A força do detective dos thrillers vem da singularidade da sua posição. Ele é o único a navegar entre os campos, por isso é sempre um solitário. Por João Bernardo

Artigo anterior: Romance policial. 1) a acção

Resolvendo o mistério através da própria actuação, como pode o detective do thriller sobreviver no meio dos perigos? É que a sua acção se confunde com o seu percurso, e ele segue sempre em ziguezague, transitando pelos antagonistas. O detective sobrevive porque joga entre os vários campos, e lança cada campo contra o outro. Ele é um mestre da contradição, no sentido da dialéctica exposta por Mao Tsé-tung. Enquanto no romance policial dedutivo o detective está fixo no espaço, no thriller ele movimenta-se permanentemente.

jacques-tardi-1Por isso o thriller requer uma sociedade democrática como os Estados Unidos, onde o estatuto social, exclusivamente medido pelo dinheiro e pondo de lado o status, não se opõe a que um pobre, desde que não seja um mendigo, fale com um rico, desde que não pretenda que o rico o convide para as suas recepções. Além disto, a força de trabalho nos Estados Unidos é demasiado cara para que os ricos se possam rodear de uma abundante criadagem que erga uma barreira intransponível entre eles e o resto da sociedade. Em França, por exemplo, é necessário que Maigret, a criação de Georges Simenon, invoque a sua autoridade administrativa de comissário para que os membros da elite, ou mesmo dos estratos médios superiores, lhe abram renitentemente as portas. Os percursos de um detective privado mal pago à cata de informações seriam impossíveis na velha Europa, onde para frequentarem todos os meios sociais os polícias não podem ser privados. Ora, esta deambulação constitui uma das regras fundamentais do thriller, porque sem ela o detective não obtém o que mais necessita, a informação. «Gosto de entrar na vida das pessoas e depois sair», diz um deles, Lew Archer, a uma senhora que conhece de passagem. E quando, horas mais tarde, ela lhe recorda: «Você disse ao jantar que gosta de entrar e sair da vida das pessoas», ele explica: «É verdade. Sobretudo das pessoas que encontro no meu trabalho» [1]. Mas quando sai da vida de alguém o detective não vai de mãos vazias.

Ao jogar entre os vários campos, o detective do thriller acumula informações, que são a única fonte do seu poder. Se tantas vezes nos parece inerme perante numerosos inimigos nocivos e armados, ele dispõe de outro tipo de arma, talvez menos letal, mas muitíssimo mais eficaz — a informação. Travis McGee, um aventureiro bem remunerado, situa a informação numa escala de valores. «A não ser para quem tem como ofício matar pessoas, usar uma arma de fogo é o produto final de um procedimento baseado na estupidez. É uma maneira prática de corrigir erros, por isso só devemos levar uma arma quando entramos numa área em que à falta de informação se soma a possibilidade de um erro involuntário» [2]. O detective só consegue sobreviver na medida em que equilibrar campos antagónicos, enfrentando um com a informação recolhida nos outros, e para isso por vezes inventa-a. O bluff resulta da necessidade imperiosa de dispor de informação num momento em que nada se sabe, e pode definir-se como uma invenção de factos decorrente de uma urgência prática. Na medida, porém, em que um dos lados acreditar no bluff, ele passará a suscitar efeitos práticos. O detective é mestre do bluff, porque é capaz de tornar o bluff real.

jose-munoz-2A força do detective dos thrillers vem da singularidade da sua posição. Ele é o único a navegar entre os campos, por isso é sempre um solitário. Quando tem um sócio, ou deixa-o sentado no escritório e age sozinho, ou perde o sócio assassinado logo no primeiro capítulo. E se Travis McGee, criado por John D. MacDonald, possui um amigo e confidente — tão improvável como é improvável a sua profissão de economista — o segundo plano é o único lugar que lhe está destinado e a prova da acção só pode ser enfrentada pelo aventureiro. É certo que, nos livros de Robert B. Parker, Spenser se faz muitas vezes acompanhar por Hawk, mas apenas quando precisa de um guarda-costas ou de alguém que tenha contactos no submundo negro, e apesar da sua ironia e do seu mistério Hawk nunca passa do plano secundário.

jose-munoz-3Mesmo nas raras vezes em que é assalariado de uma grande empresa de investigação, como na Continental Op, criada por Dashiell Hammett, o detective age sozinho. Entre o mundo dos gângsteres e o mundo dos otários reina apenas um elo de ligação, o roubo, completado pelas injúrias e pela vingança. E contra a acção pessoal que, no meio dos gângsteres, sustenta o sistema da troca de presentes e do saque, ergue-se a acção burocrática, a única que a ordem capitalista conhece, e é a anonimidade da polícia quem, na realidade dos factos, se encarrega de punir os violadores da lei. Mas não conheço nenhum escritor que tivesse encontrado uma solução estilística para esse desequilíbrio entre o pessoal e o anónimo. A teia dos romances de John Le Carré é a intriga burocrática, mas ele é o grande mestre da literatura de espionagem, além de ser um mestre da literatura de qualquer tipo. Ora, o género de espionagem obedece a características muito diferentes do policial, e o facto de no seu único romance policial, A Murder of Quality, Le Carré ter posto George Smiley a agir sozinho, fora dos corredores ministeriais e das reuniões entre altos funcionários, é mais um argumento a comprovar o desequilíbrio estilístico entre a obrigatória pessoalização do detective na ficção policial e o anonimato da polícia na realidade burocrática. Por isso o romance policial, se pode ser realista do lado dos criminosos, nunca o é do lado dos investigadores.

