O eixo que tem regido a evolução do capitalismo brasileiro desde os meados do século passado é o progresso gradual da internacionalização. Por João Bernardo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
O marco histórico geralmente usado entre os latino-americanos para assinalar o grande avanço da teoria do desenvolvimento é a criação, em 1948, da Comissão Económica Para a América Latina e o Caribe, CEPAL, a que desde muito cedo ficou associada a figura do economista argentino Raúl Prebisch. Mostrei num artigo anterior que as teses de Prebisch, adoptadas pela CEPAL, descendem em linha recta das teses do economista e político fascista romeno Mihail Manoilescu, que fora uma celebridade na sua época e hoje é convenientemente esquecido. Importa-me agora salientar que a CEPAL propunha que os países periféricos adoptassem uma política de industrialização como condição para evitar a deterioração dos seus termos de troca com os países centrais. No Brasil foi Celso Furtado o principal defensor desta estratégia, e durante as presidências de Juscelino Kubitschek e de João Goulart foram-lhe atribuídos cargos que lhe permitiram demonstrar na prática o significado das suas ideias. Talvez mais decisivo ainda foi o facto de Celso Furtado ter presidido ao grupo misto constituído pela CEPAL e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social, BNDES, do qual saiu um estudo sobre a situação económica brasileira que veio a servir de base ao Plano de Metas adoptado na presidência de Juscelino Kubitschek.
Na prática, a política de industrialização destinada à substituição de importações havia já sido seguida por vários países, nomeadamente na América do Sul, durante a grande crise económica mundial da década de 1930. Mas neste caso o proteccionismo fora mais aparente do que real, porque começara por ocorrer uma grande queda do comércio internacional e, portanto, o relativo isolamento económico foi mais imposto àqueles países do que resultou de qualquer escolha deliberada. Na década de 1930 a política de industrialização foi uma resposta às circunstâncias, enquanto que a política de industrialização proposta pela CEPAL a partir da década de 1950 se destinava a superar as circunstâncias.
Vários críticos, marxistas ou de inspiração marxista, consideraram que aquela política de industrialização estava votada ao fracasso porque a diferenciação entre pólos de desenvolvimento e vastas áreas periféricas faria parte das condições estruturais do capitalismo e, portanto, a superação do subdesenvolvimento exigiria o derrube do capitalismo. Ambas as posições, no entanto, partilhavam a noção de que o Estado seria um instrumento fundamental para prosseguir a industrialização, num caso, ou para derrubar o capitalismo, no outro; e partilhavam a noção de que a desigualdade interna do sistema capitalista se manifestaria na forma de uma disparidade entre um Centro e uma Periferia. Curiosamente, porém, não se admitia que o Centro e a Periferia pudessem deslocar-se, e muito menos inverter os papéis. Numa série de operações sucessivas, o anticapitalismo ficara convertido em anti-imperialismo e o anti-imperialismo ficara identificado com a aversão aos Estados Unidos, de modo que a luta entre as classes se viu afinal transformada num confronto geopolítico. Exploradores e explorados deixaram de ser classes, mas países.
Porém, se quisermos avaliar a acção da política na economia não podemos ignorar as profundas remodelações operadas nas instituições do Estado. A primeira destas transformações é antiga e iniciou-se no momento em que a capacidade eleitoral se generalizou a toda a população adulta. Como era pouco verosímil que uma elite numericamente reduzida aceitasse ficar sob a tutela da maioria desprovida de poder económico, a expansão do voto levou à perda de importâncias dos órgãos eleitos e à passagem do poder de decisão para entidades cooptadas e em grande medida informais. Foi então, e só então, que a política das democracias se converteu num espectáculo de ilusionismo. A segunda transformação processou-se nas últimas décadas, com a transnacionalização do capital, que levou à redução do poder dos Estados nacionais, cujas decisões podem ser iludidas pelas grandes companhias transnacionais. Sem se aperceber destas mudanças, uma grande parte da extrema-esquerda permanece alheada do meio empresarial, deixado-o reorganizar-se sem que isso a preocupe ou sequer a ocupe.
Ora, no Brasil ocorre uma curiosa e instrutiva assimetria entre o governamental e o empresarial. A vida política brasileira tem sido sujeita a convulsões muito profundas, mas apesar disto a estratégia económica prosseguiu uma orientação firme, obedecendo a rumos invariáveis, o que fornece mais uma prova da cisão existente entre a face pública do Estado e a actividade empresarial. No Brasil os capitalistas têm conseguido impor aos políticos, tanto de direita como de esquerda ou do centro, um eixo de reformas bastante consistente e, sobretudo, composto por patamares sucessivos, visto que por detrás das instituições políticas formais existem entidades informais onde se relacionam os principais empresários e os governantes da área económica, e são estas entidades quem orienta os acontecimentos. O Brasil conta-se entre aqueles poucos países onde o Estado continua a ter, ou a poder ter, uma intervenção de peso na estratégia económica, mas isto não ocorre na face pública das instituições políticas. Formou-se uma tecnoburocracia que circula entre as administrações das empresas, as universidades e as assessorias dos ministérios e que forma o núcleo mais sólido das classes dominantes. Foi esta tecnoburocracia quem, através dos ziguezagues da política, assegurou à economia brasileira uma dinâmica de crescimento.
É certo que o Brasil goza de condições naturais e demográficas que lhe facilitam o crescimento económico. O Japão conseguiu industrializar-se num prazo muito curto sem dispor no seu território de matérias-primas que na época eram consideradas indispensáveis, mas a maior parte dos países que atingiram rapidamente um estádio de desenvolvimento elevado contou com matérias-primas abundantes na metrópole ou nas colónias. Além disso, o Brasil dispõe de um mercado nacional vasto, e para prosseguir a industrialização mediante a substituição de importações tem de se alcançar as economias de escala que só uma ampla procura garante. No caso do Brasil, todavia, embora o mercado seja numeroso ele caracteriza-se por um rendimento médio muito baixo. Mercado é uma coisa e poder de compra é outra. Por um lado, isto levou a que uma parte substancial da oferta fosse direccionada para a «classe média», entendida como o conjunto das camadas populacionais com capacidade aquisitiva suficiente para poder sustentar um mercado de bens de consumo duráveis. Durante o regime militar sucedeu mesmo que se promovesse o agravamento da desigualdade na distribuição dos rendimentos com o objectivo de estimular, além das exportações, o crescimento do mercado de bens de consumo duráveis. Mas, por outro lado, o que importa não é tanto o baixo rendimento médio mas a taxa do seu crescimento. O caso da indústria cervejeira constitui uma ilustração eloquente do que aqui quero dizer. A cerveja é aquele bem de consumo que mesmo os muito pobres conseguem adquirir, e talvez possamos definir a barreira entre a pobreza e a indigência no Brasil através da possibilidade de comprar uma garrafa de cerveja. Nestas condições, foi vendendo sobretudo para o mercado interno que a Brahma prosperou, e só em 1993, já controlada pelo Grupo Garantia, iniciou um processo de internacionalização, fundindo-se depois com a Antarctica no final dessa década para dar origem à AmBev. Em 2004 a AmBev fundiu-se com a Interbrew e foi criada a InBev, a maior empresa mundial do ramo. Posteriormente, em 2008, uma nova fusão originou a Anheuser-Busch InBev, com sede na Bélgica, o que se poderia chamar uma transnacionalização de uma transnacional. Em tudo isto é necessário não perder de vista que um mercado interno esmagadoramente constituído por consumidores pobres sustentou a base que deu lugar a estas sucessivas fusões.
Mas o sucedido em alguns outros países mostra que não basta a vastidão do território e o elevado número de habitantes para assegurar o crescimento económico. O que verdadeiramente alterou a situação foi o facto de a economia brasileira não se ter isolado da economia internacional.
