Por Pablo González Casanova entrevistado por Claudio Albertani

Pablo González Casanova não precisa de apresentações. Figura histórica das ciências sociais no México e na América Latina, ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), ganhador de inúmeras medalhas, autor de dezenas de livros e centenas de artigos, premiado com vários doutorados honoris causa. Sua obra combina a qualidade literária, o rigor científico e o compromisso ético com a paixão pelo conhecimento. Não é um acadêmico de gabinete. Viajante incansável, amigo e interlocutor de intelectuais enaltecidos e de ativistas anônimos, aos 89 anos, dom Pablo continua acompanhando as melhores causas da humanidade. Qualquer pessoa pode encontrá-lo na Selva Lancadona, conversando com milicianos do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em uma manifestação multitudinária em Madrid, em um seminário altermundista em Paris ou em uma assembleia de movimentos sociais em qualquer parte de nosso mundo globalizado. A entrevista que se segue, realizada na cidade de Tepoztlán, estado de Morelos no México, gira em torno da formação do professor, das suas principais contribuições no âmbito das ciências sociais – democracia, colonialismo interno, teoria da exploração, sistemas do conhecimento – e da situação dos movimentos sociais no México e no mundo.

Claudio Albertani (CA): Como avalia a influência de seu pai, destacado linguista e filólogo, na sua formação teórica?

Pablo González Casanova (PGC): Não me poderia explicar a mim mesmo sem a influência de meu pai. Ainda que ele tenha falecido quando eu tinha somente catorze anos, sua capacidade de nos educar enquanto nos divertia era muito grande. Vinha de uma família da oligarquia henequera (sisal) e leiteira, que o enviou para estudar química na Alemanha, mas ele fez uma espécie de revolução intelectual. Em vez de se envolver com o empresariado, estudou filologia clássica, adotou as posições mais avançadas do humanismo radical e, por vezes, certas concepções marxistas, como as de Rosa Luxemburg, vinculadas à ideia de que não pode existir o socialismo sem a democracia. No México tornou-se amigo de um grupo de trotskistas próximos ao sindicato dos eletricistas. Apoiou a luta pela autonomia universitária, encabeçada por Manuel Gómez Morín, que se opunha a fazer da instituição um centro de ensino oficial marxista-leninista. Aos meus irmãos e a mim, ensinou a amar os índios de nosso país, a cultivar os clássicos gregos e também as posições revolucionárias de Cristo dentro da história das religiões. Era um pensador livre, mas permitiu que minha babá, uma camponesa chamada Camerina, me levasse à missa e me ensinasse religião. Fez-nos ver como no seu tempo Cristo havia sido um revolucionário, que tirou os comerciantes do templo e lutou contra os imperialistas da época, os romanos. Transmitiu-nos um espírito crítico muito forte, que havia conservado por toda sua vida e que se fortaleceu com o passar do tempo. Quando morreu, minha mãe criou em nós com uma espécie de culto por ele, fazendo-nos pensar que poderíamos ser como ele.

CA: Em seus textos autobiográficos e em algumas entrevistas, salienta que não teve uma vocação precoce pelo estudo, sendo que, em um momento seu pai pensou em te encaminhar ao trabalho manual. Por outro lado, conheço a sua sólida formação clássica, especialmente no ramo da poesia. Quando e como surgiu esta paixão que ainda cultiva?

PGC: Meu pai nos lia poesia e nos ensinou a memorizar certos poemas. Isto me deu gosto. Estudo os problemas da atualidade, mas à noite sempre leio poesias ou teatro. Neste momento, estou lendo Prometeu de novo, e descobrindo o que não descobri quando estava no colégio. E que Prometeu não somente havia presenteado o homem com o fogo, e sim que, como ele disse, também lhe deu a indústria, ou seja, a tecnologia e as ciências. E acrescenta Prometeu, “Dei-lhe a esperança”. Estes elementos, somados a outros que asseguram que a tirania de Zeus irá cair, por mais poderoso que Deus seja, fazem parte de meu amor pela poesia. A poesia expressa verdades que a filosofia e a sociologia não acessam.

CA: Que papel desempenhou Lombardo Toledano em sua formação? Qual foi sua relação com ele?

PGC: Minha primeira esposa era filha da irmã de Lombardo, e quando fomos a Paris ele nos visitou de passagem para Moscou ou Roma. Foi ele quem me presenteou com a primeira edição das obras de Gramsci, em italiano, que tenho até hoje. Era um homem brilhante. Uma de suas contribuições foi dar ao nacionalismo revolucionário mexicano uma política exterior universal, impulsionando as relações com a União Soviética e o apoio aos movimentos de libertação na América Latina. Foi uma nova expressão do nacionalismo, que refletiu nos vínculos com os movimentos operários, com a luta de classe e com a emancipação socialista. Mas a frustração chegou cedo, pois tanto a Revolução Mexicana se tornou populista quanto a Revolução Russa se tornou cada vez mais burocrática e, até mesmo, capitalista.

