A estrada através do TIPNIS representa um acesso de capitais, nem sempre nacionais, à conexão bioceânica. A integração não é entre povos mas entre capitais. Por Cesar O.
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
Em 25 de Agosto de 2011 organizações da Plataforma BNDES e associadas [1], tanto no Brasil como noutros países da América Latina, enviaram uma carta ao Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES) e ao presidente da instituição, Luciano Coutinho, exigindo a suspensão imediata do financiamento ao projecto de construção da estrada que pretende fazer a ligação entre as localidades de Vila Tunari e de San Ignacio de Moxos, cortando ao meio o Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), na Bolívia. Com 306 km, esta estrada (cujo contrato está a cargo da transnacional brasileira OAS [2]) está orçamentada em 415 milhões de dólares, dos quais 322 milhões (quase 80%) são adiantados pelo BNDES.
Situado entre os Andes tropicais e a planície amazónica da Bolívia, o TIPNIS é uma área rica em biodiversidade. Em 1965 foi declarado Parque Nacional e em 2009 o governo de Evo Morales concedeu-lhe o estatuto de território indígena. Com mais de um milhão de hectares de floresta, cerca de 12.000 pessoas de três grupos indígenas diferentes vivem em 64 comunidades dentro do TIPNIS. No dia 15 de Agosto, representantes da Subcentral do TIPNIS, que une estas comunidades, assim como outros grupos indígenas, deram início a uma marcha em direcção à capital, La Paz, para protestar contra o projecto de estrada.
Exactamente um mês depois da entrega da carta ao BNDES, no domingo de 25 de Setembro, ocorreu uma violenta operação policial contra cerca de 800 manifestantes, incluindo mulheres e crianças, participantes numa marcha pacífica em defesa do TIPNIS.
A oposição à construção da estrada ocorre num contexto político complexo e contraditório, prévio às eleições judiciais [eleição dos altos magistrados da Justiça mediante o voto directo] de 16 de Outubro. A violenta intervenção policial contra a VIII Marcha Indígena no domingo, 25 de Setembro, já provocou a demissão de vários funcionários governamentais (dois deles do mais alto nível, o ex-ministro do Interior, Sacha Llorenti, e a ex-ministra da Defesa, Cecilia Chacón); acabou por quebrar os elos da frágil aliança do governo do MAS [Movimiento al Socialismo] com os povos indígenas das terras baixas e com um vasto leque de organizações sociais e de activistas da classe média; e desencadeou uma vaga de críticas (originárias, paradoxalmente, de sectores da oposição de direita, de meios de comunicação, de ex-colaboradores do presidente e do actual governo e de organizações sociais e intelectuais empenhadas no processo de mudança) ao governo e ao presidente que, em Abril de 2010, em Cochabamba, organizou a Cimeira dos Povos sobre as Alterações Climáticas, com a participação de 35.000 pessoas.
O custo político da repressão abriu uma crise política de cuja dimensão o governo boliviano não parece estar inteiramente consciente, pois até agora tem adoptado uma estratégia de comunicação social que consiste em 1) reconhecer «o erro» da repressão, mas iludir a responsabilidade concreta dos funcionários governamentais; 2) anunciar a suspensão provisória da obra e o início de um processo de consulta para decidir se ela será ou não prosseguida, apresentando como principal argumento «o interesse por melhorar as condições de vida dos nossos irmãos indígenas»; 3) assinalar que entre os participantes da marcha indígena «há muita desinformação e inclusivamente enganos» e denunciar a «ligação explícita» de dirigentes da marcha indígena a organizações ambientalistas de filiação duvidosa, à embaixada dos Estados Unidos, etc. [3]
Um projecto de desenvolvimento?
