Não é a internacionalização da economia mas a sua projecção além-fronteiras que constitui uma novidade no Brasil. Por João Bernardo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
O estabelecimento de filiais no estrangeiro somente para dar apoio às exportações é uma forma incipiente de internacionalização, e uma forma arcaica. Alguns teóricos defendem que esta é sempre a fase inicial do processo e outros acrescentam que agora, na época da transnacionalização, é uma fase rapidamente superada. Criar filiais para produzir um artigo ou um serviço ou participar na sua produção corresponde à fase desenvolvida do processo. Como escrevi em A geopolítica das companhias transnacionais, nas companhias multinacionais propriamente ditas as filiais tendiam a reproduzir em ponto pequeno o modelo da matriz, enquanto que as companhias transnacionais dispersam por vários países cada cadeia produtiva e podem eventualmente fraccionar ou deslocalizar a sede. A transnacionalização diz respeito à integração mundial das cadeias produtivas.
Com a crescente dispersão geográfica das várias fases das cadeias produtivas e, em consequência disto, com a crescente conversão do comércio externo em comércio intrafirmas — assuntos que abordei no referido artigo — as exportações e as importações tornaram-se um critério insatisfatório para avaliar a internacionalização de uma economia, que se mede muito mais pelos investimentos externos directos [1]. Ora, se começarmos por considerar o lugar ocupado no mundo pela transnacionalização do capitalismo brasileiro, verificamos que a evolução dos investimentos directos emanados do Brasil, calculados relativamente à formação bruta de capital fixo [2], ou seja, em termos simples, a comparação entre os investimentos realizados fora e dentro do país, não sustentava até 2003 o confronto com os restantes BRICs [3] e mesmo com a média das economias em desenvolvimento, como verificamos na tabela 1.
Tabela 1: Investimentos Externos Directos em % da Formação Bruta de Capital Fixo
Fonte: Karl P. Sauvant, «O investimento direto estrangeiro dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) no exterior», em André Almeida (org.), Internacionalização de Empresas Brasileiras: Perspetivas e Riscos, São Paulo: Elsevier, 2007.
A tabela 2 confirma a debilidade da posição internacional da economia brasileira até meados da década passada.
Tabela 2: Participação do stock de Investimentos Externos Directos realizados por seis países em desenvolvimento no stock total (em %)
Fonte: Daniela Corrêa e Gilberto Tadeu Lima, «O comportamento recente do investimento direto brasileiro no exterior em perspectiva», Revista de Economia Política, vol. 28 nº 2, Abril-Junho de 2008.
Apesar de em 2005 o Brasil manter o primeiro lugar entre os países mencionados na tabela 2, foi ele o único cuja posição declinou, se exceptuarmos a ligeira descida da Argentina, que correspondeu praticamente a uma estagnação. Esta noção de um desenvolvimento retardatário fica reforçada ao compararmos os investimentos directos originários do Brasil em termos de stock, a médio prazo, e em termos de fluxo, a curto prazo, e ao situarmos esta comparação no contexto mundial, consoante a tabela 3.
Tabela 3: Fluxos e stocks de Investimento Externo Directo emanado
Fonte: United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2009. Transnational Corporations, Agricultural Production and Development, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2009.
Devemos ter em conta que em 2006 o fluxo de investimentos directos oriundos do Brasil atingiu o valor mais elevado em termos absolutos, e vemos que o desempenho dos fluxos no curto prazo não foi significativamente melhor do que o desempenho dos stocks a médio prazo. Ora, os stocks revelam o peso adquirido, enquanto os fluxos apontam para o presente e o futuro imediato, o que deixa pairar uma dúvida sobre o destaque que o Brasil está a obter no contexto mundial. Aliás, de acordo com o World Investment Report 2006, nos anos anteriores aos registados na tabela 3 os fluxos de investimento directo oriundos do Brasil em percentagem da formação bruta de capital fixo não atingiram valores significativos, limitando-se a 0,3% em 2003, 8,3% em 2004 e 1,6% em 2005 [4].