CA: O que pensa do nacionalismo revolucionário?

PGC: Sempre oscilei entre o nacionalismo anti-imperialista e a luta de classes. Iniciado por Sun Yat-Sen na China, o nacionalismo revolucionário alcançou uma grande profundidade no México, na medida em que nossa Constituição, anterior à russa, foi em certo momento a mais avançada do mundo no que se refere aos direitos sociais e internacionais. Tive simpatias e discordâncias com este processo, perceptíveis no decorrer de minha vida, e, ao mesmo tempo, não deixei de ter amizades e vínculos com aqueles que davam prioridade à luta de classes frente à luta nacional. Em todo caso, este problema que vivemos no Terceiro Mundo, ou no ex-Terceiro Mundo, ou mesmo no mundo colonial, entre a posição que enfatiza a luta de classes e a posição que enfatiza a luta pela independência, para mim foi resolvido no mais notável com a Revolução Cubana. Este é o lugar onde há uma confluência entre Martí e Marx, que não existia em nenhuma parte do mundo e que, além de combinar a luta pela independência com a luta pelo socialismo, dá uma grande importância à moral, não moralista, mas como uma força material. Penso que se a corrupção é a arma secreta do imperialismo, a moral é a arma secreta da população.

CA: Qual foi seu primeiro encontro com o marxismo?

PGC: Comecei a aprofundar meu conhecimento do marxismo quando estudei no Colégio do México com professores que, na maioria, eram republicanos espanhóis. Havia entre eles uma influência muito grande dos historicistas, mas também não deixava de haver a de Marx. Neste campo nunca poderei esquecer de Wenceslao Roces. Mas desde antes já existia algo… Quando estava estudando na Escola Bancária e Comercial, lembro-me que uma vez pusemos, um amigo ferroviário e eu, uma placa que dizia: “O comunismo os salvará das garras asquerosas do capitalismo”. Ele se chamava Juaréz, e eu lia para ele em voz alta os textos que tínhamos que aprender, enquanto ele operava o bonde [carro eléctrico]. Depois, no Colégio do México, tive outro amigo, Julio Le Riverend, que mais tarde seria o diretor geral da Biblioteca Nacional de Cuba. Ele era marxista-leninista e eu tinha uns dez anos, de modo que sua influência sobre mim foi grande. Creio que as fontes principais seriam: certa inclinação que procede de meu pai – que dava muita importância ao socialismo e à democracia – a influência dos republicanos espanhóis, e particularmente a de meu amigo cubano Julio Le Riverend.

CA: Que fatores determinaram o deslocamento de sua atenção da história para a sociologia?

PGC: Não estudei o que tradicionalmente se entende por história. Os professores espanhóis que projetaram o mestrado nas Ciências Históricas deram à história um caráter científico que implicava no estudo da sociologia, da ciência política e da economia. Inclusive nos conduziam no campo político ao estudo da história das instituições e, neste sentido, também à história do direito público e privado. Logo comecei a trabalhar sociologia do conhecimento, já me interessando por outro tipo de problema, que me levou, por exemplo, a escrever A democracia no México. Mas, na realidade, todo o tempo regresso aos problemas do conhecimento.

CA: Ao longo de seu trabalho a democracia ocupa um lugar central. Contudo, você me parece hesitante em defini-la. Não encontro em seus trabalhos uma definição precisa a este respeito…

PGC: Se você utiliza o termo em seu significado original, não precisa fazer nenhuma definição: é o poder do povo. Como organizar o poder do povo é outra coisa. Nisto se encontram problemas que ainda estamos explorando e que agora podemos resolver melhor do que nunca. Se considerarmos, por exemplo, o problema da vontade geral de que Rousseau falava, temos hoje possibilidades de encontrar uma solução que no seu tempo era impossível. É que a capacidade dada pela tecnologia de informação e da organização para exercer a democracia direta, para exercer uma democracia participativa, nos permite expressar a vontade geral não apenas como a soma dos votos dos cidadãos, mas como uma combinação das vontades particulares que se articulam numa vontade geral. A vontade geral não é a soma das partes, mas sim uma combinação das mesmas. Acabamos de ver isto na Islândia, num ato de que pouco se fala, mas que é notável. 92,5% dos cidadãos exigiram através da internet que se cancelasse a dívida externa, se reformasse a Constituição e que se faça um novo governo. Este grande movimento não acaba com o capitalismo, mas coloca um ponto final no modelo predatório deste sistema, que é o neoliberalismo.

