Por Manolo
Leia a primeira e a terceira partes do artigo.
III
As demandas da Revolta do Buzu não foram alcançadas em sua totalidade, mas a vivência dos bloqueios teve efeitos duradouros em seus participantes.
A Revolta do Buzu foi um evento tão conflitivo, onde interesses tão diversos e dispersos se encontraram, que mesmo suas pautas se entrechocavam. As pichações nos ônibus e telefones públicos indicavam, além das frases de efeito (“R$ 0,50 é o do pão”, “fora Imbassahy”, “é R$ 1,00 nesta desgraça”, “viva aos estudantes” (sic), “hoje é de graça”, etc.), o desejo que certamente era o de todos: passagem a R$ 1,00 e meia-passagem o ano inteiro. A pauta levada ao Prefeito, ao Secretário de Transportes e aos vereadores no dia 02 de setembro por uma “comissão de negociação” auto-constituída resgatou algumas demandas históricas do movimento estudantil soteropolitano (meia passagem o ano inteiro, extensão da meia passagem aos cursos de pós-graduação) e levantou pontos ligados à democratização do transporte coletivo público em geral (constituição de uma Comissão para Estudos da Desoneração da Tarifa e a reabertura do Conselho Municipal de Transportes). As assembléias dos dias 4 – que destituiu a “comissão” do dia 02 – 5 e 9 de setembro definiram os pontos de pauta do movimento, que eram então bem claros: redução da passagem para R$ 1,30; congelamento da tarifa neste valor por um ano; passe livre para estudantes de escolas públicas – este último, um ponto de pauta marginalizado, não encampado pelas comissões de negociação e abafado no decorrer do movimento.
O que a comissão auto-constituída do dia 02 de setembro conseguiu em seu acordo com a Prefeitura foi a extensão da meia-passagem para domingos, feriados e férias; congelamento da tarifa até setembro de 2004; aumento da cota de uso diária da meia-passagem (quatro para secundaristas, seis para universitários); concessão de meia-passagem para estudantes de pós-graduação; admissão da meia-passagem no sistema de transporte complementar (vans que rodam em linhas curtas, geralmente em subúrbios); reabertura do Conselho Municipal de Transportes; criação de uma Comissão para Estudos da Desoneração da Tarifa. Estas conquistas, além dos benefícios mais que evidentes, serviram como evidência, na história do movimento, da incapacidade das entidades estudantis de fazer qualquer forma de movimentação política radicalizada de grande porte, e de seu distanciamento do cotidiano do estudante. Desde que em 1996 foi implementado o cartão eletrônico de meia-passagem – o “smart-card” – que as entidades estudantis brigavam pelo aumento de sua cota, pelo seu uso aos domingos e feriados e pelo seu uso nas férias, mas dificilmente conseguiam mobilizar os estudantes para a luta. As conquistas são, sim, justas e válidas, até porque aliviam – e muito – a situação financeira dos estudantes e de suas famílias; não se pode, entretanto, chamá-las de grandes vitórias, porque a conjuntura em que elas foram conseguidas é outra, muito mais radical, que abria novas possibilidades para o crescimento de um movimento popular radicalizado, ou pelo menos favorecia a reorganização do movimento estudantil secundarista em Salvador.
Garantir o uso da meia passagem o ano inteiro foi ótimo, apesar, infelizmente, de ter sido a única coisa que as entidades conseguiram de fato da Prefeitura a partir de um movimento extremamente radicalizado como foi a Revolta do Buzu – e não pela sua própria força, mas porque já existiam projetos de lei neste sentido tramitando na Câmara, em especial o do então vereador Gilmar Santiago (PT). Este fato gerou inclusive a hipótese levantada pelo secretário de transportes Ivan Barbosa, de que o movimento teria sido causado para aproveitar o tema do aumento das passagens e forçar a aprovação deste projeto de lei – o que, à primeira análise e do ponto de vista dos diretores de entidades estudantis, é bem possível. Fica a pergunta: o movimento conseguiria alguma coisa na ausência destes projetos de lei?
Não há notícias de reuniões do Conselho Municipal de Transportes, e a Comissão de Desoneração da Tarifa, nas reuniões que fez com a presença da burocracia estudantil de “entidades estudantis credenciadas” e alguns raros estudantes surgidos do movimento, chegou apenas à conclusão óbvia de que não é possível reduzir o preço das passagens sem conseguir recursos de outra fonte – ou seja, pela instituição de privilégios para os empresários de transporte coletivo na compra de diesel e isenção de impostos. Os outros pontos levantados pelo movimento (redução da tarifa para R$ 1,00 ou 1,30, congelamento neste valor por um ano e passe livre para estudantes de escolas públicas) nem sequer foram pautados – e houve mesmo “lideranças” que, diante do Prefeito, do Secretário de Transportes e de vereadores reunidos para assinar o “acordão do dia 2”, manifestaram seu desejo em ver terminada a manifestação naquele mesmo instante.
