Seria um erro afirmar que não existem tensões religiosas no país; porém, a forma com que elas se desencadearam no domingo foi de inteira e exclusiva responsabilidade da junta militar. Por Aldo Cordeiro Sauda
Os mártires de Maspiro
Eram 17 caixões. Todos enfileirados em meio à rua. Inteiramente fechados, alguns possuíam sobre si antigas fotos dos mortos. Os corpos das vítimas, levados para o hospital cristão copta ao longo da noite do domingo, continham configurações físicas chocantes de mais para serem expostos ao público. Em meio à ausência de espaço no necrotério, milhares de egípcios, cristãos e muçulmanos, prestavam suas homenagens às mais novas vítimas da junta militar. Nas calçadas em frente ao hospital, rodeados por cenas de comoção e lamento, a maior comunidade cristã do Oriente Médio chorava a morte de seus pares. Não foram poucos os que se emocionaram ao se aproximar do conglomerado de caixões. Sob o sol escaldante da África, mulheres, inteiramente vestidas de preto, com o cabelo coberto por um fino véu, gritavam, choravam e gesticulavam em total demonstração de desespero. Apenas a alguns metros de distância, um grupo composto primordialmente por homens, cantava em baixo de cruzes improvisadas pela derrubada do regime.
Ninguém sabe ao certo o número de mortos no “Massacre de Maspiro”, como diversos egípcios tem descrito os eventos do domingo passado. O número oficial se encontra em 25, porém diversas pessoas afirmam terem testemunhado o exército egípcio atirar corpos de manifestantes no Rio Nilo. Uma prática, à luz dos eventos de domingo, nem um pouco improvável.
O massacre, perpetrado pelo exército, possuía resquícios de crueldade típicos das juntas militares latino-americanas. “Os tanques passaram por cima da cabeça dos nossos meninos, eu vi a cabeça deles explodir”, afirmava George Daut, um dos presentes na manifestação de domingo. “Elas pareciam bexigas d’água”. Entre choros e suspiros, George afirmava não manter nenhum ressentimento contra os muçulmanos egípcios. “Nossos filhos não foram assassinados pelos muçulmanos, ele foram assassinados pelo exército do Marechal Hussein Tantawi”.
O bloco islâmico-militar
No início da tarde de domingo, quando milhares de manifestantes marcharam em direção à sede da televisão estatal egípcia, local tradicional das manifestações da minoria copta, ninguém imaginava que o dia terminaria em uma tragédia de tamanhas proporções. O ato, um protesto contra a destruição de uma igreja na província de Aswan, no interior do Egito, não era algo inteiramente novo. Há anos radicais islâmicos, sob alguma proteção do Estado, têm atacado os templos da minoria, que desde a queda do regime Mubarak vêm manifestado seu descontentamento publicamente.
Baseadas em um conjunto de leis originárias do Império Otomano, redigidas em 1856, a legislação egípcia na prática impede a execução de obras nos templos coptas do país. Segundo a regulamentação, qualquer construção ou reforma de um templo não islâmico requer uma série de documentos específicos e a aprovação do governo local, algo quase que sempre impossível. Não são raros os casos em que, sob argumentos da ausência de documentação correta, radicais islâmicos assumem para si a responsabilidade de impor a lei, vandalizando templos cristãos. Quase sempre os agressores são inocentados pelo Estado.
A tensão social entre cristãos coptas, que compõem apenas 10% da população egípcia, e a maioria muçulmana, não é inteiramente nova na história do país. Mesmo assim, o processo de islamização da sociedade, capitaneada pelo Estado há 30 anos, tem sido o principal combustível para explosões de ódio sectário.