CA: Em A democracia no México você introduz a categoria de colonialismo interno para analisar a realidade nacional. Quase meio século depois, como avalia a situação?

PGC: Para mim, não pode existir socialismo sem democracia, e em um país como o México não pode existir democracia com colonialismo interno. Mas no México há colonialismo interno. Com grande hipocrisia dizemos que somos todos descendentes de índios. Temos o Cuauhtémoc no Passeio da Reforma, enquanto os peruanos têm Pizarro. Isto me dá muito prazer. Espero que continue Cuauhtémoc e não coloquem Cortés. Mas o fato é que este Cuauhtémoc não é suficiente para evitar a farsa. Na realidade, continuamos racistas e colonialistas. No México, se você tem olhos azuis e cabelos loiros te tratam de uma maneira, e de outra se você for um homem ou mulher – pior se for mulher – com traços puramente indígenas. Isto no que se refere ao tratamento geral. Na verdade, há uma super-exploração da população indígena e uma depredação dos bens e territórios dos povos indígenas que vai além da natureza e prática de expropriação que ocorre em populações mestiças e crioulas.

CA: Mas recentemente você tem falado de colonialismo global…

PGC: O colonialismo interno não existe somente em países dependentes e periféricos, mas também nos países metropolitanos. Não se dá só em nível nacional, mas em nível intranacional e transnacional. É uma realidade, apesar de que, quando digo isso, meus amigos marxistas-leninistas consideram que é um desviacionismo. Eles estavam convencidos de que a luta de classes pura era a única coisa que devia nos preocupar, e que o resto só serviria para desviar a atenção, o que é completamente falso. No fundo, havia um caráter muito polêmico de minha parte frente à posição de quem sustentava a necessidade de projetar uma luta de classes pura. Estamos vendo atualmente em nível mundial o colonialismo global, quando se acentua a luta de classes junto ao empobrecimento da classe trabalhadora e a recolonização do mundo. Não podemos explicar cabalmente a dialética social se não recorrermos a ambos os problemas. Que Marx dera mais importância à luta de classes é perfeitamente compreensível, porque esta luta isolada que se deu na fábrica inglesa permitiu, com toda nitidez, descobrir um tipo de relação humana fundamental para a compreensão do ser humano, da sociedade e da história, que antes ninguém tinha descoberto. Mas pensar que esta relação seria suficiente para compreender a história mundial resultou em um erro que o próprio Marx foi corrigindo a partir da experiência da Irlanda, o que, naturalmente, pensadores relevantes como Fanon tomaram como pontos importantes para seus trabalhos.

CA: Os acontecimentos das últimas décadas parecem confirmar seu diagnóstico.

PGC: Os fatos foram verificados. Desde que publiquei A democracia no México, começou-se a falar de colonialismo interno e a descobrir que existia até na Nova Zelândia. Saíram muitos artigos no mundo inteiro sobre colonialismo interno, mas polemizamos fortemente com uma parte do pensamento marxista de então. Algo semelhante ocorreu em relação à democracia, e depois ocorreria também com o conceito de dependência. Na realidade, tenho sido muito polêmico, mas não personalizei litígios. No lugar de atacar Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, apontei que a dependência é uma categoria um pouco superficial, podendo ser utilizada inclusive pelos imperialistas como uma característica natural. Uns são independentes e outros dependentes, coisa que ocorreu com sociólogos latino-americanos e outros não latino-americanos. O que é mais difícil de aceitar é que existe uma exploração dos trabalhadores por parte dos empresários, e também uma exploração que o próprio Adam Smith descobriu nas relações dos países altamente desenvolvidos com os países atrasados ou dependentes. Por esta via se dá a dupla exploração que finalmente recai sobre os trabalhadores dos países coloniais.

CA: Há mais de 40 anos você escreveu que a essência do marxismo não reside no materialismo, nem na dialética e no socialismo, mas sim na teoria da exploração.

PGC: É isso. Marx deu à relação de exploração uma importância central, a partir daí tentou construir uma investigação científica e filosófica de um rigor extraordinário, que está sujeita não só aos experimentos de laboratório ou observações do astrônomo, mas a lutas muito intensas que envolvem o pensamento reflexivo e intuitivo, a vontade e coragem. Para certos cientistas, que reduzem a ciência aos estudos em bibliotecas e laboratórios, fica difícil entender que o marxismo abarca formas de conhecimento que incluam não só a biblioteca e o laboratório, mas também algo novo que é a criação. E a criação não é unicamente uma questão de experimentos, mas sim de práticas, de teorias, de como fazer um mundo melhor, um mundo menos opressivo, um mundo onde reine a liberdade. Nas palavras de Engels: “A única coisa que Marx e eu fizemos foi estudar como o homem podia ser livre”.