Durante as presidências de Juscelino Kubitschek e de João Goulart, desde os meados da década de 1950 até aos meados da década seguinte, foi adoptada uma estratégia de desenvolvimento económico através da substituição de importações, mas de uma maneira peculiar, pois a substituição das importações foi em grande medida entregue ao capital estrangeiro. Formou-se um tripé em que cabiam ao governo as grandes obras de infra-estrutura e a indústria pesada de meios de produção, cuja rentabilidade ou só era aferida pela rentabilidade que provocava no resto da economia ou só se verificava a longo prazo e, por isso, requeria avultadas mobilizações de capital; os empresários nacionais ocupavam-se do fabrico de bens de consumo básicos, que pode ocorrer com economias de escala menores; e as companhias estrangeiras instalavam filiais para o fabrico de certos meios de produção e de bens de consumo duráveis, que exigia maiores economias de escala. Em suma, o nacionalismo de Kubitschek e de Goulart recorreu à implantação de filiais de companhias transnacionais para proceder à substituição de importações, preferindo importar investimentos directos [1] do que importar produtos.
Este tipo de inserção no sistema económico mundial tornou-se mais estreito durante o regime militar, desde os meados da década de 1960 até aos meados da década de 1980, sobretudo porque se permitiu às filiais das companhias transnacionais o acesso directo ao mercado internacional de capitais, o que estava vedado às empresas brasileiras. Isto estimulou, no interior do país, o crescimento e a difusão das filiais de companhias estrangeiras.
O governo de Fernando Collor de Mello, nos primeiros anos da década de 1990, deu um novo passo em frente na política de internacionalização, diminuindo as barreiras proteccionistas, com o consequente desafio à produtividade no país, e esta orientação foi retomada por Fernando Henrique Cardoso a partir dos meados da década de 1990. Aliás, mesmo enquanto fora um dos mais destacados formuladores da teoria da dependência, Fernando Henrique Cardoso mantivera-se atento à necessidade do relacionamento com o capital estrangeiro. Concomitantemente, o Plano Real e a estabilização do sistema monetário permitiram que o capitalismo brasileiro entrasse numa relação mais directa com o sistema mundial, tanto financeiro como de bens e serviços. Ao longo das décadas anteriores as barreiras proteccionistas haviam dado tempo para a formação de empresas sólidas, urgia agora constatar essa solidez no mercado global, da única maneira que o capitalismo conhece, através da concorrência, com vencedores e vítimas. E as privatizações, que haviam já sido iniciadas pelo Programa Nacional de Desestatização decidido por Collor de Mello, foram para Fernando Henrique Cardoso o outro elemento desta política. Uma empresa estatal pode internacionalizar-se e, assim, não ficar inteiramente isolada das redes mundiais de tecnologia, mas não se pode transnacionalizar, o que a impede de assimilar as inovações mais avançadas. Separadas do Estado, que é necessariamente nacional, as empresas privatizadas puderam entrar numa relação mais estreita com as cadeias tecnológicas globais, incluindo tanto a aceitação de investimentos directos como a realização desses investimentos no estrangeiro por parte daquelas empresas.
Isto não é algo que eu afirme só agora. Desde 1991 até 1999 ministrei um bom número de cursos e palestras no âmbito dos sindicatos da CUT, e disse em muitas oportunidades que a defesa das nacionalizações era, para os sindicatos, uma causa equivocada, por dois motivos: em primeiro lugar, porque não importa aos trabalhadores quem é o proprietário jurídico do capital mas quais são as relações de trabalho que vigoram no interior do estabelecimento, e sob este ponto de vista as empresas nacionalizadas não se distinguiam das empresas privadas brasileiras ou estrangeiras; em segundo lugar, porque com a necessidade de recorrer às instituições financeiras o carácter nacional de uma empresa nacionalizada havia-se diluído, e o que Fernando Henrique Cardoso pretendia acima de tudo com as privatizações era assegurar o acesso mais fácil dessas empresas às redes mundiais de inovação e de transferência de tecnologia, sem as quais a produtividade estagna. A privatização correspondia, afinal, à criação de condições jurídicas necessárias para aumentar a produtividade. Não posso dizer que estas teses deparassem com bom acolhimento entre os dirigentes sindicais da CUT, mas o certo é que ninguém me matou.
Independentemente da profissão de fé nacionalista que os governantes pudessem ou não fazer, e mesmo enquanto o espaço económico do país esteve cercado por barreiras proteccionistas, em momento nenhum o capitalismo brasileiro ficou isolado dos avanços tecnológicos mundiais. O proteccionismo permitiu que empresas brasileiras prosperassem e se consolidassem no mercado interno, mas o facto de mesmo aqui elas estarem sujeitas à concorrência das filiais de transnacionais constituiu um estímulo permanente à produtividade. No entanto, a tecnologia que as companhias transnacionais aplicavam nas suas filiais brasileiras não era obrigatoriamente a mais avançada e, por isso, enquanto o proteccionismo se mantivesse a economia brasileira não poderia ultrapassar um patamar intermédio no progresso tecnológico. Sempre que um país se alheia das redes mundiais de pesquisa e de transferência de tecnologia, ele passa a produzir bens em condições inferiores de produtividade e, portanto, em vez de melhorar a sua posição no mercado mundial condena-se a deteriorar os termos de troca, ou seja, precisamente o contrário do que se havia proposto fazer. Mas o facto de no Brasil o proteccionismo se ter conjugado com a internacionalização, a ponto de a estratégia de substituição das importações ter adoptado a forma de importação de investimentos directos, facilitou depois a plena integração nas redes tecnológicas mais avançadas. O eixo que tem regido a evolução do capitalismo brasileiro desde os meados do século passado é o progresso gradual da internacionalização.
O governo Lula inseriu-se nesta sequência. Ana Cláudia Além e Rodrigo Madeira, assessores da Presidência do BNDES durante o governo Lula e portanto insuspeitos de simpatia pelo governo anterior, escreveram em Internacionalização e Competitividade: A Importância da Criação de Empresas Multinacionais Brasileiras [2]: «Na década de 1990, com o processo de abertura da economia ao exterior e suas consequências, ficou claro que as empresas nacionais precisavam ser competitivas em nível internacional, a fim de manterem os mercados internos e expandirem os negócios no mercado internacional». Foi assim que no governo Lula se deu um importante passo em frente, transitando-se da internacionalização no interior do país para a internacionalização orientada para fora do país. E embora só muito recentemente se tivesse encetado, e de maneira ainda tímida, uma política governamental de apoio à transnacionalização de empresas brasileiras, o certo é que os investimentos directos emanados do Brasil progrediram tanto em volume como nas suas implicações económicas.
O governo Lula acrescentou ainda um aspecto decisivo no meio económico interno. Defendi neste site que o Programa Bolsa Família é sobretudo vocacionado para promover a formação de um mercado de trabalho unificado no âmbito nacional, minando as velhas relações de clientela e criando condições para elevar o nível mínimo das qualificações da mão-de-obra. Se esta perspectiva estiver correcta, o Programa Bolsa Família pressiona a uma elevação das remunerações mais baixas. No mesmo sentido vai o aumento do salário mínimo. Em A Inflexão do Governo Lula: Política Econômica, Crescimento e Distribuição de Renda [3], Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza, que eram respectivamente secretário de Política Económica do Ministério da Fazenda e assessor da mesma Secretaria, calcularam que «o aumento acumulado no salário mínimo real foi de 11,7%, em 2003-2005, e 24,7%, em 2006-2008». Para estes dois autores «o principal objetivo da política de elevação do salário mínimo era recompor as perdas ocorridas no período de alta inflação e fortalecer o poder de barganha dos trabalhadores nas negociações salariais, em especial dos trabalhadores no setor de serviços e na economia informal» [4]. E o Boletim SOBEET nº 62, publicado em Fevereiro de 2009 pela Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Económica, calculou que «nos últimos 6 anos a massa real de salários aumentou nada mais, nada menos do que 29%, com reduções consecutivas do índice de Gini em todos os anos». Ora, medidas deste tipo têm como consequência imediata pressionar as empresas a aumentarem a produtividade para fazer face às subidas de salários. Seria ingénuo imaginar que bastava a política antiproteccionista e privatizadora adoptada por Collor de Mello e por Fernando Henrique Cardoso, destinada a aumentar a concorrência por parte das firmas estrangeiras e a estreitar a ligação das empresas ex-estatais às redes mundiais de tecnologia, para provocar um surto de crescimento na produtividade do país. A integração nas redes tecnológicas mundiais é uma condição necessária, mas, se não existir do lado da força de trabalho uma pressão para que os empresários aumentem a produtividade, a mundialização tecnológica pode estrangular a produtividade de um país em vez de desenvolvê-la. O único mecanismo que estimula de maneira firme e duradoura o desenvolvimento da produtividade é a pressão para o aumento dos salários e para a melhoria das condições de trabalho.
