] Goldman Sachs Global Economics Group, BRICs and Beyond, 2007, págs. 75-80.
[2] A formação bruta de capital fixo mede o investimento em meios de produção duráveis — máquinas, equipamentos e instalações — realizado pelas empresas, para ser utilizado por um prazo superior a um ano. Esta formação é bruta porque engloba tanto o investimento líquido como o de substituição.
[3] Goldman Sachs Global Economics Group, op. cit., pág. 80.
[4] Werner Baer, A Economia Brasileira, São Paulo: Nobel, 2009, pág. 419 n. 74.
[5] «Exportação Brasil: diagnóstico errado da desindustrialização», site Export Hub, 27 de Abril de 2011.
[6] João Sicsú, «PAC: quatro anos depois o governo tenta mudar o rumo», em Arrecadação de onde vem? E Gastos Públicos para onde vão?, São Paulo: Boitempo, 2007, págs. 12-13; a frase citada encontra-se na pág. 15.
[7] Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Sousa, «A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda», em Emir Sader e Marco Aurélio Garcia (orgs.), Brasil: Entre o Passado e o Futuro, São Paulo: Boitempo, 2010.
[8] Gilmar Mendes Lourenço, «Programa de Aceleração do Crescimento: o pedaço fiscal de uma estratégia», Análise Conjuntural, vol. 29 nº 1-2, Janeiro-Fevereiro de 2007, págs. 9 e 11.
[9] Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza, op. cit.
[10] Programa de Aceleração do Crescimento, PAC, Balanço 4 Anos, 2007-2010, pág. 3.
[11] PAC-2, Relatório 1, Março de 2010, pág. 3.
[12] Confederação Nacional da Indústria, Avaliação da Política de Desenvolvimento Produtivo – PDP, Brasília: CNI, Maio de 2008, pág. 4.
[13] «Sany (da China) define Brasil como prioridade», Valor Econômico, 20 de Dezembro de 2010.
[14] Carlos Eduardo Soares Gonçalves, «Produtividade e instituições no Brasil e no mundo: ensinamentos teóricos e empíricos», em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), Brasil Globalizado. O Brasil em um Mundo Surpreendente, Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, págs. 198-199.
[15] Citado em Werner Baer, op. cit., págs. 237-239.
[16] Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, Ocorreu uma Desindustrialização no Brasil?, Novembro de 2005, pág. 15.
[17] André Nassif, Há Evidências de Desindustrialização no Brasil?, Textos para Discussão nº 108, Rio de Janeiro: BNDES, Julho de 2006, pág. 12.
[18] Gilmar Mendes Lourenço, «Limites do crescimento brasileiro», Análise Conjuntural, vol. 29 nº 9-10, Setembro-Outubro de 2007, pág. 4.
Esta série inclui os seguintes artigos
1) hesitações
2) desindustrialização ou avanço tecnológico?
3) infra-estruturas
4) ensino e Pesquisa e Desenvolvimento
5) capitalismo burocrático
6) transnacionalização tardia
7) geografia do novo imperialismo
8) teia do novo imperialismo
Pelo que tenho lido por aí o João Bernardo é de longe o autor que melhor analisa o movimento do capital, tanto dentro das fronteiras brasileiras quanto à nível global (até porque tal separação é impossível). Não é de se duvidar que os grandes empresários estejam lendo tais artigos, tais como devem ler O Capital de Marx.
Como dito anteriormente por JB, tais artigos servem, ao menos, para enterrar alguns defuntos que ainda respiram na “esquerda”, pricipalmente os que não conseguem superar a crítica ao capital de um ponto de vista nacionalista.
A defesa da nacionalização (o mesmo que estatização), passou a ser um romantismo reacionário, que não observa o movimento do capital na atualidade. Não se trata de defender o movimento do capital e tentar tornar o Brasil ou ao menos algumas empresas e empresários brasileiros na vanguarda do capitalismo (isto é uma preocupação que eles próprios devem ter, cumprindo o seu papel), mas de, partindo da análise do movimento do capital, pensar a sua negação, o movimento operário e a sua dinâmica, que há de ser, portanto, autogestinária. Parafraseando e atualizando Marx, ou o movimento operário é autogestionário ou não é nada.
Uma pergunta: JB e demais, o que acham da crítica do ELAOPA ao IIRSA?
Aguardo as críticas…
Giancarlo,
Eu não acompanhei o ELAOPA, por isso não lhe sei responder. Talvez haja leitores que possam dar resposta.
Me parece que as críticas à IIRSA podem ser encontradas nestes dois links:
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2011/03/488112.shtml
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2011/03/488133.shtml
Caro João Bernardo,
Venho tentando compreender as condições gerais da produção (CGP). Estudando sua obra “Economia dos Conflitos Sociais” encontra-se a seguinte passagem: “(…) As CGP não se limitam ao que geralmente se denomina “infra-estruturas”, mas cobrem todo o campo da tecnologia; que defino como aquele em que as relações sociais de produção se articulam com a sua realização material. As técnicas são esta realização estritamente material e na tecnologia concebe-se a articulação das técnicas com a sociedade” (p.157, ed. Cortez) Mais a frente (p.232): “Para mantê-las e, em tantos casos, para criá-las, o Estado R cobra impostos entre a generalidade dos capitalistas”.