CA: Atualmente, alguns autores acreditam que a exploração do trabalho intelectual se torna o motor do tipo de capitalismo em que vivemos, e por isso substitui a questão da criação de mais-valia, colocando o fim da exploração. Que opinião tem a este respeito?

PGC: A chave da exploração continua sendo os Miseráveis da Terra. Uma das questões que são mais inaceitáveis é assumir que o problema principal da humanidade é que alguns homens exploram outros. É evidente que uma parte da mais-valia é devida à mais-valia relativa, e isto tem a ver com o conhecimento. Sempre foi assim. Mas nossa capacidade de explorar de forma direta as crianças, as mulheres e os imigrantes tem aumentado como nunca. Ao denunciar isto, pode ser mandado para o paredão ou para a prisão… Depois de Marx, muitos – Weber, por exemplo – tentaram demonstrar que o capitalismo era produto de pessoas honestas que haviam economizado para a velhice… Ocorre o mesmo agora. Na realidade, nunca existiu tanta exploração…

CA: Seu trabalho integra o marxismo com a sociologia empírica e a matemática.

PGC: Isto foi outro litígio. Alguns tabus se impuseram entre os marxistas-leninistas burocráticos. Não deixam de ser interessantes. Um deles é não dar importância à moral, o que por sinal lhes servia muito bem. Outro é não levar em consideração nem a tecnologia nem as matemáticas. Isto parte de alguns senhores que se diziam marxistas ortodoxos. Esquecem de que Marx deixou muitos cadernos escritos sobre matemática e que dedicou uma grande quantidade de tempo ao estudo dos problemas, das técnicas e da linguagem matemática. Esquecem também de que nesta Bíblia que é para eles O Capital, a análise central a partir da qual surgem os estudos de tipo histórico-político sobre a dialética do capitalismo se escreve na fórmula P/V [é a taxa da mais-valia: P = mais-valia e V = capital variável, CA]. Estou escrevendo um livro que penso intitular assim: P/V. Outro litígio era com os empiristas, que diziam que com os métodos estatísticos e com as correlações poderiam saber com todo rigor científico o que estava acontecendo no mundo e para onde iria. Estava brigando ao mesmo tempo com uns e outros…

CA: O que entendo é que você emprega diferentes técnicas de investigação. Alguns te apelidam de eclético.

PGC: Penso que tudo começou com o historicismo de meus professores do Colégio do México. Eles procuravam buscar totalidades que explicavam os fenômenos históricos, ainda que não incluíssem as relações de exploração. O certo é que um dos problemas que estudei desde meu mestrado é precisamente o ecletismo. Mas o ecletismo é uma forma superficial de acesso ao conhecimento. Uma parte da verdade encontro aqui, outra ali. Então junto as duas verdades parciais e tenho uma verdade completa. Isto é de uma superficialidade espantosa. O que eu via é que a academia estabelecia fronteiras entre uma especialidade e outra. E as correntes teóricas ou ideológicas tinham feito algo semelhante. E diziam: “Até aqui é empirista, aqui deixa de ser; até aqui é marxista, aqui já não”. Para alguns, o falso residia na separação, enquanto que, para outros, o falso era a união tachada de eclética. Em minha opinião, o falso reside na separação artificial do que na realidade está unido, e, também, em toda união artificial do que está separado.

Leia aqui a 2ª Parte desta entrevista.

Tradução: Passa Palavra
Fonte: aqui.
Original em espanhol: aqui.

Ilustrações: murais de Rivera (o primeiro e o último) e de Orozco (os restantes).

1 COMENTÁRIO

  1. Mais um ilustre académico que deixa amigos por todos os lados: nacionalistas anti-imperialistas, internacionalistas da luta de classes e diversos mestres que encontrou no caminho da vida. Nada a opor, a vida determina de certo modo o nosso caminho e as “nossas ideias”.
    Agora, depois de velho, reduzido a este amálgama de ideias e conjecturas particulares que não satisfazem nem a lógica nem o conhecimento, fica na nostalgia um passado pouco útil e produtivo. Melhor seria esquecê-lo e começar de novo… a não ser que queira prestar melhor seviço e entregar-se a alguns fins de misericórdia religiosa e humanitária.
    Experimente, às vezes resulta… Conheço alguns “revolucionários” que encontraram esse caminho e estão muito felizes. Além disso convenceram-se que encontraram a luz que lhes faltava, o que é ainda mais louvável, se considerarmos a senilidade como a morte feliz.
    Conheço muitos e garanto que são bem mais felizes do que eu…

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