Parece-me oportuno recordar aqui que, na opinião de Frank W. Taussig, um dos motivos que levou à rápida difusão da maquinaria na indústria norte-americana no final do século XIX e no começo do século XX foi o afluxo de imigrantes vindos de regiões rurais e arcaicas da Europa, desprovidos das qualificações necessárias ao trabalho industrial e, portanto, pouco produtivos. Como os salários nos Estados Unidos eram relativamente elevados, o recurso à maquinaria permitiu aos capitalistas aumentar a produtividade e resolver o desfasamento entre as baixas qualificações dos imigrantes e as suas expectativas salariais. A este respeito, H. Myint observou que o modelo de Taussig só funciona se os sectores onde vigorarem salários relativamente elevados exercerem sobre os restantes um efeito de arrastamento; senão, criar-se-á uma elite operária produtiva em condições tecnológicas modernas, ao lado de um proletariado miserável e pouco produtivo [5]. Ora, o facto de o governo Lula se ter preocupado em aumentar o nível de rendimentos das camadas mais pobres evita a armadilha denunciada por Myint e faz com que a pressão para o aumento da produtividade se exerça sobre a generalidade dos patrões e não só sobre os grandes capitalistas.
A este respeito, porém, os protestos são muitos, e vêm sobretudo daqueles empresários que se sentem incapazes de responder ao desafio e temem acabar vítimas da concentração económica. Um artigo divulgado em Março de 2011 pelo blog Relações do Trabalho serve de exemplo de todas essas reclamações. Depois de indicar que «o custo-hora do trabalho na indústria brasileira em 2009, último ano com informações disponíveis em nível global, foi de US$ 8,32, ou R$ 16,64» e que «o custo-hora do salário nas indústrias chinesas é de apenas US$ 1,36 (dado de 2008)», o autor do artigo exclama: «Como competir assim, ministro Fernando Pimentel?». Pouco adiante, o artigo indica que na China, «em 2003, o custo-hora do salário na indústria era de apenas US$ 0,62 (e US$ 3,25 no Brasil). De lá para cá, a hora paga aumentou 119% […]». Quanto ao Brasil, segundo o mesmo artigo, o custo-hora «de 2002 a 2009, aumentou 168% em dólar». Como competir? Da mesma forma que fazem os empresários chineses, aumentando a produtividade, tal como eu salientei num artigo publicado neste site. Numa conferência de Agosto de 2009, Empresas Multinacionais Brasileiras e Chinesas: Uma Perspectiva Teórica sobre as Possibilidades de Estreitamento das Relações, João Eduardo Albino Pimentel indicou que «o sistema produtivo, e por conseqüência, as exportações chinesas, já não se fundamentam em produtos de fabricação trabalho-intensiva, cuja produção se baseie no aproveitamento de baixos custos de mão-de-obra. Hoje, não apenas essa mão-de-obra tem passado por um processo acelerado de elevação de salários, dada a demanda excessiva por trabalhadores e o crescimento da qualificação, como o país tem se desenvolvido em outros setores mais vantajosos em termos de desenvolvimento econômico». Veremos que resultados a longo prazo terá, ou não terá, no Brasil a Política de Desenvolvimento Produtivo, PDP, lançada em 2008.
Acresce que a redistribuição de rendimentos em benefício das camadas mais pobres, precisamente aquelas que têm maior propensão marginal ao consumo, constitui um poderoso meio para activar o mercado interno, com os habituais efeitos em cadeia. É curioso que Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza, no capítulo já mencionado, tivessem definido como pertencentes à «classe média» não os consumidores de bens duráveis mas todas as pessoas capazes de ingressar «na economia formal e no mercado de consumo de massa». Por este caminho a totalidade da população do Brasil arrisca-se, um dia, a ficar incluída na «classe média». Apesar disso, também aqui não faltam protestos, pois os patrões das empresas menos produtivas receiam que os eventuais ganhos devidos à ampliação do mercado não sejam suficientes para cobrir o que perdem devido a aumentos salariais não compensados por um acréscimo da produtividade. Para os grandes empresários, porém, a música é outra. Num texto muito divulgado durante as últimas eleições presidenciais, O Cavalo Manco e o Puro Sangue, Antônio Ermírio de Moraes, presidente do Grupo Votorantim, um dos maiores conglomerados do país, considerou que a internacionalização da economia não teria resultado no Brasil se o governo Lula não a tivesse conjugado com uma política de aumento dos rendimentos das camadas mais humildes. «A aposta no mercado exterior emergente e no mercado interno, via inclusão social, é reconhecida no mundo inteiro como uma grande sacada deste governo que salvou o país de um grande desastre», afirmou Antônio Ermírio de Moraes. E numa entrevista publicada pelo Correio Braziliense em 9 de Janeiro de 2011, Octávio de Barros, director de Pesquisa Macroeconómica do Bradesco e membro do Conselho Superior de Economia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, FIESP, declarou: «Segundo as nossas estimativas, desde 2004 cerca de 48 milhões de brasileiros ingressaram nas classes A, B e C. Esse contingente equivale a mais do que a população de países como Argentina ou Polônia e mesmo a da Espanha. Fatores que têm impulsionado essa mobilidade, tais como a formalização do emprego, os ganhos de renda real, a rede de proteção social e o crescimento econômico mais sustentável do que o verificado nas últimas décadas continuarão em curso. […] esse processo também tem impactos positivos sobre os investimentos e a busca por inovação, ganhos de produtividade e queda de preços».
Os aumentos salariais, o crescimento da produtividade e a internacionalização económica estão intimamente ligados, como reconhecem os grandes patrões e os altos tecnocratas do capitalismo brasileiro. A conjugação destas tendências fez progredir a transnacionalização das empresas. Se atentarmos nos dados económicos, veremos que os factos invalidaram alguns elementos essenciais das teorias do desenvolvimento dependente e associado. O colosso norte-americano está hoje em sérias dificuldades sem que isto ameace o capitalismo mundial, e alguns países que sempre se situaram na Periferia passaram a deslocar-se para um novo Centro em formação. Rubens Barbosa escreveu num artigo de O Estado de S. Paulo em Fevereiro de 2009: «A crescente projeção externa do Brasil tem aspectos muito positivos, como maior visibilidade e crescente responsabilidade externa, mas também tem aspectos negativos, como a percepção de que o País começa a atuar como uma “força imperialista” ou de dominação». Estas palavras lúcidas devem-se a um antigo embaixador do Brasil em Londres e depois em Washington. No lado oposto do espectro político, habituada a reduzir o capitalismo ao imperialismo yankee e seus lacaios e a atribuir aos malfazejos vizinhos do norte a culpa de todas as desgraças do sul — «tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos» — como reage a extrema-esquerda brasileira à ruína das suas convicções geopolíticas?