Embora eu entenda que, de fato, cada capitalista ou grupo capitalista se aproveite em graus variados das CGP, os recursos viriam não da “generalidade dos capitalistas”, mas da generalidade dos trabalhadores pela extração de mais-valia, posto que todos os impostos, taxas e afins “pagos” pelos capitalistas são repassados no custo de suas mercadorias (qualquer manual de contabilidade de custos inclui nos custo de produção e venda os impostos e taxas), sejam elas bens ou serviços, ao verdadeiro consumidor final, a classe trabalhadora, que é o única nessa “relação social de produção” que não tem como repassar nem os custos da CGP a outros (nem os custos da sua própria produção e reprodução). Peço que me corrija se eu estiver equivocado em minhas interpretações.
Diante do exposto, como compreender as relações sociais de produção das CGP no “Brasil hoje e amanhã” de 2011 e o de 2019, especialmente com as reformas trabalhistas, previdênciárias e a desestatização?
Grato pela atenção,
Gilberto.
Caro Gilberto,
A minha resposta fica talvez facilitada se eu contextualizar o problema. Quando preparava um livro publicado em 1977, Marx Crítico de Marx (Porto: Afrontamento, 3 vols.), dei-me conta de que um dos aspectos centrais da minha crítica a O Capital incidia na forma como era apresentada a transformação dos valores em preços. Esta transformação foi desde cedo objecto de várias críticas, começando pelas de Böhm-Bawerk e de Bortkiewicz, e posteriormente os marxistas preferiram esquecer-se da questão em vez de tentar resolvê-la, o que seria impossível no modelo marxista clássico. Aliás, a tese defendida hoje em alguns meios marxistas, de que ocorreria uma baixa real e efectiva da taxa de lucro, recorre ingenuamente a dados formulados em termos de preços como se eles representassem valores.
Em O Capital Marx concebeu o que eu denominei como «modelo a uma só empresa», limitando-se à relação entre os trabalhadores de uma empresa e o patrão dessa empresa, e apresentou a globalidade do capitalismo como uma multiplicação ilimitada dessa relação. O beco sem saída a que Marx chegou quando tentou transformar os valores em preços resulta desse modelo a uma só empresa. Para ultrapassar o impasse, eu propus um modelo, que continuo hoje a usar, em que a globalidade dos trabalhadores se relaciona com a globalidade dos capitalistas. Assim, a mais-valia é produzida conjuntamente por todos os trabalhadores e apropriada em bloco por todos os capitalistas. É a partir daqui que se coloca o problema da distribuição desigual da mais-valia entre os capitalistas, e a transformação dos valores em preços ocorre nessa distribuição desigual.
Note-se, de passagem, que neste meu modelo a questão da desigualdade centro / periferia não diz respeito às relações de exploração entre trabalhadores e capitalistas, mas apenas às relações intercapitalistas. É esta a fundamentação económica de toda a minha crítica ao nacionalismo e, portanto, ao sucedâneo actual do nacionalismo, que é o identitarismo.
Mas, para não me afastar da questão colocada por Gilberto, uma das formas como se processa a distribuição desigual da mais-valia entre os capitalistas decorre das diferentes relações estabelecidas entre cada empresa e as várias condições gerais de produção. As relações entre o Estado Amplo e o Estado Restrito, entre o económico e o político, bem como a chamada corrupção, tudo isto decorre da competição entre os capitalistas para o estabelecimento de relações mais favoráveis com as condições gerais de produção.
Nesta perspectiva, as chamadas privatizações consistem na passagem da propriedade de um grupo de capitalistas (gestores nomeados directa ou indirectamente pelo governo) para outro grupo de capitalistas, o que diz apenas respeito às relações intercapitalistas. Na realidade, as privatizações ocorrem devido à necessidade de abrir as empresas aos capitais estrangeiros e às inovações tecnológicas que essa abertura acarreta, o que é uma condição indispensável para não perder a capacidade concorrencial numa época marcada pela transnacionalização do capital.
Quanto à reforma da previdência, ela resulta da necessidade sentida pelo capitalismo brasileiro de reestruturar um sector restrito da classe trabalhadora no Brasil, beneficiária do velho sistema, dentro de uma reestruturação geral da classe trabalhadora, aumentando-lhe a mobilidade, de forma a adequá-la à uberização do trabalho. Este é um processo que diz respeito às relações entre a globalidade dos capitalistas e a globalidade dos trabalhadores, e que certamente exigirá a adequação de algumas condições gerais de produção.
Caro João Bernardo,
Agradeço imensamente sua resposta. E peço sua licença, mais uma vez, para levantar uma outra questão.
Um dos meus motivos da tentativa de compreender as CGP é justamente para entender o identitarismo.