Mas estas considerações sobre a eficácia da Revolta do Buzu, sobre a capacidade que teve uma multidão estudantil e popular de conseguir seus objetivos através de uma longa ação radicalizada, devem neste momento ceder lugar a considerações de outra ordem: os efeitos das mobilizações sobre seus participantes. À primeira vista, grande parte dos estudantes que esteve nas manifestações jamais participara de qualquer forma de mobilizações políticas. Sua capacidade de organização foi admirável – afinal, mesmo militantes tarimbados se encontraram sem muita noção do que fazer diante das proporções que o movimento tomou. Ainda que tivessem pouco sucesso em manter a mobilização em alta, devido à intensidade das manifestações e ao desgaste causado pelas pressões combinadas da mídia, do Poder Público e da crescente repressão policial, a experiência da Revolta do Buzu parece ter sido marcante, pois estes estudantes mantiveram o apreço pela autonomia do movimento – o que se viu em parte na greve estudantil da UFBA de 2004, em que os estudantes quase atropelaram a diretoria do DCE com seu movimento, mas foram contidos por estarem fora de um terreno propício, pouco informados sobre as pautas da greve e contidos por um forte aparato institucional.
Foi muito gratificante, também, observar crianças e pré-adolescentes dando lições de organização aos mais velhos. Na assembléia do dia 04 de setembro, uma das cenas mais marcantes, no meio da guerra pelo microfone, foi ver um menino que devia ter entre dez a doze anos gritando: “ENQUANTO VOCÊS TÃO AQUI BRIGANDO IMBASSAHY TÁ LÁ FORA AUMENTANDO A PASSAGEM, RUMBORA PRA RUA!!” De acordo com relatos da imprensa, ele não foi o único. A presença mais marcante no bloqueio de 1.º de setembro no Rio Vermelho foi um grupo de estudantes que tinha entre 11 a 12 anos; um deles disse que fora “protestar também, pois minha mãe está gastando muito com o transporte”. Não se sabe ainda qual o efeito da Revolta do Buzu sobre gente tão jovem, mas a experiência de ter quase todo o trânsito da cidade sob seu controle imediato e de reivindicar através de meios radicalizados, tão marcante para estudantes mais velhos, certamente mostrará seus efeitos com o passar dos anos.
Os mecanismos de participação no movimento estudantil definiram-se na Revolta do Buzu de uma forma ad hoc e improvisada, no sentido de evitar a formação de uma nova burocracia estudantil nas ruas: as múltiplas assembléias nos bloqueios, o localismo de algumas reuniões, a recusa às entidades gerais, a deslegitimação de comissões formadas pelos aparelhadores do movimento, são sinais do que poderia acontecer nas próximas oportunidades. Percebem-se, ainda, ecos distantes destes dispositivos antiburocráticos em alguns grêmios estudantis e no vacilante Movimento Estudantil Independente (MEI), embrião de entidade surgido no movimento secundarista, cuja relação com o Movimento Estudantil Unificado (MEU) criado nas últimas assembléias da Revolta do Buzu se faz necessário investigar.
IV
A Revolta do Buzu expôs ao país uma nova fase do movimento estudantil e uma nova cultura organizacional deste mesmo movimento – que prima pela recusa à burocratização, mas nem sempre consegue o que pretende.
Se houve um marco na participação estudantil dentro da Revolta do Buzu foi a recusa às entidades representativas e a partidos políticos – e mesmo aos anarquistas, em alguns momentos, como na Av. Contorno, no dia 5 de setembro. Em todo caso, é importante notar que dirigentes de entidades estudantis e militantes partidários participaram ativamente das manifestações. Muitos deles estiveram nas primeiras manifestações de agosto (dia 13) e nas paralisações subseqüentes, e pode-se dizer mesmo que foram diretamente responsáveis pelas primeiras manifestações, boladas ainda nas manifestações contra a reforma da previdência em Brasília. Na verdade, como bons militantes, participaram de quase todos os eventos da Revolta do Buzu. Acontece que desde o dia 29 estas entidades foram ultrapassadas na prática pelo gigantismo do movimento, para a qual os integrantes de suas diretorias não demonstraram estar nem um pouco preparados. Fazendo uma comparação arriscada do movimento estudantil com o movimento operário, as manifestações assumiram desde então caráter semelhante ao de uma “greve selvagem” – greve feita sem o conhecimento dos dirigentes sindicais, ou até mesmo contra eles ou contra suas orientações. A tão falada “espontaneidade” do movimento, que ainda hoje é capaz de provocar brigas entre militantes, reside no fato dos estudantes recusarem a liderança das entidades gerais (UNE, UBES, ABES, DCEs), e mesmo às vezes das entidades de representação local, como CAs, DAs e grêmios, e partirem para fazer com suas próprias mãos aquilo que estas entidades aparentemente não tinham condições de fazer: abaixar a tarifa.