Alheada das alterações profundas do tecido empresarial, a maioria da extrema-esquerda recorre a uma tábua de salvação, continuando a desfiar conceitos, subconceitos e subsubconceitos, com um lamentável desprezo pela pesquisa empírica. E quem ouse afirmar que uma dada teoria está errada porque não acerta com os factos logo ouve em resposta que a visão dos factos é que está errada porque não se encaixa na teoria. Nas últimas duas ou três décadas o marxismo foi levado exactamente para onde os escolásticos medievais haviam levado a filosofia de Aristóteles, de maneira que vegeta agora numa época pré-galilaica. Conceitos operativos ficaram transformados em categorias lógicas e a análise empírica foi substituída pela dedução. Mais umas décadas deste tratamento e acabam com o marxismo, o que é pena, porque noutras mãos, ou antes noutras cabeças, ele permite explicar muita coisa.
Notas
[1] Classificam-se como investimentos externos directos aqueles que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa onde o capital é aplicado. Considera-se habitualmente que o investimento é directo quando permite adquirir uma participação superior a 10% do capital de empresas estrangeiras. Uma participação inferior é considerada como um investimento de portfolio ou investimento em carteira.
[2] Trata-se de um capítulo de Ana Cláudia Além e Fabio Giambiagi (orgs.), O BNDES em um Brasil em Transição, Rio de Janeiro: BNDES, 2010.
[3] Trata-se de um capítulo de Emir Sader e Marco Aurélio Garcia (orgs.), Brasil: Entre o Passado e o Futuro, São Paulo: Boitempo, 2010.
[4] Noutra passagem do mesmo capítulo lê-se que «para os desenvolvimentistas o principal instrumento de atuação do Estado era a elevação do valor real do salário mínimo. De um lado, isso fazia aumentar as transferências de renda do governo federal para os aposentados e pensionistas do INSS e, do outro lado, elevar o poder de barganha dos trabalhadores nas negociações salariais».
[5] Pode ver-se a este respeito H. Myint, The Economics of the Developing Countries, Londres: Hutchinson, 1982, pág. 47.
A seguir: A viagem do Brasil da periferia para o centro: 2) o novo horizonte.
Quando se refere ao papel do Estado brasileiro em pressionar pela elevada dos salários, atraindo a ira dos empresários retardatários, caso do Bolsa Família etc., isto não parece um caso que coloca em xeque a argumentação central de Economia dos Conflitos Sociais? Ou seja, não temos ai um caso em que o Estado substituiu os trabalhadores na luta pela elevação do consumo que força os capitalistas a aumentarem a produtividade?
Henrique, o seu comentário atingiu o centro do alvo, porque quando eu estava a escrever a passagem do artigo que você menciona lembrei-me de algo que escrevi há vários anos em Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, Porto: Afrontamento, 2003, págs. 257-258. Peço desculpa pelo tamanho da citação, e ainda por cima citando-me a mim próprio, mas acho que vale a pena:
«Os resultados do fascismo foram perversos. No campo político ele atenuou tanto quanto lhe foi possível as expressões e os efeitos das reivindicações laborais, mas deste modo ergueu, no campo económico, sérios obstáculos ao desenvolvimento do capitalismo — e fê-lo precisamente em situações em que o crescimento da economia, por motivos estruturais ou episódicos, estava já comprometido. Um dos mais sérios representantes do grande capital italiano, o senador Luigi Albertini, director de Il Corriere della Sera, prevenia num artigo publicado pelo seu jornal em Julho de 1923: “A pressão das classes operárias age do mesmo modo que a da concorrência. O empresário não gosta de nenhuma delas […] Mas ambas são um incentivo para o aperfeiçoamento e o progresso. Ai de quem as suprime! Ai de quem acede a todos os pedidos de protecção que procuram eliminar a concorrência! Ai de quem favorece as tendências de reacção política que visam livrar-se da pressão dos sindicatos!”. É difícil encontrar, à beira do fascismo, uma previsão mais lúcida. Do mesmo modo, um historiador sustenta que a destruição do movimento operário pelo nazismo contribuiu para que os capitalistas alemães perdessem a noção dos seus interesses comuns a longo prazo. E assim, quanto mais os regimes fascistas submetiam a classe trabalhadora a uma política repressiva, mais eles tinham de incentivar os empresários a acelerarem os ritmos da produtividade e mais tinham de lhes insuflar uma coesão de classe».
A mentalidade escravocrata dos pequenos e médios patrões no Brasil, e a desorganização e o clientelismo que ainda predominam numa parte muito considerável da classe trabalhadora brasileira fizeram com que, para empregar as palavras de Henrique, «o Estado substitu[ísse] os trabalhadores na luta pela elevação do consumo que força os capitalistas a aumentarem a produtividade». Reproduz-se assim uma situação que havia caracterizado os fascismos. Sinuosidades da história…
Essa substituição da classe trabalhadora pelo Estado vemos na educação. Atualmente, verificamos uma pressão para o aumento da produtividade dos processos formativos. Para além da clássica função de segurança pública, há pressão para que se garanta que os alunos saiam das escolas sabendo alguma coisa, ou sabendo mais. Obviamente, essa intenção não tem implicado no aumento dos investimentos de forma séria. O que se busca é melhor utilização e maior rentabilidade diante da precária infra-estrutura educacional. As reformas educacionais em curso procuram inserir modelos administrativos e materiais que forcem o maior trabalho dentro de cada hora aula e maior trabalho não pago fora da jornada oficial, extorquido aos professores: pressão para que se faça cursos, atividades, correções enfim.
Entretanto, ao mesmo que agem neste sentido, as altas tecnocracias educacionais se espantam com a grave precariedade salarial docente no país. Há casos vários de prefeituras que pagam 500 ou até menos em termos de salário líquido aos docentes. Daí que o governo Lula tenha se esforçado e batalhe para por em prática o piso salarial do professor, que parte de um mínimo de 1.140 reais para qualquer professor em qualquer parte do país. O relevante para o debate é que o professorado encontra-se esfacelado, não existe politicamente como categoria, e como os sindicatos são cooptados, deve-se ao governo federal uma pressão para que os Estados e as prefeituras os retirem da pobreza acentuada e paguem um salário menos píor. No caso dos professores, o governo federal substituiu a categoria na pressão por melhores salários.
Agora, já que falamos de educação, como foi possível o Brasil crescer tão rapidamente com uma população tão mal instruída? Que lugar encontra no mito do Brasil do futuro os discursos em torno da educação?
Seguindo a sugestão de um camarada meu, posto também aqui algumas observações que fiz em mensagens enviadas a listas, sugerindo a leitura deste texto:
”
Car@s,
Na semana passada havia compartilhado com vocês um artigo fundamental de João Bernardo (“As raízes ideologicas do Brasil-Potência”), publicado no Passa Palavra. O texto trata das origens e das implicações, para a esquerda, da confusão ou substituição de conceitos bem fincados na luta de classes por termos próprios da dinâmica entre estados-nações.
Mais precisamente, JB analisa o quanto o conceito fascista de “nação-proletária”, ao ter sido de alguma maneira projetado na história brasileira por pensadores e/ou estadistas progressistas, na eterna ânsia do encontro marcado com o “Desenvolvimento Nacional” da “Potência Brasil”, está na raiz de muitas das consequências nefastas com que hoje nos defrontamos. Na forma como temos analisado a história do país (sobretudo no século XX); o papel do Estado e de “nossa” burguesia nacional; e a dinâmica geopolítica de “nosso” Estado-Nacional (incluindo, ou escamoteando, sua atuação imperialista).