Após os acordos de paz firmados entre Israel e Egito, em 1979, e a consequente expulsão dos conselheiros soviéticos do país pelo então presidente Anwar Saddat, o Estado egípcio passou por um longo processo de alteração de seu paradigma político central. O nacionalismo pan-arabista, defendido e institucionalizado ao longo dos anos 60 pelo presidente Gamal Abdel Nasser, não se fazia mais útil à nova configuração do Estado. Aliado de Israel e do Ocidente e iniciando um processo de liberalização econômica, o Egito de Saddat buscou no Islã um novo ponto de apoio para sua legitimidade política. Também conhecido como “O presidente Fiel”, Awnar Saddat, e futuramente seu herdeiro político Hosni Mubarak, consolidaram, por meio do Estado, a inserção da identidade religiosa no espaço público. Trabalhando ostensivamente para expurgar os resquícios do pan-arabismo de Nasser, a islamização da sociedade eliminou os principais opositores à nova aliança politica e econômica com os Estados Unidos.
Não é por acaso que o início do processo revolucionário, que derrubou o governo Mubarak, encontrou resistência entre os dirigentes da Irmandade Muçulmana. Banidos da política institucional, mas fortalecidos no espectro social, o “acordo de cavalheiros” que fundamentava a relação da Irmandade com o Estado entrou em risco com a erupção da revolução de 25 de Janeiro. O acordo tácito, no qual os militares induziriam a islamização da sociedade em troca da pacificação política da Irmandade, permitiu ao braço social da entidade uma expansão sem precedentes. Apenas após ampla pressão realizada pela base mais jovem da organização, somada à necessidade de não isolamento do processo político, é que a irmandade aderiu às mobilizações contra Mubarak.
A queda do ditador, que contou em seus últimos dias com a participação ativa da Irmandade, de forma alguma implicou no fim da cooperação entre o exército e os islamistas. O processo revolucionário enfraqueceu profundamente os elementos de sustentabilidade social do exército, tornando a Irmandade Islâmica potencialmente um dos mais viáveis instrumentos de sustento do regime. O fim do partido de Mubarak, somado ao enfraquecimento moral dos intelectuais ligados ao exército e o desmantelamento da central sindical oficial, empurram os militares para a necessidade de formar novas alianças sociais. Os islamistas, que, ao que tudo indica, em nada pretendem alterar o controle do exército e da burguesia sobre os meios de produção, têm se mostrado candidatos perfeitos ao Partido da Ordem.
Guardiões da estabilidade
O contexto da consolidação do bloco militar islâmico se encontra no plano de fundo do massacre de Maspiro. Como era de se esperar, a minoria cristã está sendo utilizada pelo regime como bode expiatório na construção de uma nova composição política e social. Soma-se a isto a utilização constante da carta da estabilidade política pelo exército. A idéia de uma prolongada crise política, em conjunto com a consolidação do caos social no caso da junta militar deixar o poder, tem sido o principal instrumento de legitimação do regime até agora. Não por acaso, os conflitos entre o exército e os coptas têm sido apresentados pelo Estado como um conflito entre cristãos e muçulmanos. Dentro deste cenário, o exército egípcio se apresenta como único mediador possível das tensões étnicas, se colocando acima dos conflitos sociais.
Seria um erro afirmar que não existem tensões religiosas no país; porém, a forma com que elas se desencadearam no domingo foi de inteira e exclusiva responsabilidade da junta militar. A caminhada do ato, que saiu do bairro cristão de Shubra em direção à região de Maspiro, era inteiramente pacífica. Ela era composta de homens, mulheres e crianças, carregando algumas cruzes, velas e imagens da Virgem Maria.
Assim como tem sido comum em quase todas as manifestações críticas ao governo, em certo momento, um grupo de rapazes, partindo por de trás das linhas policiais, atacou os manifestantes com paus e pedras. O ataque à manifestação por parte dos agentes provocadores, conhecidos no Egito como “Baltajiyyah”, ocorreu em clara coordenação com a polícia e o exército.
Um pouco após os ataques dos “Baltajiyyah” (ou lumpesinato, se quisermos utilizar uma terminologia clássica marxiana), o exército, pela primeira vez de forma clara e direta desde o início da revolução, começou a atacar os manifestantes. Entre bombas de gás lacrimogênio e rajadas de fuzil direcionadas ao público, os militares utilizaram-se de brutal repressão contra a minoria copta. Em meio aos ataques, blindados do exército foram atirados contra os civis, esmagando até à morte no mínimo 10 manifestantes.