Nestas circunstâncias, não espanta que poucas companhias de origem brasileira figurem entre as grandes transnacionais. Em 2003, das 100 maiores companhias transnacionais não financeiras dos países em desenvolvimento, o Brasil contava apenas 3, e a situação continuava idêntica quatro anos depois, segundo os World Investment Reports. É igualmente significativa a ausência, no âmbito mundial, de firmas de origem brasileira nos ramos da informática e das telecomunicações, embora existam algumas importantes no âmbito interno. E como estes ramos se situam hoje na vanguarda das inovações tecnológicas e como é aí que mais têm progredido os países emergentes asiáticos, parece confirmar-se a evolução retardatária da economia brasileira. Mesmo considerando o número total de companhias transnacionais de matriz brasileira, o progresso do país tem sido lento, como se constata na tabela 4.
Tabela 4: Número de sedes de companhias transnacionais
Fonte: United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006. FDI from Developing and Transition Economies: Implications for Development, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2006.
Esta série de dados relativos aos investimentos directos emanados do Brasil faz pairar uma dúvida sobre a internacionalização económica do país, mas ela é em boa medida ilusória, porque não devemos esquecer que desde os meados da década de 1950 até aos anos recentes a internacionalização se operou, passe o paradoxo, em direcção ao interior do país e não ao exterior, graças ao considerável afluxo de investimentos directos oriundos do estrangeiro. Não é a internacionalização da economia mas a sua projecção além-fronteiras que constitui uma novidade no Brasil, e é esta ambiguidade que temos de desvendar se quisermos compreender os rumos futuros do capitalismo brasileiro.
Assim, recorrendo a outros critérios a posição ocupada pela economia brasileira entre as economias emergentes aparece a nova luz. Em 2004, segundo Ana Cláudia Além e Carlos Cavalcanti, o stock do investimento externo directo colocava o Brasil em primeiro lugar entre os países latino-americanos e em quarto lugar entre as economias em desenvolvimento [5]. Vemos na tabela 5 que, em comparação com economias que funcionam como plataformas de internacionalização, como Hong Kong e Singapura, o stock de investimentos externos directos emanados do Brasil parece muito baixo tanto per capita como em percentagem do Produto Interno Bruto, PIB. Mas não é com este tipo de economias que o Brasil deve ser comparado, e a diferença torna-se bastante menor relativamente à África do Sul e à Rússia, ficando a Coreia do Sul ultrapassada pelo Brasil se considerarmos o stock em percentagem do PIB. A comparação mais significativa, porém, estabelece-se com a China, e consoante este critério a situação do Brasil afigura-se bastante favorável.
Tabela 5: Stock de Investimentos Externos Directos emanados (em 2005)
Fonte: United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006. FDI from Developing and Transition Economies: Implications for Development, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2006.
Iremos deduzir desta ambiguidade que a recente projecção mundial da economia brasileira constitui um fogo de vista, sem continuidade? Ou que se trata de um começo que mal revela o potencial acumulado?
Analisando as razões que levaram a economia a crescer com demasiada lentidão durante o primeiro governo Lula, os especialistas da firma financeira Goldman Sachs escreveram: «O principal motivo do desempenho insatisfatório do Brasil é que, até agora, o governo tem estado ocupado com a implementação de um programa de estabilização, com o objectivo de atingir a estabilidade macroeconómica. Esta é uma pré-condição chave para o crescimento. Graças a este esforço de ajustamento, as condições macroeconómicas são mais favoráveis agora do que têm sido desde há décadas» [6]. Impressiona no Brasil o contraste entre o dinamismo acumulado na base económica interna e a escassez de investimentos externos directos. Isto leva a presumir que eles irão aumentar muito em breve e que os próximos anos trarão uma imagem real do país a que a população não está habituada. Como escreveram Ana Cláudia Além e Carlos Cavalcanti, «os fluxos de investimento diretos feitos no exterior pelo Brasil são ainda muito pequenos quando comparados ao tamanho de sua economia. Ou seja, há um grande potencial de aumento desses fluxos no futuro» [7].