Se tais questões já eram muito importantes durante um longo contexto histórico de “subdesenvolvimento nacional” com a Economia Brasileira na periferia do sistema, o quê dizer sobre um momento de recessão global em que o Estado Brasileiro e diversas Transnacionais oriundas aqui do Brasil (e gerenciadas por uma plutocracia também de brasileiros) dão claros sinais de força político-econômica, e aprofundam seu caráter imperialista mundo afora?!
Quais as implicações deste giro para a classe trabalhadora daqui e de outros cantos, ainda mais se pensarmos que o fortalecimento desta dinâmica imperialista brasileira está sendo gerenciada por “quadros” “de esquerda”?
E o quê fazer com uma suposta oposição de esquerda que insiste em se pautar pela mesma perspectiva estado-nacionalista?
É sobre este giro concreto (e teórico) fundamental, que está ocorrendo debaixo de nossos narizes, que este novo texto do João começa a tratar…
Eis uma discussão fundamental para ser aprofundada, urgentemente, com base em dados e situações concretas, por quem leva a sério a luta anti-capitalista em nosso tempo.
Boa leitura e bom debate!
Forte abraço a tod@s!
Danilo
*
Ainda a propósito da discussão levantada pelo artigo de JB (“A viagem do Brasil da periferia para o centro”), para quem tiver interesse, sugiro que se confira o rol de textos deste outro sítio bastante revelador: http://interessenacional.uol.com.br/ . A começar pelos textos do ex-presidente FHC (http://interessenacional.uol.com.br/artigos-integra.asp?cd_artigo=101) e este de autoria de Marco Aurélio Garcia (um dos principais ideólogos-gestores dos Governos Lula-Dilma): http://interessenacional.uol.com.br/artigos-integra.asp?cd_artigo=105.
Ainda sobre o assunto, vejam também abaixo a notícia que acabou de sair no insuspeito Estadão, sobre os correntes planos internacionais do Banco do Brasil: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,banco-do-brasil-anuncia-planos-para-eua–europa-e-america-latina,not_64055,0.htm
Enfim… Já em clima de Copa do Mundo: Avante Brasil!
Abraço a tod@s!
D
”
Caro João,
Agora uma dúvida específica, relacionada aos seus últimos importantes textos desta série “Nunca Antes”. Uma dúvida surgida agora em discussão com um velho companheiro:
Queria saber se você tem notícias concretas (autores, fontes…), e o quê você diz a respeito da possível influência desempenhada também pela perspectiva “tática” de uma “Frente Única Anti-Imperialista” (e Anti-Fascista) na construção das Teorias do Desenvolvimento Nacional, aqui pelo Brasil e alhures. Perspectiva que abria brecha para se incluir nessa Frente “amplos setores da sociedade” comprometidos com a “modernização, industrialização e soberania nacional” etc etc.
Digo isto pois se trata de uma tese clássica nos meios de esquerda, oriunda da III Internacional se não me engano, mas que ecoou explicitamente nos quatro cantos do mundo “subdesenvolvido”: em textos de Mao Tse Tung (http://www.marxists.org/portugues/mao/1940/01/15.htm), a propostas de Luis Carlos Prestes (http://www.marxists.org/portugues/prestes/1935/09/roberto.htm) e de Carlos Marighella (http://www.marxists.org/portugues/marighella/1948/07/politica_12.htm) aqui pelo Brasil, entre muitos outros.
Embora seja uma questão bastante ampla, faço esta pergunta por duas razões básicas:
1) Para saber se é possível encontrar fontes e/ou elementos concretos de teóricos que tenham sido influenciados também por esta tese nas suas formulações de Teorias de Desenvolvimento Nacional mais anti-imperialistas do que anti-capitalistas. Ou seja: com esta influência além das idéias da CEPAL e afins, as quais você e Joseph Love já provaram terem ascendência no conceito fascista de “nação-proletária”;
e 2) Pela necessidade de refletirmos urgentemente sobre os efeitos catastróficos que esta mistura explosiva (Anti-Imperialismos Tortos + Teorias de Desenvolvimento de Estado-Nacionalismos) tem produzido não apenas na esquerda, mas em sociedades inteiras geridas por (ex-)esquerdistas, agora com economias ascendentes no plano mundial. Como o imperialismo de países dos Brics… Como este imperialismo brasileiro tratado pela série “Nunca antes”.
Desculpe pela extensão do comentário, mas achei importante no mínimo compartilhar tais questões…
Forte abraço!
Danilo,
Eu acho que é isso mesmo. A orientação adoptada por Lenin, Bukharin e Radek para os países do terceiro mundo (ainda não se chamavam assim, a denominação só foi criada em 1952) previa a aliança com a porção da burguesia considerada nacional e progressista (em termos geopolíticos, antibritânica ou antifrancesa, visto que os Estados Unidos mal começavam a ser uma potência imperial). Adicione a isto a teoria do «socialismo num só país», que mais não foi do que a primeira teoria do desenvolvimentismo, e que na prática deu um resultado colossal. Na década de 1930 todo o mundo estava em crise excepto a União Sioviética dos planos quinquenais. E assim a linha justa passou a ser a aliança com a burguesia dita nacional e a defesa de uma planificação, ou planejamento, central. Esta era a linha do Komintern, aplicada a todas as regiões colonizadas ou semicolonizadas ou subdesenvolvidas. O Brasil não foi mais do que um caso entre muitos outros, com efeitos catastróficos por todo o lado. Se você ler os teóricos do desenvolvimento dos países da esfera soviética a seguir à segunda guerra mundial, é isto mesmo. E no Brasil existe um exemplo estético flagrante, a promoção de Niemeyer por Juscelino Kubitschek, que o trouxe para Belo Horizonte e o levou depois para a construção de Brasília. Que foi isto senão a aliança do comunismo com a burguesia nacional em nome do desenvolvimentismo? Ao menos neste caso os resultados estéticos foram bons…
João Bernardo, separei quatro pontos em seu artigo e proponho algumas questões que podem fortalecer os argumentos e esclarecer ainda mais a situação presente do Brasil. Talvez não sejam questões possíveis de tratamento em comentários, mas são elas:
1) “A primeira destas transformações é antiga e iniciou-se no momento em que a capacidade eleitoral se generalizou a toda a população adulta. Como era pouco verosímil que uma elite numericamente reduzida aceitasse ficar sob a tutela da maioria desprovida de poder económico, a expansão do voto levou à perda de importâncias dos órgãos eleitos e à passagem do poder de decisão para entidades cooptadas e em grande medida informais. Foi então, e só então, que a política das democracias se converteu num espectáculo de ilusionismo.”
Sabemos que a democracia que temos hoje não nos basta. De certa forma ela legitima a ordem estabelecida e, quando nas raras ocasiões em que as brechas democráticas são radicalizadas ou simplesmente implementadas com vigor, ela pode ser golpeada e substituída por uma forma de poder autoritariamente sem máscaras. Essa fraqueza democrática nos levaria então às lutas por democracia participativa? Você acredita nessa possibilidade de uma democracia participativa, que enfim, traduzir-se-ia em conselhos, cooperativas, organizações locais, etc?
2) “Em suma, o nacionalismo de Kubitschek e de Goulart recorreu à implantação de filiais de companhias transnacionais para proceder à substituição de importações, preferindo importar investimentos directos [1] do que importar produtos.”
Estranhou-me esse tratamento igual a Kubitschek e Goulart. Você não vê diferenças entre os dois governos? Isso porque o Goulart fazia e planejava reformas de base (agrária, controle de capitais); os camponeses se organizavam em ligas e os sindicatos cresciam; criou-se a Universidade de Brasília com uma concepção inovadora… Era um governo que incomodava a direita e “teve” de ser golpeado.