Mensagem aos “cidadãos de bem”
Ao longo do dia, a TV Estatal, canal mais assistido do país, iniciou uma ampla campanha de agitação e propaganda contra a minoria copta. Imagens de soldados supostamente feridos no “confronto” começaram a ser veiculadas pela TV, dando a impressão de que uma verdadeira guerra estava se desdobrando entre ambos os lados. Em conjunto com a imagem de militares feridos, a televisão do governo, no melhor dos estilos “Rádio Ruanda”, exibiu uma entrevista ao vivo com um militar descrevendo os coptas como “cães”.
O canal estatal, que opera sobre firme controle do Ministério da Informação, anunciou que havia três soldados feitos “mártires” pela “batalha” contra a turba. Logo em seguida, começaram a circular na cidade rumores de que os coptas portavam metralhadoras, que estavam sendo utilizadas contra o exército. Em meio a um tom apocalíptico, a apresentadora responsável por conduzir o noticiário convocou os “cidadãos de bem” para proteger o seu exército do ataque cristão.
Obviamente, para além do show televisivo, não havia nenhum soldado morto. Os manifestantes coptas, que carregavam apenas artefatos religiosos, foram massacrados pelo exército. No dia seguinte, o canal estatal anunciou que a âncora havia ficado “nervosa” e se confundido na hora de transmitir a notícia da morte dos soldados. Quanto à convocatória aos “cidadãos de bem”, nenhuma explicação oficial foi dada, para além da afirmação do Ministro da Informação de que o canal estatal é “imparcial” e “objetivo”.
É difícil medir as dimensões e efeitos do ódio religioso propagado pelo canal do governo. O que se sabe é que as manifestações em Maspiro, que começaram no início da tarde de domingo, transformaram-se em uma grande batalha na praça Tahir, estendida até a madrugada. Com a divulgação das notícias dos confrontos, centenas de manifestantes aderiram a ambos os lados, alterando o caráter originalmente confessional da manifestação. Não que a marcha contra o ataque à igreja em Aswan fosse composta originalmente apenas por cristãos; mas, durante a noite, o conflito tornou-se um ato tipicamente anti-junta militar, composto igualmente por coptas e muçulmanos.
As minorias e o partido da ordem
Se para a ampla gama do povo egípcio o exército tem se colocado como guardião da estabilidade, tal fato é ainda mais verdadeiro frente à comunidade cristã. Como qualquer minoria, a principal preocupação dos coptas no Egito é a sua sobrevivência diante de um ambiente hostil, e o exército, suposto mantenedor da “paz social”, se coloca como seu aliado nato.
Inevitavelmente, momentos de revolução tendem a empurrar as minorias a terem de fazer duras escolhas; de um lado, a antiga “ordem social”, na qual certamente serão oprimidos como anteriormente, porém dentro de limites preestabelecidos que não colocam em risco a sua existência física; de outro, a possibilidade de liberdade e emancipação, permeada sempre pela possível reversão das relações sociais, na qual a antiga ordem opressora pode ser substituída por um estado de coisas ainda pior, em que sua eliminação física se dará como certa.
Não por acaso, diversas lideranças coptas se colocaram contrárias à revolução. O temor de um fortalecimento do campo radical islamista, que potencialmente implicaria em uma total destruição da comunidade, fazem de muitos coptas conservadores por natureza. No Egito revolucionário pós-Mubarak, com o aumento dos ataques aos templos cristãos, muitos da comunidade enxergavam o exército como único agente social capaz de os proteger. Não que os coptas não saibam da pouca simpatia que existe por eles nas forças armadas; mas, ao mesmo tempo, muitos acreditam que as mesmas sejam a única força capaz de impedir o avanço dos islamistas, islamistas estes que compõem o bloco político-social de apoio aos militares. A contradição é evidente.