Há quem diga que estas entidades estavam pouco enraizadas no movimento; a observação prática de uma bandeira da UNE sendo arrancada da parede da quadra do Sindicato dos Bancários no dia 04 de setembro aos gritos de “rasga, rasga” me faz pensar se o caso é de pouco enraizamento, como quem coloca a multidão estudantil no papel passivo de um solo inerme no qual se enraizaria uma entidade qualquer, como uma semente lançada ao vento, ou da recusa ativa a entidades que não acompanham as necessidades reais dos estudantes e do movimento que deflagraram; esta última parece ser a análise mais apropriada da situação. Ninguém duvidava que algumas das entidades locais, como os grêmios, CAs e DAs, conseguissem ainda alguma legitimidade para falar em nome de seus filiados; eram e ainda são bastante próximas da vida estudantil cotidiana, e isto evitava que seus componentes perdessem de vista as questões mais urgentes e locais do movimento – de muito maior visibilidade que questões macropolíticas, infelizmente pouco compreensíveis para o estudantado e aparentemente – e só aparentemente – dissociadas de qualquer ligação com sua realidade escolar e social.
Talvez por esta mesma recusa às entidades gerais o movimento tenha tido uma dinâmica tão peculiar. Depois de recusarem as entidades que agiam em seu nome, os estudantes – coisa rara no movimento estudantil – passaram a tomar decisões por conta própria, sem qualquer mediação, em torno de tarefas comuns a todos. Grupos de estudantes saíam de sala em sala nas escolas chamando colegas para saírem às ruas, e estes grupos corriam os outros colégios em busca de mais apoio; de um pequeno grupo de 10 a 20 estudantes, era possível chegar a 200 ou 300 fazendo arrastões pelos colégios; o que antes era feito apenas pelas diretorias das entidades de base e das entidades gerais agora era feito por qualquer estudante. As manifestações e bloqueios reuniam número considerável de estudantes: entre 200 a 2000 no mesmo local, a depender do horário e da importância da via para o trânsito da cidade; daí, às vezes, a impossibilidade de se decidir qualquer coisa que fosse além do consenso tácito de parar a rua e liberar quem estivesse passando mal. Instaurou-se então uma espécie de democracia pelo grito: o som de “gente, gente, me ouve aqui, presta atenção, por favor!!” era o indicativo de mais uma reunião no bloqueio, que poderia, a depender do tamanho do bloqueio, ser secundada por mais outras duas, três reuniões simultâneas. O jogral, na falta de carros de som, foi usado intensivamente, e houve mesmo dias em que o gogó valeu mais que o microfone. No dia 02 de setembro, por exemplo: uma das “lideranças” estudantis que fechou o acordo com o Prefeito, ao sair da Câmara dos Vereadores, caiu na besteira de dizer no carro de som que “não tinha conseguido baixar a passagem, mas que tinha conseguido coisa ainda melhor”, e foi imediatamente vaiado; um estudante subiu nos ombros de outro para gritar “não, não, a gente não vai ouvir, ‘bora pra Lapa, ‘bora fechar a Lapa!!”, enquanto a “liderança”, resignada, limitava-se a pedir silêncio para que todos soubessem “o que é que a gente conseguiu que é melhor que baixar a passagem”. Venceu o grito: saímos para fechar a Lapa, mais uma vez.
Num mesmo bloqueio, estudantes secundaristas de colégios diferentes decidiam junto com estudantes universitários o que fazer quanto ao trânsito, negociavam com a Polícia, corriam de colégio em colégio chamando os colegas para as ruas, abriam passagem para carros com pessoas que passavam mal – eu mesmo, no dia 24 de setembro, consegui abrir espaço para um tio-avô que, coincidentemente, saía de uma cirurgia e me encontrou por acaso bloqueando a Av. Bonocô. Outros grupos se responsabilizavam por fazer a comunicação do movimento, mesmo informalmente e sem qualquer deliberação coletiva neste sentido; chegou a ser criado um canal de IRC específico para o movimento na rede BrasNET chamado #contratarifa. Tudo isto, obviamente, sem maiores deliberações ou votações; talvez devido ao grande número de pessoas nas ruas, ou pela heterogeneidade destas mesmas pessoas, não se conseguia, nas tumultuadas assembléias gerais do movimento, discutir qualquer coisa que ultrapassasse os consensos tácitos do movimento ou questões práticas, como a liberação de presos.