3) “não importa aos trabalhadores quem é o proprietário jurídico do capital mas quais são as relações de trabalho que vigoram no interior do estabelecimento, e sob este ponto de vista as empresas nacionalizadas não se distinguiam das empresas privadas brasileiras ou estrangeiras;”
Os ataques a classe trabalhadora são tão grandes e constantes que é compreensível o motivo da defesa das empresas nacionais. Na empresa pública há uma série de garantias que permitem ao trabalhador uma vida mais amena/estável. Prova disso é a criação de uma nova profissão: os “concurseiros”, ávidos para ingressar na carreira pública e garantir os bons salários, a estabilidade, o direito de greve… Por isso acho que é válida a crítica às privatizações. E, por outro lado, perguntemos ao trabalhador(a) médio(a) se ele prefere trabalhar na empresa pública ou privada – acredito que a primeira opção receberia mais votos. Na empresa privada a exploração é mais evidente; alí está o trabalhador flexível, polivalente, que deve ser “pró-ativo”, vestir a camisa e ainda ser tratado como “colaborador”.
4) “O colosso norte-americano está hoje em sérias dificuldades sem que isto ameace o capitalismo mundial, e alguns países que sempre se situaram na Periferia passaram a deslocar-se para um novo Centro em formação.”
Quais são os indícios básicos que ameaçam o colosso norte-americano? E um possível declínio do “Império” seria indiferente ao capitalismo global (pois as empresas transnacionais não mais dependem de um Estado-nação para garantir-lhes condições de reprodução ampliada?)?
Honório,
Agradeço-lhe a sua leitura interessada. Respondendo por ordem.
1) Na minha opinião, os órgãos eleitos estão desde há muito desprovidos de poder. Por isso os movimentos populares têm caminhado para a instituição de formas paralelas de poder, desde ocupações de fábricas ou terras ou edifícios até experiências muito avançadas, como a Comuna de Oaxaca, por exemplo.
2) Não escrevi em lado nenhum que não havia diferenças entre os governos de Juscelino Kubitschek e de João Goulart. Escrevi que ambos seguiam uma política de substituição das importações mediante o recurso ao estabelecimento de filiais de firmas multinacionais. Foi este o aspecto que me importou destacar.
3) Você não estará a confundir empresa pública com burocracia do Estado? As indústrias estatizadas de outrora aplicaram o taylorismo e o fordismo com a mesma extensão e intensidade com que o aplicavam as indústrias privadas, senão não teriam sobrevivido. Do mesmo modo, as indústrias estatais, as poucas que ainda existem, em alguns países, têm de aplicar as mesmas relações de trabalho toyotistas que são aplicadas no sector privado.
4) Tentei responder às questões que você coloca, e ainda a várias outras, numa longa série de artigos publicada neste site durante o ano passado, com o título genérico «Ainda Acerca da Crise Económica». Para lá o remeto, se tiver interesse.
Logo ao ler o título, tomei um susto: o Brasil agora virou um país de Primeiro Mundo, um país central? É claro que tais fantasias só poderiam saír da pena do JB, com seu estilo inconfundível de atirar críticas “criativas” a interlocutores imaginários.
Para começer, é interessante chamar a atenção para alguns links, pois trazem dados importantes:
Avanço do Brasil assusta vizinhos da América do Sul
http://www.cartacapital.com.br/politica/avanco-do-brasil-assusta-vizinhos-da-america-do-sul
Gasto público, lucro privado:
http://www.cartacapital.com.br/economia/gasto-publico-lucro-privado-2
Remessas de lucro são isentas de imposto de renda
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2164843/remessas-ao-exterior-sao-isentas-de-ir
Remessa de lucros para o exterior bate recorde
http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u396421.shtml
Eles mostram alguma evidências, que sugerem que, AO MESMO TEMPO que a burguesia brasileira avança de modo imperialista sobre os vizinhos latino-americanos (e possivelmente países africanos), a economia brasileira ainda sofre uma internacionalização que expatria centenas de bilhões de dólares de lucros obtidos por empresas transnacionais, e que, mais que isso, estas corporações transnacionais são ainda por cima apoiadas pelo Estado brasileiro na exploração dos trabalhadores nacionais. Não sei se existem pesquisas sobre o assunto, mas eu realmente não duvido que as próprias empresas multinacionais com sede no Brasil sejam tão internacionalizadas, de modo direto ou indireto, que só sejam “brasileiras” em seu registro cartorial. Isso para não falar de que a estrutura econômica brasileira é ainda em grande parte típica dos países dependentes~. A soja e o aço, agora, fazem parte de mais um ciclo da economia nacional, que já foi exportadora de açúcar, ouro, algodão, café, borracha, e, agora, de aço e soja, setores, aliás, altamente internacionalizados.
Por outro lado, nunca vi uma defesa tão apaixonada e eloquente dos governos de FHC e Lula, inclusive das criminosas privatizações. As mesmas mentiras são utilizadas, até mesmo! Será uma “crítica libertária” ao lulismo, ou a mais apaixonada apologia do petistucanismo? É difícil dizer. A diferença entre uma empresa privada e uma empresa estatal não é apenas um “título jurídico”. As empresas públicas podem ser usadas para um planejamento econômico, mesmo que parcial, e seus lucros ficam com o Estado (ao menos quando não são desviados pela corrupçaõ e pelo clientelismo). Basta ver toda a discussão sobre o papel do BNDEs ou sobre o destino dos lucros do pré-sal. Essa é a diferença (não é o ideal, que é a autogestão dos trabalhadores, mas não se pode dizer que “é a mesma coisa com sinal trocado”). As privatizações não foram uma “integração em redes internacionais de tecnologia”, como dizia a propaganda privatólatra (que o JB chama de “fatos”), foram pura e simples transferência de empresas públicas para empresas multinacionais privadas, às custas de enormes prejuízos para o povo brasileiro, como revela a pesquisa de Biondi (essa sim com uma sólida fundamentação empírica): http://www2.fpa.org.br/uploads/Brasil_Privatizado.pdf
http://www2.fpa.org.br/uploads/Brasil_privatizado%20II.pdf
As nacionalizações, especialmente dos bancos, recursos naturais e setores monopolistas e estratégicos são essenciais para todo e qualquer programa socialista. É até mesmo espantoso que alguém que reivindique uma perspectiva “operaísta” defenda com tanto entusiasmo a privataria. Aliás, pelos misreadings de JB das teorias do subdesenvolvimento e sua suposta “origem fascista”, alguém poderia mesmo defender Pinochet contra Allende, pois a política de nacionalizações e redistribuição do segundo seria “fascismo dissimulado pelo terceiro-mundismo”, e a política econômica do ditador favoreceria o aumento da produtividade. Não deixa de ser engraçado, irônico e paradoxal que alguém que reivindica o “socialismo libertário”, que afirme defender a autonomia dos trabalhadores contra o reformismo nacional-desenvolvimentista acabe apresentando a privatização, o assistencialismo e a desregulamentação como expressões do “interesse geral”, pois supostamente favoreceriam o aumento da produtividade e da renda dos trabalhadores através de “incorporações a redes tecnológicas” (coisa que é, diga-se de passagem, mais factóide midiático que fato). Os opositores das privatizações, desregulamentações, assistencialismos, bem, estes seriam “totalitários”, “fascistas terceiro-mundistas” e “antiamericanos”, mais ou menos como os órgãos midiáticos da burguesia brasileira dizem. Agora estou confuso: quem é mesmo que está servindo à dominação oligárquica-burguesa no Brasil? Perto de certos “libertários” (ou seriam apenas liberais-radicais?), o reformismo da tradicional esquerda nacionalista do velho Brizola parece um programa revolucionário anticapitalista.
