Trata-se de pedir que seja economizado 2,1% do PIB, e esta reivindicação colocaria também na ordem do dia um dos factores principais de democratização da sociedade. Por João Bernardo
Para os leitores brasileiros que não o saibam, o título deste artigo reproduz o último verso do Hino Nacional português.
A necessidade urgente de reduzir as despesas do Estado tem servido de justificação para tudo, mesmo para cortes além do que foi exigido pela troika formada pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. E como não existem na economia compartimentos estanques, o aumento das jornadas de trabalho e a redução das remunerações no sector estatal repercute-se no agravamento da exploração também no sector privado. Mas se, de imediato, os capitalistas parece terem obtido assim uma enorme vitória sobre a classe trabalhadora, a muito curto prazo as contradições económicas agravar-se-ão. Com efeito, nenhum economista — nem sequer os que fazem parte das equipas que estudam aqueles cortes e os impõem — ignora que essa diminuição drástica das despesas do Estado equivale a um desincentivo da economia, provocando uma recessão; e que a recessão, constituindo uma redução da actividade económica, dos lucros e dos salários, provocará uma redução do volume total que o Estado conseguirá cobrar em impostos; e que esta redução do volume total dos impostos agravará o défice do Estado, o que o há-de levar a novos cortes nas despesas; e que estes novos cortes nas despesas agravarão mais ainda a recessão e assim por diante. Trata-se, não no sentido metafórico mas em sentido literal, de um círculo vicioso.
No entanto, há um tipo de despesas que o Estado poderia suprimir praticamente sem prejuízos e com enormes vantagens — as despesas com as forças armadas.
Segundo os dados fornecidos pelo Banco Mundial, baseados nos critérios definidos pela NATO, as despesas militares em Portugal corresponderam a 2,1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010, tendo correspondido a 2,0% em 2006. Para termos uma noção do que isto representa, convém saber que a França, um país que possui armas atómicas, gastou com as forças armadas 2,3% do PIB em 2010 (2,4% em 2006). Mesmo um país de dimensões médias como a Itália dedicou às despesas militares só 1,8% do PIB em 2010 (1,8% em 2006) e a Polónia, um país que na escala europeia pode ser considerado de grandes dimensões e que se encontra numa situação geopolítica difícil, gastou com os seus militares 1,9% do PIB em 2010 (1,9% em 2006). Ou, se estabelecermos comparações no âmbito mundial, a China, um novo imperialismo emergente que faz sentir a sua presença em vários continentes e defronta situações potencialmente explosivas em Taiwan e na Coreia do Norte, consagrou às despesas militares 2,0% do PIB em 2010 (2,1% em 2006). E outro colosso geográfico, o Brasil, que tem fronteiras com todos os países sul-americanos excepto dois, despendeu com as forças armadas 1,6% do PIB em 2010 (1,5% em 2006).
Para mais, nas condições da guerra moderna Portugal é um país indefensável nas suas fronteiras. Os canhões, os barcos e os aviões, para não falar nos generais, nos almirantes e nos comandantes, simplesmente não servem para nada. É curioso que entre os feriados suprimidos pelo governo — uma medida que se soma a muitas outras destinadas a agravar a exploração dos trabalhadores — se conta o Primeiro de Dezembro, uma serôdia festividade nacionalista que comemorava a expulsão dos Felipes da coroa de Portugal e a colocação dos Braganças no trono. Mas pelos vistos o goveno continua a ter medo dos castelhanos porque, em percentagem do PIB, dedica às forças armadas o dobro do que a Espanha, que se limitou a 1,1% em 2010 (1,2% em 2006). Ora, outros pequenos países europeus também com fronteiras militarmente indefensáveis canalizam para as forças armadas percentagens do PIB muito inferiores à portuguesa, como sucede com a Suíça (0,9% em 2010, 0,9% em 2006), a Áustria (0,9% em 2010, 0,8% em 2006), a Hungria (1,0% em 2010, 1,3% em 2006), a Letónia (1,1% em 2010, 1,8% em 2006), a República Eslovaca (1,1% em 2010, 1,6% em 2006) ou a Bélgica (1,1% em 2010, 1,1% em 2006). Para não abusar da paciência do leitor nem da minha, bastará dizer que, entre os pequenos países membros da União Europeia, só a Grécia gasta com os militares uma percentagem do PIB superior à portuguesa (3,1% em 2010, 2,9% em 2006). Que coincidência!