Apesar de toda a alegria que me deu a criação de tantos dispositivos antiburocráticos nas ruas, e que em grande medida me inspira a escrever este artigo, pode-se dizer que aquilo que o movimento conseguiu nas ruas, perdeu no terreno institucional. Embora nas ruas os estudantes houvessem criado todos os dispositivos necessários para evitar a submissão a quem quer que fosse (entidades estudantis, partidos políticos, Prefeitura, motoristas em fúria, etc.), não se pode falar que conseguiram fazer o mesmo na frente institucional aberta pelo movimento. Depois de destituída a comissão responsável pelo “acordão do dia 2”, tentou-se algumas vezes criar outras comissões. Uma delas foi eleita diante de milhares de estudantes na escadaria da Prefeitura, a pedido do próprio prefeito; a eleição demorou tanto que Imbassahy aproveitou a demora para sair de fininho e abandonar os oito eleitos na Praça Municipal. Mesmo nas assembléias do movimento, o que nas ruas era totalmente horizontalizado e aberto passou pelo filtro da representação, especialmente depois da tumultuada assembléia do dia 4 de setembro; eram admitidos nas reuniões subseqüentes apenas estudantes eleitos para as entidades representativas de suas escolas ou faculdades.
Partindo do diagnóstico para a crítica, talvez fosse possível sair deste impasse através da realização de reuniões locais, em cada colégio e escola, para a definição dos rumos do movimento. Insistia-se, entretanto, no formato da grande assembléia, das reuniões de massa, que, por melhores que fossem as intenções, certamente contribuiu para o desgaste do movimento e para a sua “domesticação”. Basta lembrar, por exemplo, da “confusão” generalizada e do conflito aberto – físico, às vezes – entre pessoas de posicionamentos divergentes que tomou conta da assembléia do dia 04 de setembro, e compará-la com a relativa “ordem” das assembléias acontecidas depois do dia 09, depois de instalado o “filtro” da representação por entidade. De igual maneira, a reunião preparatória da Comissão de Desoneração da Tarifa, criada pelo “acordão do dia 2”, foi realizada no dia 8 de setembro com representantes de “entidades credenciadas”, ou, mais especificamente, com representantes da UNE e da UBES, já recusadas pelo movimento; suas reuniões seguintes foram realizadas sem a presença de entidades estudantis. É mesmo difícil ultrapassar o nível da mera constatação no que diz respeito aos impasses organizacionais e institucionais do movimento, pois, por exemplo, era possível perceber no movimento tanto uma vontade de formar comissões e ir ao prefeito quanto outra, confirmada por vários depoimentos, no sentido da recusa frontal ou velada a qualquer negociação com a Prefeitura.
Ocorre que, apesar dos percalços, este tipo de movimento dissociado de entidades iniciado em Salvador tomou corpo a partir de outras manifestações estudantis em outras cidades, com variados graus de sucesso. O tema central dos transportes os une, e o estudo da experiência da Revolta do Buzu aparece como elemento catalisador em cidades como Florianópolis, onde o movimento pelo passe livre vem sendo organizado pelo menos desde 2000 por um fórum municipal pelo passe livre que reúne várias correntes do movimento, dentre as quais a Juventude Revolução Independente (JRI) – responsável em grande parte pela radicalização do movimento que levou à paralisação quase completa da cidade por mais de dez dias e conseguiu, por meios semelhantes aos da Revolta do Buzu, aquilo que não se conseguiu em Salvador: manter a tarifa do ônibus num patamar menos escorchante. Em outras cidades (Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Belo Horizonte, Brasília, Maceió) estão sendo organizados ou já funcionam comitês de luta pelo passe livre, que ultrapassam os limites das entidades gerais e reúnem tanto militantes de longa data quanto gente que nunca havia feito uma passeata na vida; tanto militantes partidários quanto estudantes apartidários, e mesmo antipartidários. Isto demonstra que a percepção da inadequação das entidades ao movimento estudantil não ocorre apenas em Salvador, mas em outros centros urbanos; esta nova forma de fazer movimento estudantil já vem sendo notada pela imprensa corporativa, que lhe dedica sucessivas notas e reportagens, como se os repórteres e editores pretendessem dar visibilidade ou analisar o que acontece com os estudantes, seja para dar visibilidade a uma tentativa de autonomização do movimento da qual também foram parte em seu tempo de escola, seja para aproveitarem-se politicamente destes movimentos – ou, em última análise, para esquadrinhar suas atividades para a repressão, o que pode acontecer a partir daquilo que escrevem, independentemente de sua vontade.