Quanto à tese (como àquela avalanche de absurdos que acusava até o pobre Celso Furtado de ser fascista, gráças a uma violência absurda contra a história intelectual latinoamericana), é um absurdo. O Brasil consegue pouco mais que uma influência regional sobre os vizinhos e alguns países africanos, gráças, em grande parte, ao seu tamanho (do território, da população, dos recursos naturais, da economia). Mas tamanho não é tudo, e a burguesia e a oligarquia brasileiras continuam (e continuarão) completamente dependentes dos Estados capitalistas realmente centrais. Enfim, um subimperialismo, que necessita do apoio dos EUA, da China e da UE para manter sua posição regional. Continuo com a tese de Rui Mauro Marini: o Brasil só superará o subdesenvolvimento superando o capitalismo.
leio esse brilhante texto de 2011 (muito anterior ao fenômeno do bolsonarismo) e não poderia deixar de perguntar ao seu autor:
João Bernardo, a semente do bolsonarismo residiria (também) nesses ‘patrões das empresas menos produtivas’ que ‘receiam que os eventuais ganhos devidos à ampliação do mercado não sejam suficientes para cobrir o que perdem devido a aumentos salariais não compensados por um acréscimo da produtividade?’
O fascismo brasileiro estaria portanto no ressentimento dos pequenos patrões incapazes de dar respostas pela via da produtividade ao estímulo de subida dos rendimentos dos trabalhadores pelos governos Lula 1 e 2?
Mto Obrigado!
Eddie,
O que você escreve no seu comentário corresponde exactamente ao que eu pensei na altura e continuo a pensar. Veja uma coisa. Os governos de Lula conseguiram algo raríssimo em todo o mundo, uma união política e social que ia desde a agro-indústria até ao Mst, desde o grande capital até aos sindicatos, desde as grandes construtoras até ao Mtst. Tudo isto baseado em ciclos de aumento da produtividade e aumento de salários que se potenciavam reciprocamente. Seria difícil arranjar um melhor exemplo de mais-valia relativa. Quem poderia opor-se a uma situação assim? Os representantes do Brasil arcaico, incapazes de modernizar as suas empresas e o seu modo de vida, presos ainda à velha mentalidade escravocrata. De certo modo, eu já previra isso, embora com repercussões muito menores, num dos artigos sobre o Bolsa Família (aqui).
A esquerda, com a extrema-esquerda que leva atrelada, padece de uma miopia — aliás, de um estrabismo — quando fala da queda do governo de Dilma Rousseff como um golpe contra a esquerda. Ora, a operação Lava Jato teve como alvo tanto o principal representante político da esquerda como alguns dos principais empresários do grande capital mais moderno. Se quisermos pensar nesses acontecimentos em termos de «golpe», então teria sido um golpe contra a mais-valia relativa.
Quanto à classificação do bolsonarismo como um fascismo, o problema parece-me complexo e desviar-me-ia do assunto principal.
Me intrometo no diálogo para dizer que as duas perguntas de Eddie podem encontrar respostas, ainda que vacilantes à época (apesar de farta fundamentação em literatura econômica), em duas partes do ensaio “Fascismo à brasileira?”, publicado pelo Passa Palavra em 2018:
“Quem alimenta o “voo de galinha”?
A redução de investimentos em todas as áreas da economia brasileira, a retração do capital fixo a níveis próximos dos de 2007, a persistência do baixo aproveitamento dos meios de produção, a redução do investimento em ciência e tecnologia por meio dos cortes no orçamento ministerial correspondente, a perda do grau de investimento e a exportação de capitais rumo a ambientes mais promissores, tudo isto junto cria um cenário pouco promissor para a retomada do desenvolvimento econômico. Ainda mais quando o crescimento econômico chinês, ao qual a economia brasileira engatou-se desde a década passada, não parece retomar o mesmo ritmo de anos atrás. Pior ainda frente a um cenário de guerra comercial entre EUA e China.
Em todo caso, não se pode dizer, sem muitas ressalvas, que a assimetria histórica entre a estabilidade na esfera empresarial e as convulsões da esfera política tenha sido rompida. Conquanto esta última tenha afetado severamente o setor interno da economia brasileira e as empresas a ele atreladas, as empresas mais dinâmicas recorreram de forma consistente à exportação de capitais — ou seja, ao investimento em outras economias — para escapar da crise interna.
O padrão da inserção brasileira na economia global desenhado nas duas últimas décadas pode não ter sido fundamentalmente alterado, mas os elementos acima descritos podem desempenhar no médio prazo problemas sérios para o desenvolvimento capitalista normal. Diga-se de passagem que a crise econômica afeta mais os capitalistas pouco capazes de exportar capitais ou de atrair investimentos externos diretos. Presos aos circuitos econômicos contaminados pela crise, seus riscos são muito maiores, sua insegurança é muito mais intensa. É nestas situações em que os capitalistas costumam “socializar os prejuízos” lançando-os nas costas de de outros capitalistas mais retardatários que eles próprios. Entretanto, mesmo estes podem repassar a conta a outros ainda mais retardatários, e assim seguem até encontrar aqueles que não têm a menor condição de fazê-lo – a classe trabalhadora.”
(Em: “Fascismo à brasileira”, parte 3: https://passapalavra.info/2018/08/121469/)
“Em segundo lugar, a experiência histórica ensina que qualquer conquista obtida dos capitalistas pelos trabalhadores, quando não vem acompanhada de um forte e ativo movimento de massas, tanto é revertida pelos capitalistas em seu próprio favor quanto pode criar as bases para a ascensão de movimentos fascistas ou similares.
Um exemplo: a política de aumentos no salário mínimo acima da inflação não afetou os assalariados em todas as faixas da população brasileira; as melhoras beneficiaram principalmente os trabalhadores de rendimento mais baixo, enquanto que nas faixas intermediárias houve melhoras salariais mais lentas.
Um dos efeitos setoriais desta política é o aumento no preço dos serviços de empregados domésticos, cabeleireiros, manicures, costureiros, pintores, pedreiros, encanadores, eletricistas e de outros prestadores de serviços pessoais e domésticos. O que para estes setores foi ganho de renda, para seus contratadores tradicionais, em especial aqueles situados nas faixas intermediárias de renda, foi inflação, pois cresceu o custo com a contratação desta mão-de-obra especializada. No caso brasileiro o impacto é ainda maior, pois trata-se do país com maior número de empregados domésticos no mundo inteiro.
Na comparação internacional de renda, estes setores médios são, na verdade, pobres. O “espaço” em seus orçamentos para lidar com as pressões inflacionárias é menor do que parece, e certamente menor do que gostariam.
Frente às pressões inflacionárias, restaram-lhes opções nem sempre fáceis.
Uma delas é aprender a fazer por conta própria os serviços domésticos e pessoais. É por aí que se deve entender a proliferação de cursos de “artesanato” e “customização” de móveis e vestuário etc. na última década e meia, e também a de cursos de pequenos serviços pessoais e domésticos – elétrica, pintura de paredes, encanamento, maquiagem, manicure etc.; sob o argumento da “autonomia”, tais cursos ensinam a substituir a mão de obra especializada pela do próprio contratante.
Outra opção é apertar o orçamento para manter os gastos com tais serviços.
Há mais opções, mas estas indicam casos-limite.
Num caso e no outro, mas especialmente no segundo, surge em meio a estes setores uma tendência a responsabilizar os aumentos nos preços dos prestadores de serviços pela deterioração nas suas próprias condições de vida. Em casos extremos, há quem passe da constatação à ação. Eis aí como se pode encontrar um dos elementos explicativos – há outros – da participação massiva destes setores não apenas nos atos públicos e na militância em redes sociais a favor da derrubada de Dilma Rousseff, mas igualmente em favor de tudo o que vá contra os sinais da melhoria nas condições de vida daqueles setores da classe trabalhadora mais favorecidos pela política prolongada de aumentos do salário mínimo acima da inflação.
Tal ambiente mostra-se ainda mais favorável numa sociedade como a brasileira, muito marcada pelo elitismo racista e onde estes setores de renda média, quando não são eles mesmos pequenos burgueses e gestores de baixo e médio escalão, criam diversos elementos distintivos no campo do consumo e do comportamento para diferenciarem-se da classe trabalhadora e aproximarem-se da burguesia e dos gestores.”