Segundo o site G1:
“A Prefeitura de São Paulo afirmou nesta sexta-feira (28) que a 23ª edição da Parada LGBT movimentou R$ 403 milhões na economia da cidade. O evento aconteceu no último domingo (23) e reuniu 3 milhões de pessoas na Avenida Paulista, segundo os organizadores” (https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/06/29/23a-parada-lgbt-movimentou-r-403-milhoes-em-sao-paulo-diz-prefeitura.ghtml).
Mas este exemplo (dentre tantos milhares de outros possíveis), que poderíamos situar no campo daquele tempo livre apropriado pelo capital para a reprodução do trabalhador (o que não exclui, simbólica e literalmente, a produção do trabalhador…), demonstra apenas uma ínfima parte de um processo muito mais complexo, não se reduzindo, portanto, apenas ao campo do consumo.
Em um site de uma faculdade identitária lê-se:
“Um dos maiores agentes de transformação é o empresariado, o qual, através da redefinição das suas práticas e da sua cultura organizacional, voltando-as para as urgentes necessidades sociais, pode protagonizar, com impressionante velocidade, desde que sensível e atento a tais demandas, a promoção do respeito a todas as pessoas, considerando os segmentos da população que se encontram em situação de vulnerabilidade, desigualdade e exclusão, como a população negra. O sucesso e a sustentabilidade dos negócios dependem não apenas de produtividade e competitividade, mas também, e cada vez mais, do compromisso social da empresa com seus públicos de interesse. A Iniciativa Empresarial pela Igualdade, representa uma plataforma de articulação entre empresas comprometidas em buscar um desempenho ainda mais significativo na abordagem do tema, bem como assegurar vantagem competitiva, constituindo-se em um espaço de diálogo do empresariado brasileiro em torno dos seus compromissos com a inclusão, promoção e valorização da diversidade étnico-racial.”(http://www.zumbidospalmares.edu.br/diversidade-empregabilidade-e-empreendedorismo/).
Se meias palavras bastam para explicar, palavras inteiras como as acima postas explicam a inteireza da utilidade do identitarismo…
Trouxe estes dois exemplos para fazer uma pergunta daquelas que levam à fogueira:
Se Considerarmos o toyotismo como sendo, antes de mais nada, uma “técnica social de dominação” (conforme RAGO, Luzia Margareth; MOREIRA, Eduardo FP. O que é taylorismo. Brasiliense, 1993, p. 25) e que esta técnica social de dominação se caracteriza, numa síntese muito breve, pela acumulação flexível do capital, poderíamos dizer que os identitarismos surgem quase que concomitante ao início da implementação generalizada do toyotismo ( aprox. 1960/1970, observando-se, inclusive, alguma correlação entre movimentos tipos hippies, feministas, negros, etc…) e se desenvolvem e se integram ao sistema toyotista? Em outras palavras, a flexibilização social dos identitarismos não se tornou um elemento chave na acumulação flexível do capital?
Bom, se for para ser queimado… que eu queime no esclarecimento, não na ignorância…
João Bernardo, muito grato por sua atenção e esclarecimentos!
Gilberto.
*
Esclarecimento:
Na passagem de meu comentário “Se Considerarmos o toyotismo como sendo, antes de mais nada, uma “técnica social de dominação” (conforme RAGO, Luzia Margareth; MOREIRA, Eduardo FP. O que é taylorismo. Brasiliense, 1993, p. 25)” apenas a expressão “técnica social de dominação” é de autoria dos referidos autores, que utilizaram a mesma em referência ao taylorismo e não ao toyotismo, embora eu entenda tal relação (toyotismo/ “técnica social de dominação”) possível.
Caro Gilberto,
Desde há bastantes anos que apresento um modelo em que os ciclos de mais-valia relativa pressupõem a assimilação de formas de organização social criadas pelos trabalhadores ou, pelo menos, difundidas entre os trabalhadores, e que o capitalismo instrumentaliza em seu benefício. Como você sabe, analisei este processo no Economia dos Conflitos Sociais, e Luc Boltanski e Ève Chiapello estudaram um caso desta dialéctica de assimilação e recuperação em Le nouvel esprit du capitalisme ([Paris]: Gallimard, 1999), sobretudo nas págs. 241-290. Sucede o mesmo com os identitarismos, que estão hoje completamente instrumentalizados pelas empresas mais modernas e inovadoras, integrados nos mecanismos da mais-valia relativa.
Comecei a publicar neste site uma série de artigos com o título geral Anticapitalismo. Anti o quê?, e hei-de referir a instrumentalização do identitarismo pelo capital no terceiro artigo, previsto para o dia 4 de Setembro. Se você for para a fogueira, iremos juntos.
Mas esta questão está especialmente bem estudada num livro de Pablo Polese, a ser publicado dentro de poucos meses. Pablo Polese recorre a uma grande quantidade de factos, dados, estatísticas e relatórios de administrações de empresas, mostrando como os identitarismos são usados para estimular o processo de mais-valia relativa e aumentar os lucros do capital. Outro a ir para a fogueira, se é que já lá não está.
Caro João Bernardo,
Agradeço novamente suas orientações e indicações.
Ficaremos, todos nós certamente, no aguardo de seus novos artigos e do livro do Pablo Polese.
Saudações,
Gilberto.