O massacre de Maspiro, porém, pode ter contribuído para alterar esta equação. Se a relação entre os radicais islâmicos e o exército antes não se fazia clara aos coptas, agora certamente se faz. Provavelmente serão poucos os da comunidade que procurarão refúgio entre os militares. Não que os coptas não se oponham em algum grau à junta, muito pelo contrário, sempre fora comum ouvir nos atos políticos da minoria chamados pela a derrubada do governo, porém agora os mesmos chamados tomam uma nova dimensão.
Para onde vai o Egito?
Os eventos do domingo, inevitavelmente, contribuem para a radicalização da comunidade copta e sua consolidação no bloco social contrário à junta militar. Apesar de tal fato, é difícil captar o sentimento da maioria islâmica, alimentada pela imprensa com contínuo ódio religioso. Em uma região com pouca tradição de imprensa livre e um déficit histórico de participação popular, teorias da conspiração, na qual coptas subversivos em conjunto com estrangeiros estão tentando assumir o controle do país, tendem a encontrar solo fértil.
Ao longo do domingo, boatos circularam na mídia de que os Estados Unidos pretendiam mandar tropas ao Egito para proteger os templos cristãos, independente da vontade do governo local. Suposição esta inteiramente descolada da realidade, principalmente dado os fortes vínculos entre Washington e a Junta Militar. Mesmo assim, tais argumentos tendem a seduzir muitos egípcios, os levando a se unir por detrás de seu governo contra o suposto inimigo externo.
A investida por parte das forças da contra-revolução em um conflito sectário entre cristãos e muçulmanos, porém, pode muito bem fracassar. Por mais que existam tensões históricas no Egito entre as comunidades, a sectarização da sociedade e a elevação desta a níveis de violência como os do domingo parecem impossíveis sem uma forte instigação estatal.
Em meio aos funerais das vítimas, Nagiba Shenouda, uma jovem estudante copta, fazia questão de enfatizar a especificidade das relações entre cristãos em muçulmanos no Egito. “Isto aqui não é o Líbano” afirmava. “Por mais que ao longo dos últimos 30 anos cristãos e muçulmanos tenham se afastado uns dos outros, nossas vidas continuam entrelaçadas. Aqui no Cairo, ao contrário de cidades libanesas como Beirute, existe uma constante interação social entre as comunidades. Cristãos e muçulmanos muitas vezes residem nos mesmos bairros, estudam nas mesmas escolas e trabalham nos mesmos empregos”, dizia a jovem. “Existem problemas entre as comunidades, um cristão médio sofre mais dificuldades sociais do que um muçulmano médio, mas daí para um conflito sectário é uma distância muito grande”, concluía Nagiba.
As greves continuam
O massacre realizado pelo exército à manifestação copta é também um aviso a toda oposição. No Egito, as regras do jogo podem estar mudando. O descontentamento cada vez maior com a junta militar, expresso abertamente nas recentes críticas vindas dos partidos liberal-burgueses ao processo de transição, somado à onda de greves vitoriosas que têm se desencadeado nos últimos dois meses, revelam um acirramento das tensões sociais no país. A tentativa orquestrada pelo regime de instituir o divisionismo entre as massas pode muito bem ser o indicador de um junta que precisará aumentar o grau de coerção frente à clara redução do consentimento.
Na cidade de Mahallah, coração industrial do Egito, uma nova onda de greves na indústria têxtil pode mais uma vez eclodir em meio à crise de Maspiro. Enquanto o sindicato independente cresce a cada dia, a contradição central da sociedade, aquela que coloca os proprietários dos meios de produção no campo oposto aos produtores, parece estar longe de ser esquecida pela classe trabalhadora. Por mais que a junta do Mareshal Tantawi insista na tecla religiosa, nada garante a estabilidade de seu emprego. Mesmo após o tenebroso massacre do domingo, como diz a velha expressão militante, a luta continua. Que os mártires de Maspiro não tenham caído em vão.