(em: “Fascismo à brasileira?”, parte 4: https://passapalavra.info/2018/08/122172/)
A coisa não é tão simples.
O neofascismo brasileiro atravessou todas as classes. Por qual ele começou? É difícil dizer. Mas o agronegócio brasileiro (mesmo o de alta produtividade) tem sido bolsonarista. O ataque ao governo Dilma que culmina no golpe em 2016 ocorre num momento de baixa na taxa de lucro. Era preciso rebaixar o custo da força de trabalho, na visão dos capitalistas, para ampliar a taxa de lucro (essa foi vista como a linha de menor resistência, e não o aumento de produtividade).
Outro ponto: um fator que explica o ataque da Lava-Jato contra às grandes empreiteiras brasileiras é a disputa geoeconômica. Já não é segredo os laços da Lava-Jato com o Departamento de Estado dos EUA. Não é só no Brasil que os EUA usam lawfare em disputas comerciais.
Para o resto da burguesia brasileira, como a agenda do golpe era retirar ainda mais direitos do trabalhadores e limpar o terreno para uma política econômica ultraliberal, destruir essas empreiteiras pareceu não importar.
João Bernardo, por que você não classifica o bolsonarismo como um fascismo? Ou até classificaria, mas por que acha que é mais complexo?
Caio,
Quando surgiu, e nos seus primeiros tempos, o bolsonarismo teria podido desenvolver-se como um fascismo. Por um lado, beneficiava do respaldo da sociedade conservadora, nomeadamente porque contava com o apoio activo das igrejas evangélicas e com a aprovação do exército. Mas um fascismo é outra coisa, e para se desenvolver como fascismo o bolsonarismo teria de assentar a sua dinâmica em iniciativas como o Movimento Brasil Livre e o acampamento de Brasília encabeçado por aquela mulher que usava um pseudónimo alemão, esqueci agora o nome, e outros movimentos semelhantes. Essas iniciativas poderiam então constituir para o bolsonarismo uma milícia truculenta de ruas, capaz de o animar com uma energia que juntasse temas originários da esquerda com valores predominantes na direita — e são este cruzamento e esta permanente tensão que caracterizam o fascismo.
Por que motivo isto não sucedeu? Aparentemente, faltou a Bolsonaro o aval do exército, mas teria sido isto? E, se foi, qual a razão? Parece-me prematuro formular uma resposta quando carecemos ainda do acesso a documentação e a testemunhos.
E assim o bolsonarismo, que teria podido ser um fascismo, existiu durante algum tempo como um fascismo em suspenso e depois limitou-se a ser um governo da extrema-direita mais retrógrada. Mas o fascismo é outra coisa.
Olá João, obrigado pelo esclarecimento. Então entendo o conceito da mesma forma que você, mas vemos diferente os fatos. Se o que teria faltado ao bolsonarismo era a existência de um movimento violento, com milícias, e o cruzamento de temas da esquerda radical para o campo da direita, parece-me claro que, sim, trata-se de fascismo. Até porque o MBL e o acampamento dos 300 de Brasília foram cedo ultrapassados, e vimos depois coisa muito pior e inclusive mais capilarizada socialmente. Talvez essas coisas não tenham se apresentado num organismo institucional único, e sim como um movimento amplo, o que poderia ser visto como insuficiente, e essa seja a razão de você fazer tal separação.
Caio,
Para um movimento fascista, ao contrário do que sucede com um movimento libertário, a dispersão não é uma força, mas uma fraqueza. Se Bolsonaro — por um motivo a definir — não foi capaz de reunir aquelas iniciativas num movimento coeso e de lhes dar uma disciplina, uma hierarquia e um comando único, então faltou-lhe um instrumento indispensável para o fascismo. A capilaridade social, para empregar os seus termos, foi o resultado dessa incapacidade, e o futuro dirá se lhe resta diluir-se ou se surgirá um chefe que a aproveite, a centralize e a use numa tentativa mais séria de fascismo.
João, a existência da internet e das redes sociais, com sua capacidade única de aglutinação tática e ideológica, não convertem em força ou ao menos anulam o caráter de “fraqueza” dessa dispersão?
Pablo,
As redes sociais têm sido utilizadas com êxito por aquelas movimentações que eu classifico como fascistas do pós-fascismo. As redes sociais permitem a formação de milícias virtuais, com a forma moderna de linchagem, que é o cancelamento, o exercício da censura e a criação de espaços seguros, em suma, permitem hegemonizar departamentos universitários e mobilizar a opinião pública em prol da ascensão de novas elites. Mas para actuar como força de ataque de um partido fascista clássico, na conquista ou na manutenção do poder político governamental, são necessárias milícias com disciplina, hierarquia e comando centralizado. Para isto não bastam as redes sociais.
SOBRE REDBROWN
Se perguntar não ofende: tais “milícias com disciplina, hierarquia e comando centralizado” não seriam tão “necessárias” para um aparato leninista quanto para sua(s) caricatura(s) fascista(s)?
Ulisses,
Vejamos a génese das milícias fascistas, e limito-me aos dois casos clássicos. A acção de rua do fascismo italiano foi originariamente impulsionada pelos arditi, tropas especiais criadas durante a primeira guerra mundial para operações arriscadas, pelos sindicalistas revolucionários, discípulos italianos de Georges Sorel, e pelos futuristas que, tal como proclamara o fundador Marinetti, queriam «celebrar o movimento agressivo, a insónia febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o murro». E esta fusão de disciplina, de hierarquia, de agressão e de esquerdismo foi efectuada sob a égide de um Duce saído da ala mais à esquerda do socialismo italiano e que, aliás, nascera já numa família da esquerda radical. Quanto à Alemanha, basta ler Mein Kampf para ver como o futuro Führer apresentou a organização e o modo de actuação da extrema-esquerda como o modelo que ele viria a adoptar para a criação das milícias do nacional-socialismo.
Se eu tiver razão quando afirmo que o fascismo consiste no permanente cruzamento, ou convergência, da extrema-esquerda com a extrema-direita, em que aspirações sociais oriundas da esquerda encontram eco em meios nacionalistas da direita — e toda a minha análise do fascismo enquanto revolta na ordem decorre desta perspectiva — então o que resta na geometria do fascismo além do eixo conservador, do exército e das Igrejas? Restam as milícias hierarquizadas, truculentas e disciplinadas, e é precisamente através delas que soam no fascismo os ecos oriundos da esquerda.
E, no meio disto, o leninismo? Todos foram beber à mesma fonte e eu não sei quem caricaturou quem.
Caro JB:
Fascismo e leninismo, aka alas direita & esquerda do capital, são gêmeos siameses, menos inimigos do que rivais, cuja função se resume a manter a exploração e a opressão dos proles.
Remember Otto Ruhle…
Saúde & Alegria
“A capilaridade social, para empregar os seus termos, foi o resultado dessa incapacidade, e o futuro dirá se lhe resta diluir-se ou se surgirá um chefe que a aproveite, a centralize e a use numa tentativa mais séria de fascismo.”
Engraçado pensar que este debate surgiu logo antes do fenômeno Pablo Marçal nas eleições municipais de São Paulo.
https://www.poder360.com.br/brasil/mello-araujo-diz-que-marcal-tenta-tomar-lugar-de-bolsonaro/
Um sujeito que é coach, influencer, pastor, ligado ao crime organizado e que conseguiu fanatizar a mesma multidão que antes estava fanatizada pelo próprio Bolsonaro – inclusive fazendo seus seguidores se virarem contra o presidente quando ele fez críticas à Marçal.
Bolsonaro não foi um acaso e o movimento social que levou à tentativa de golpe de Estado em 2022 não terminou por ali.