Entre os críticos, chegou a dizer-se que «o conflito do TIPNIS nunca deveria ter existido». Isto não só pelos 200 ou 300 milhões de dólares necessários para a construção da nova estrada. Mas o conflito existe, e se ele tem e continuará a ter enormes repercussões, isto não se deve apenas à descarada manipulação informativa contra o governo boliviano ou ao arcaísmo retrógrado dos grupos indígenas que não compreendem os sinais do progresso e que, mal informados, não se dão conta dos benefícios que a estrada há-de trazer, ou aos seus bem ou mal intencionados simpatizantes nacionais ou internacionais, mas ao facto de essa estrada constituir apenas uma pequena parte de dois grandes projectos em curso — o IIRSA e a estratégia geopolítica continental brasileira.
A iniciativa da Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul (Integración de la Infraestructura Regional de Sudamérica, IIRSA), que parece estar já a traçar novas fronteiras internas no sul do continente, foi anunciada publicamente em Agosto-Setembro de 2000, em Brasília, numa reunião convocada sob a égide de Fernando Henrique Cardoso, com a pesença de representantes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Megaprojecto com enormes implicações, a IIRSA pretende «[…] construir um novo paradigma para o desenvolvimento da infra-estrutura regional, sustentado pelas exigências da procura [demanda] […]» (Fonplata, 2007), conseguindo posicionar-se agilmente nos mercados europeus e nos dos países asiáticos do Pacífico, bem como nos dois flancos territoriais da economia norte-americana [4].
A IIRSA, segundo o Observatório de Geopolítica, «é o mais ambicioso projecto de ordenamento territorial até agora desenvolvido em todo o mundo. Mediante o traçado de rotas multinacionais (vias fluviais, estradas e caminhos-de-ferro [ferrovias]), pretende-se refuncionalizar a enorme massa territorial da América do Sul consoante as exigências de um mercado mundial ávido de recursos».
Já os principais ideólogos da escola geopolítica brasileira consideravam que «a característica básica do continente sul-americano é estar divido entre os Oceanos Pacífico e Atlântico, [e por isso] o Brasil tem um potencial enorme no que concerne à integração deste continente». Assim, como indica Rodrigo Araújo, o ponto de partida de toda a sua concepção do papel estratégico do Brasil é que se deve «oferecer uma solução geopolítica para vertebrar a massa continental sul-americana» [5].
A IIRSA, desenvolvida a grande velocidade durante os dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva, e conhecida e apresentada como PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), avança com botas de sete léguas rumo à territorialização/integração do território brasileiro e, simultaneamente, à integração do território sul-americano sob a hegemonia brasileira.
Deste modo, o papel do Estado brasileiro e da «sua» burguesia nacional e a dinâmica geopolítica do «seu» Estado-nacional cruzam-se na realização das suas eternas aspirações, com o «desenvolvimento nacional» do «Brasil potência» e a época de recessão global em que ocorre o fortalecimento político-económico das transnacionais brasileiras, aprofundando o seu carácter imperialista [6] — eis o que está na raiz de muitos dos conflitos e das situações enfrentadas pelos interesses dos povos e movimentos sociais, pelos complexos empresariais e pelos governos da América do Sul.
Deste modo, os participantes na marcha indígena que continua a dirigir-se para La Paz não parecem estar tão «mal informados» ao assinalarem que «a estrada no TIPNIS faz parte da política de expansão do Brasil através de megaprojectos de infra-estruturas financiados pelo seu Banco de Desenvolvimento (BNDES), dentro dos planos da Iniciativa da Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul (IIRSA)», tal como denunciaram [7]. O governo brasileiro perdeu assim uma grande oportunidade de ficar calado (26/09/2011) mas, por seu lado, o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) emitiu um comunicado afirmando que a estrada que atravessa o Território Indígena (TIPNIS), no coração da Amazónia, é importante para o «desenvolvimento» [8].
No Brasil, tal como no Equador e na Bolívia, é possível encontrar situações semelhantes. O Tribunal Federal brasileiro determinou, no passado dia 27 de Setembro, a paralisação imediata da construção da Hidroeléctrica de Belo Monte, ainda que só na região correspondente ao Rio Xingu, onde as actividades piscícolas são efectuadas pelos membros da Associação de Criadores e Exportadores de Peixes Ornamentais de Altamira (Acepoat). A actual construção da barragem, segundo a Acepoat, pode inclusivamente ter como resultado a extinção das principais espécies de peixe na região do Xingu, e além disso implicaria uma completa reconfiguração da região, com enormes consequências sociais e ambientais (previstas e imprevistas) [9].