Como não existe em Portugal qualquer complexo militar-industrial significativo que leve as despesas com as forças armadas a repercutirem-se num aumento das encomendas à indústria militar nacional, com o correspondente aumento do emprego, todas aquelas despesas se devem classificar economicamente como improdutivas. Segundo o Ministério da Defesa, em 1989 a indústria militar empregava apenas entre 3.000 e 4.000 pessoas, e em seguida reduziu-se verdadeiramente à insignificância, porque a empresa pública Indústrias Nacionais de Defesa, voltada sobretudo ao fabrico de vários tipos de munições e que desde a modernização e reorganização empreendidas em 1997 passara a ser uma empresa exportadora, foi gradualmente dissolvida em 2001-2004.
Figueiredo Lopes, que de 1983 a 1985 foi secretário de Estado da Defesa Nacional, considerou em A Cooperação Europeia nas Indústrias de Defesa: «Depois da descolonização e com o fim da guerra, a indústria militar defronta-se com uma crise estrutural, tomando-se urgente a sua reorientação; se se quer manter de pé esta indústria é preciso urgentemente assegurar mercados estabilizados para os produtos militares portugueses, visto que as necessidades das Forças Armadas portuguesas são limitadas. Esses mercados têm de ser encontrados preferentemente no interior da Aliança Atlântica. A renovação tecnológica da indústria de defesa portuguesa poderia resultar duma política de compras aplicada à escala da Aliança Atlântica […]». Mas estas previsões, ou aspirações, não se realizaram e mesmo sob o ponto de vista do comércio externo as despesas militares são nocivas para a economia portuguesa, porque neste sector o volume das importações tem sido muito superior ao das exportações.
Publicado pelo Ministério da Defesa Nacional, o Relatório Anual de Importações e Exportações de Bens e Tecnologias Militares referente a 2008, o último disponível, indica que em 2003 a exportação de artigos militares e a prestação de serviços de carácter militar ao estrangeiro rendeu 25,0 milhões de euros, enquanto as importações do mesmo sector totalizaram 39,8 milhões de euros. Em 2004 os números equivalentes foram de 12,6 e de 42,5 milhões de euros. Em 2005, de 7,0 e 159,2 milhões de euros. Em 2006, de 9,0 e 312,4 milhões de euros. Em 2007, de 10,1 e 386,1 milhões de euros. Finalmente, em 2008 as exportações limitaram-se a 8,2 milhões de euros enquanto as importações subiram a 63,0 milhões de euros. Se dividirmos o volume das importações pelo das exportações obtemos um máximo de 38,2 em 2007 e um mínimo de 1,6 em 2003. Entre estes dois limites ficam assinaladas as perdas que o sector militar provoca à economia portuguesa no comércio externo.
Quando se pôs fim ao fascismo e as antigas colónias adquiriram a independência política, Portugal perdeu a grande oportunidade de ter dispensado as forças armadas e se ter somado aos países que, como a Costa Rica ou a Islândia, não têm despesas militares.
Portugal poderia ter feito isso se não tivessem sido precisamente as forças armadas a executar o golpe militar que derrubou o fascismo e, depois disso, a participar activamente no processo revolucionário de 1974 e 1975. Não só o papel institucional das forças armadas se fortaleceu como, pior ainda, as raízes do militarismo se consolidaram em todos os sectores da esquerda e da extrema-esquerda, porque não havia então nenhum partido civil que não tivesse entre os militares uma base de apoio, quando não mesmo a principal base de apoio. Desde a direita conservadora até aos vários matizes da extrema-esquerda maoísta e mesmo luxemburguista, todos dispunham de regimentos e batalhões. Foi a época dos «soldados, sempre, sempre, ao lado do povo». Alguns desses partidos tinham mesmo mais soldados do que povo. E se isto facilitou muito cada um dos confrontos sociais particularmente considerado — qual seria o patrão que resistiria à comissão de trabalhadores quando ela chamava em seu apoio as metralhadoras e os blindados? — constituiu um enorme prejuízo no âmbito da luta social globalmente considerada.