Surgem aí novas questões para serem respondidas na prática pelo próprio movimento estudantil, e não mais por mim. Quais os elementos conjunturais que conduzem ao sucesso ou ao fracasso desta nova tática no movimento estudantil recente? Quais as conclusões a que se pode chegar de cada mobilização específica? Até que ponto a explosão da Revolta do Buzu aconteceu pelo baixo nível de organização política dos estudantes de Salvador? Seriam necessárias a estes movimentos apartidários organizações de caráter horizontalizado para que suas metas sejam alcançadas, como os coletivos que formam hoje o Movimento Passe Livre (MPL)? Pequenas organizações de indivíduos muito próximos que criam ou participam de entidades maiores ou movimentos de massa para radicalizá-los, como a JRI de Florianópolis? A dificuldade de lidar com a institucionalidade, identificada na Revolta do Buzu, é incidental, localizada, ou é característica deste novo movimento? Como é possível – se realmente for possível – recusar as entidades gerais do movimento estudantil e, simultaneamente, preencher seus espaços?
V
A Revolta do Buzu indica a recuperação das formas radicalizadas de protesto pelos movimentos sociais soteropolitanos, que infelizmente não as têm conseguido usar a contento.
Talvez a Revolta do Buzu tenha sido o mais radicalizado dos protestos sociais em Salvador desde o quebra-quebra de agosto de 1981; esta tem sido a opinião mais difundida entre a imprensa, militantes e analistas acadêmicos. Ocorre que esta radicalização foi possível em grande parte porque aquele que até o momento tem surgido como o sujeito principal das manifestações (o estudantado soteropolitano) tinha quase total liberdade de ação relativamente ao sujeito principal do quebra-quebra de 1981 (a classe trabalhadora submetida a um regime de superexploração), que aparentemente pouco participou das manifestações pela cidade. Digo “aparentemente” porque, como visto, a cobertura de imprensa foi muito fraca na periferia da cidade, onde a participação popular certamente foi maior; enquanto não surgem informações sobre estes locais, o direcionamento da imprensa às manifestações do Centro de Salvador faz com que esta seja a única conclusão possível para quem tem nela a sua principal fonte, e ainda assim com muitas ressalvas.
Depois da Revolta do Buzu, é possível dizer que todo movimento que se pretenda fazer ouvir em Salvador concentra sua atenção em dois pontos específicos: a Estação da Lapa e o Iguatemi; respectivamente, a maior estação de transbordo do Centro da cidade e o centro econômico e principal entroncamento viário da cidade. A radicalização e difusão espacial dos protestos estudantis retirou o foco geográfico das manifestações da região compreendida entre o Campo Grande, Av. Sete de Setembro, Praça Castro Alves e Praça Municipal (que, por uma estranha coincidência, é o mesmo circuito tradicional do carnaval baiano) e abriu outras possibilidades de uso das vias e espaços urbanos por movimentos sociais. Uma das primeiras ações conjuntas entre os professores estaduais grevistas e seus alunos em 2004 foi tentar paralisar a Lapa, sem muito sucesso. Igualmente, durante a greve estudantil da UFBA de 2004 (que durou algo em torno de três meses ou pouco mais), duas manifestações foram marcadas na Lapa (uma delas severamente reprimida) e outra para o Iguatemi (cercada por um contingente policial que praticamente igualava o número de manifestantes). A maior parte destas manifestações, infelizmente, não tem conseguido apoio para realizar o feito de agosto e setembro de 2003, por razões ainda a se investigar – incluídas aqui a falta de conexão imediata entre a paralisação das vias e as reivindicações apresentadas, ou mesmo a total impropriedade de se utilizar os métodos de um movimento apartidário na conjuntura de um ano eleitoral (2004), métodos estes que “vacinaram” o estudantado contra qualquer penetração oportunista.
[Fim da 2ª das 3 partes do artigo]
Fotos por Marcelo de Trói, em http://www.flickr.com/photos/marcelotroi/sets/72157625751456121/with/5376057489/
Registre-se a raridade: visitei o álbum do autor das fotos e, a julgar por alguns prédios e pelas linhas dos ônibus paralisados, ele acompanhou uma passeata que saiu da entrada do Vale das Pedrinhas, próximo ao rio Lucaia, juntando estudantes do Vale das Pedrinhas, de Santa Cruz e do Nordeste de Amaralina. Quase nada saiu sobre esta região da cidade na época.