A tensão entre horizontes de mudança social
Até aqui é possível perceber uma pequena parte do que representa a IIRSA enquanto estratégia de valorização dos territórios/reconfiguração do espaço, sob a forma de «acumulação por desapropriação», consoante a designação de David Harvey. As motivações para ir para a frente e não ceder em projectos desta natureza são contraditórias à luz do próprio discurso dos governantes latino-americanos, eleitos democraticamente pelos povos que lutaram por uma transformação social contra as elites não-nacionais e contra os seus senhores e companhias transnacionais.
Na sua forma actual, e independentemente da ideologia explícita ou da força política que ocupa o aparelho governativo, o Estado de Direito constitui «a forma institucional com que se protege a segurança jurídica dos investidores» (Pablo Dávalos). O investimento estrangeiro directo, as universidades, o multiculturalismo e os estudos pós-coloniais convertem-se em utensílios de legitimação dos novos projectos modernizadores e de fórmulas «ético-legais» para a criminalização (a outra face do respeito à lei e à ordem) das resistências ao «desenvolvimento» moderno, perante o qual todas as nossas culturas, tecnologia, medicina, religião, conhecimento, ciência e filosofia não servem, são obsoletas, atrasadas, pré-modernas. Por isso a Marcha em Defesa do TIPNIS é acusada de querer violentar as eleições judiciais de 16 de Outubro e de «atentar contra a democracia».
Nada justifica as intenções de linchagem da marcha nem de Evo Morales. A manipulação da direita e dos meios de comunicação monopolistas criticando a repressão à marcha indígena é oportunista e resulta de um mero cálculo político. Com efeito, a lista [pauta] de reivindicações da marcha indígena contém posições erradas sobre a geração de hidrocarbonetos ou o chamado plano REDD ou Redução da Emissão de Gases de Efeito de Estufa mediante o pagamento de bónus para a conservação da biodiversidade [10].
Algo mais grave está em curso e notam-se sinais concretos. Na Bolívia ocorre a recomposição do Estado senhorial-moderno-colonial. O pacto de unidade entre o governo e os movimentos sociais sustenta o presidencialismo não de uma república, mas de um Estado colonial, apoiado por uma lei eleitoral que, apesar da Constituição, nega a plurinacionalidade. Os compromissos do MAS com o capital comercial, com a oligarquia pecuária e com o capital bancário-financeiro estão a ser cobrados. A estrada através do TIPNIS representa um acesso de capitais (nem sempre nacionais) à conexão bioceânica; a integração não é entre povos mas entre capitais. A penetração no interior do TIPNIS tem a ver com a exploração daquilo que se presume que lá exista [11].
Os movimentos e as organizações atravessam as mesmas contradições que o governo. O caso de Yucumo, tal como o do gasolinazo no começo do ano, mostram que as prioridades, os ritmos e os métodos são diferentes consoante se apostar num capital andino, qualquer que seja o nome com que se disfarce, ou em alternativas de organização social contra o capital, que ultrapassem as formas de organização estatal.
Romper com os marcos analíticos e epistemológicas do liberalismo lança de novo o debate acerca da constituição da territorialidade e as formas de organização social; acerca da autonomia dos movimentos e das organizações perante o governo; e acerca da constituição do sujeito em luta e das formas de direcção política.
A marcha em defesa do TIPNIS continua.
Referências
[1] Plataforma BNDES e associados: Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria, FASE – Solidariedade e Educação, Foro Boliviano sobre Medio Ambiente y Desarrollo – FOBOMADE, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), Instituto Mais Democracia, Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), Justiça Global, Justiça nos Trilhos, Núcleo Amigos da Terra Brasil. Plataforma BNDES: Rede Alerta contra o Deserto Verde, Rede Brasil Sobre Instituições Financeiras Multilaterais, Rede Jubileu Sul Brasil, Repórter Brasil.