A conclusão que tenho vindo a tirar, neste como noutros artigos, é que nas últimas décadas a economia brasileira acumulou internamente elementos de solidez, reforçados durante o primeiro governo Lula, que lhe conferem agora o potencial para uma expansão além-fronteiras. Por isso traço o retrato geral de uma economia com uma grande capacidade de crescimento e que estará eventualmente apta a usar esta base para a expansão internacional e transnacional. Referindo-se a 2009, escreveram dois economistas da Goldman Sachs: «Este ano, o Brasil foi o país que tomou a dianteira nos BRICs. Não só foi ele um dos 35 países a terem o melhor desempenho global como é agora, entre os BRICs, aquele que ocupa o lugar mais elevado na lista do Growth Environment Score. Esta ascensão baseou-se num amplo leque de factores, com uma progressão especialmente acentuada na tecnologia (sobretudo telemóveis) e ainda nas condições macroeconómicas e políticas. A melhoria da posição ocupada no Growth Environment Score reflecte-se no reconhecimento geral de que o Brasil merece estar incluído nos BRICs» [8]. Os capitalistas investem no Brasil, tanto os estrangeiros como os brasileiros, mas dará a operação os lucros desejados?
Notas
[1] Classificam-se como investimentos externos directos aqueles que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa estrangeira onde o capital é aplicado. Considera-se habitualmente que o investimento é directo quando permite adquirir uma participação superior a 10% do capital de empresas estrangeiras. Uma participação inferior é considerada como um investimento de portfolio ou investimento em carteira.
[2] A formação bruta de capital fixo mede o investimento em meios de produção duráveis — máquinas, equipamentos e instalações — realizado pelas empresas, para ser utilizado por um prazo superior a um ano. Esta formação é bruta porque engloba tanto o investimento líquido como o de substituição.
[3] Em 2001 Jim O’Neill, economista-chefe da firma financeira Goldman Sachs, reuniu num grupo o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, fazendo um acrónimo fácil de fixar porque se pronuncia como a palavra inglesa que significa tijolo.
[4] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006. FDI from Developing and Transition Economies: Implications for Development, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2006, pág. 311.
[5] Ana Cláudia Além e Carlos Eduardo Cavalcanti, «O BNDES e o apoio à internacionalização das empresas brasileiras: algumas reflexões», Revista do BNDES, vol. 12 nº 24, Dezembro de 2005, págs. 50-53.
[6] Goldman Sachs Global Economics Group, BRICs and Beyond, 2007, pág. 75.
[7] Ana Cláudia Além e Carlos Eduardo Cavalcanti, op. cit., pág. 53.
[8] Jim O’Neill e Anna Stupnytska, The Long-Term Outlook for the BRICs and N-11 Post Crisis, Global Economics Paper nº 192, Goldman Sachs, 4 de Dezembro de 2009, pág. 15.
Esta série inclui os seguintes artigos
1) hesitações
2) desindustrialização ou avanço tecnológico?
3) infra-estruturas
4) ensino e Pesquisa e Desenvolvimento
5) capitalismo burocrático
6) transnacionalização tardia
7) geografia do novo imperialismo
8) teia do novo imperialismo
“Nunca antes na história deste país”, eu acho que já ouvi isso em algum lugar.
“Isto leva a presumir que eles irão aumentar muito em breve e que os próximos anos trarão uma imagem real do país a que a população não está habituada.”
estaríamos certos em afirmar que boa parte da classe trabalhadora, desde os garis, passando pela construção civil, até taxistas e afins, estão cada vez mais “antenados” nesta nova imagem real do país, mesmo sob a carga das campanhas publicitárias do empresariado realizadas na grande imprensa?
Ou seja, estamos vendo a mobilização da classe trabalhadora brasileira animada muito mais por saber que podem e devem ganhar mais, do que lutando contra um cenários pessimista de ajustes? (talvez no caso brasileiro falar em ajuste não esteja correto, pois nunca houve uma situação positiva primeira para que então fosse “ajustada”)
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/04/1439864-copa-vira-chamariz-para-temporada-de-greves-por-reajustes.shtml