Naquela época eu colaborava num jornal chamado Combate, que se publicou desde Junho de 1974 até Fevereiro 1978, e um dos pontos do nosso Manifesto, distribuído juntamente com o primeiro número, apelava à destruição das estruturas militares e do militarismo e ao desencadeamento de um processo que resultasse no povo armado. Nada de original, mas praticamente ninguém mais o repetia no Portugal de então, em que «o povo está, com o MFA», o «MFA, sentinela do povo» [*]. Se recordo isto, porém, é apenas para contar que numa época em que se dizia e se escrevia o que se queria, o único ponto que a censura militar não deixou reproduzir nos jornais diários que publicaram o nosso Manifesto foi o respeitante ao militarismo. Em vez dele ficaram reticências. Também sucedeu, pelo menos duas vezes, que alguns companheiros que colavam o Manifesto pelas paredes de Lisboa fossem interpelados por patrulhas militares e levados a quartéis, por causa da tal questão do antimilitarismo. Nada de mal lhes aconteceu, os tempos eram de revolução, e tudo o que tiveram foi de sustentar conversas com o tenente ou capitão ou lá quem fosse acerca dos inconvenientes, para nós, e das vantagens, para eles, das forças armadas. Mas o exército podia ter deixado divulgar aquele ponto do Manifesto à vontade porque ninguém nos ouvia. Toda a esquerda e a extrema-esquerda estava entusiasmada com a novidade de contar com os «soldados sempre, sempre, ao lado do povo».
E o pior é que os soldados ficaram «sempre, sempre», mesmo agora, quando convém desembaraçarmo-nos deles.
Note-se que ao sugerir a conveniência de nos desembaraçarmos das forças militares não me refiro aos programas eleitorais apresentados pela esquerda, que abordam o tema com a ambiguidade e a dose de vaselina característica deste tipo de documentos. Refiro-me à gente comum, às conversas de todos os dias, às pessoas como nós, aos indignados e aos precários que de tão flexibilizados ficaram inflexíveis, aos que acamparam e aos que têm a tenda preparada, ou seja, a todos os que pagam a factura.
Trata-se de exigir que seja economizado 2,1% do PIB. E a generalização desta reivindicação traria ainda um enorme benefício social, porque colocaria na ordem do dia um factor de democratização da sociedade. As forças armadas são uma das principais estruturas autoritárias, tendo a cadeia de comando como eixo fundamental, e constituem o pneu sobresselente do capitalismo, o aparelho de Estado alternativo, para o caso de o aparelho civil fracassar. Um capitalismo sem exército é, a prazo, um capitalismo socialmente mais débil.
Então, contra os canhões, marchar, marchar.
Nota
[*] Para os leitores brasileiros, o MFA, Movimento das Forças Armadas, foi a organização militar responsável pelo golpe de 25 de Abril de 1974 e que desde então até ao final de 1975 orientou a vida política portuguesa.
Ora cá está uma excelente proposta concreta, ainda que a relação de forças actual a torne absolutamente inviável, que reduziria a despesa. Apesar de estar globalmente de acordo, gostaria de assinalar que a inexistência de forças armadas não impede que existam outras estruturas privadas que cumprem as mesmas funções e servem os mesmos propósitos (ex: a ex-Blackwater nos EUA), apesar de estarem completamente imunes ao escrutínio da opinião pública. Por outro lado, e talvez esteja a ser um pouco ingénuo, as forças armadas parecem-me ser atravessadas por diferentes forças e sensibilidades políticas que por vezes convergem para o lado certo da luta e fazem pender os pratos da balança, ainda que momentaneamente, para os explorados e oprimidos deste mundo. Em última análise é a força (a bruta, dos músculos e armas) que define o rumo dos acontecimentos. E essa costuma estar concentrada nas forças armadas e, com o crescente desenvolvimento tecnológico, não parece que essa tendência se vá alterar. Pelo menos estas contribuem, por vezes (ex: Portugal, Venezuela, etc.), para projectos emancipatórios e/ou de libertação. Já as polícias e outras forças de segurança, não estiveram nunca do lado certo. Essas sim, deveriam ser erradicadas da face do planeta. Provavelmente, também consomem uma fatia substancial do PIB. Mas, tal como as anteriores, parecem ter vindo para ficar.