Países onde actua a OAS:
http://www.oas.com/main.asp?Team={57DBC820-B838-4FD6-A9A2-775C78BE7E9A}
[3] Fonte: Telesur (01/10/2011).
[4] Ana Esther Ceceña – Paula Aguilar – Carlos Motto. Observatorio Latinoamericano de Geopolítica. Territorialidad de la dominación. Integración de la Infraestructura Regional Sudamericana (IIRSA): http://www.geopolitica.ws/media_files/download/IIRSA.pdf
Raúl Ornelas. América latina: territorio de construcción de la hegemonía. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, mayo-agosto, año/vol. 9, número 002. Universidad Central de Venezuela. Caracas, Venezuela. 2003. pp. 117-135: http://www.geopolitica.ws/media_files/download/ornelas_rvecs.pdf
[5] Travassos, Mário. Projecção Continental do Brasil. 1947, pp. 31. apud FREITAS, Jorge Manuel da Costa. A Escola Geopolítica Brasileira. Golbery do Couto e Silva, Carlos de Meira Mattos e Therezinha de Castro. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2004. Citado por: Rodrigo Araújo “Não podemos fazer WikiLeaks da história do Brasil” 31/08/2011, em http://passapalavra.info/?p=45428
[6] João Bernardo. “A viagem do Brasil da periferia para o centro: 1) o roteiro”, em http://passapalavra.info/?p=38691
[7] Correio do Brasil: http://correiodobrasil.com.br/governo-propoe-comissao-para-investigar-violencia-policial-contra-indigenas/304936/
[8] http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/situacao-na-bolivia
[9] A barragem de Belo Monte é uma central hidroeléctrica em construção junto ao Rio Xingu, no estado do Pará, Brasil. A capacidade instalada projectada para a barragem será de 11.000 MW anuais, o que fará dela a segunda maior hidroeléctrica brasileira (depois da gigantesca Itaipú, de 14.000 MW) e a terceira maior do mundo, depois da de Três Gargantas (na China), representando 11% da potência instalada no Brasil. A barragem tem um custo calculado de 3 mil milhões [bilhões] de dólares e a linha de transmissão, de 2,5 mil milhões. O projecto cabe à companhia eléctrica estatal Eletronorte. Fonte: http://es.wikipedia.org/wiki/Represa_de_Belo_Monte
Outras fontes e contactos para a solidariedade contra a construção da hidroeléctrica de Belo Monte:
http://www.survival.es/sobre/presa-belo-monte
http://www.comciencia.br/reportagens/2005/02/seva-mapa01.html
[10] http://www.eabolivia.com/politica/9456-pablo-solon-conflicto-del-tipnis-no-debio-existir.html
[11] ALAI. El 18 Brumario del Kananchiri. Rafael Bautista S., em http://www.alainet.org/active/49737
Bom resumo do ocorrido e do ocorrendo! Evo Morales argumenta que o movimento tem sido financiado e ideologizado por ONG´s entre elas a USAID. É bom lembrar que o próprio movimento cocaleiro do Chapare teve financiamento desse organismo durante anos. O “oenegismo” e as fundações pluri-multi-interculturais na Bolívia injetam altos recursos no país sob o lema do desenvolvimento e do combate à pobreza há anos, sempre auspiciadas pelo Banco Mundial. Além disso, esse processo é uma excelente oportunidade para denunciar o chamado “Estado Plurinacional” (defendido entre outros por Boaventura de Sousa Santos) como nova ferramenta liberal que procura tutelar e limitar a autonomia indígena, principalmente no altiplano da Bolívia. Nesse país, a formação de uma Assembleia Constituinte e a aprovação de uma nova constituição em 2009 e 2010 no final das contas o que fez foi oficializar os latifúndios da oligarquia de Santa Cruz. É o governo “meia-boca”: reforma agrária “meia-boca”, autonomia indígena “meia-boca”, …dias após a repressão contra a marcha indígena, o novo garoto-propaganda do capital brasileiro, Lula, esteve na Bolívia patrocinado pela própria OAS para “apaziguar” a situação e garantir a retomada das obras num futuro não muito distante.