No capitalismo o polícia privado, operando individualmente, faz figura de profissional arcaico e é um resquício de uma época tão ultrapassada como a da economia de troca de presentes que rege os gângsteres. Mas o thriller não consegue dar conta da impessoalidade que define a burocracia policial. Alguns autores, sobre o pano de fundo de um corpo policial cujos membros se confundem na indiferença do conformismo, singularizam um extravagante, como o célebre comissário Maigret, ou uma ovelha ranhosa, como o inspector John Rebus nos romances de Ian Rankin, que na aura de solidão em que se envolvem podem agir com um individualismo semelhante ao dos detectives privados. Apesar de contarem com numerosos homens à sua disposição, estes polícias actuam à margem de qualquer verdadeiro trabalho de equipa. Rebus não ignora «por que motivo ele não era feito para a profissão que a vida lhe escolhera». Um departamento de investigações «é como uma linha de produção», «cada um constitui uma pequena parte de uma enorme equipa», enquanto ele, pelo contrário, «queria averiguar pessoalmente todas as pistas» [3]. Com um halo etílico ainda mais carregado, Harry Hole, detective da Brigada Criminal da Polícia de Oslo, é «o lobo solitário, o bêbedo, o enfant terrible do departamento» [4], investigando isolado e contra todos. Ou então, como sucede num livro de Qiu Xiaolong, Death of a Red Heroine, o inspector-chefe Chen Cao é levado a trabalhar sozinho quando outras autoridades se apercebem de que ele está a pisar terrenos politicamente perigosos.

Até Ed McBain, que pretende apresentar uma burocracia policial, mais não consegue fazer senão reunir na mesma esquadra [delegacia], o 87th Precinct, um certo número de individualidades bem caracterizadas, confundindo — para empregar termos weberianos — a burocracia com uma adição de figuras carismáticas. Mas, tudo somado, e mesmo tendo em conta os vilões, é uma visão idílica da vida numa esquadra que McBain apresenta, se a compararmos com o delírio de lutas internas sangrentas em que James Ellroy transforma o Departamento de Polícia de Los Angeles da década de 1950 em L. A. Confidential, a tal ponto que — e não conheço nenhum outro exemplo na literatura policial — a intriga criminal é transportada do meio gangsteresco para o meio policial. Mas tanto na numerosa série de romances de Ed McBain como em L. A. Confidential, o que temos não é uma burocracia, mas uma colecção de personagens inteiramente individualizados, condenados a trabalharem, ou a dilacerarem-se, entre as mesmas quatro paredes. Em ambos os casos aquela multipersonalização revela-se na própria estrutura da ficção, porque a perspectiva altera-se de cada vez que entra em cena outro polícia, sem que nunca exista um ponto de vista único, capaz de exprimir como uma totalidade a burocracia policial.

jacques-tardi-2Tanto o detective ou o polícia como os gângsteres ou os demais criminosos se situam no mesmo plano do duelo pessoal e se enfrentam com as mesmas armas da troca de injúrias e de vinganças. Isto explica que o detective privado ou o polícia excêntrico se encontrem frequentemente entre dois tipos de inimigos, os gângsteres que partilham a sua forma de actuação mas têm interesses opostos, e a burocracia policial que, apesar de em princípio defender os mesmos interesses, levanta fortes objecções aos métodos individualistas de actuação. No thriller a solidão não consiste em estar sozinho, mas em estar na companhia errada. Em cada campo o detective está sempre fora do lugar. E qual é o seu lugar próprio, senão o de estar obrigatoriamente nos lugares alheios, num percurso sem fim?

A falta de horizontes que caracteriza a paisagem das grandes cidades, os muros altos que balizam as ruas percorridas pelo detective do thriller ditam-lhe também a psicologia, confinando-o nos limites das suas funções enquanto assalariado ou circunscrevendo-o aos termos do contrato. E as mesmas fronteiras encerram os demais personagens, actores involuntários que não vêem além do próprio drama. Todos eles são unidimensionais, não porque lhes faltem traços humanos, mas porque a humanidade em que vivem não lhes dá oportunidade para serem mais do que aquilo que são. Os percursos do detective não são a jornada de Ulisses, porque a solução a que chega é tão desprovida de lições como o crime o foi de grandeza. Sobre ele mesmo, o detective não aprende mais no fim do que sabia no início. A verdade que descobre é tão descarnada! Descobre quem cometeu o crime, mas não o que aquele crime é, e muito menos o que é o crime. Nunca se sai da fatalidade do sórdido.

Este confinamento na unidimensionalidade leva à desesperança e à obsessão, as duas faces de um mesmo destino fatal. Não se trata aqui de nenhum destino sobrenatural. O destino existe porque não há socialmente saída para as situações em que os personagens se encontram. Por isso o destino não é remissor, como no cristianismo, nem heróico, como na tragédia grega. É sempre sórdido, e a obsessão é a realização desse destino. Os personagens do thriller povoam o universo de Spinoza, onde a necessidade é outro nome do existente e a liberdade não é senão a consciência da necessidade. Sem jamais serem capazes de se alçar a uma consciência como Spinoza pretendia, clara e adequada, os personagens do thriller percebem no entanto o peso da necessidade e agem como instrumentos cegos. São vítimas das paixões, mas sem se iludirem, porque não julgam que através da raiva, do rancor, do desejo possam alterar as coisas. Obedecem às paixões com a noção de estarem a seguir um destino que os leva não sabem para onde, mas sabem que não existe para eles outro caminho. Werner Herzog está certo ao atribuir ao detective do filme Bad Lieutenant a mesma furiosa busca obsessiva de uma meta irreal que singularizara o herói do seu filme Aguirre.

jose-munoz-5Unidimensionais, obcecados em executar os imperativos da profissão ou em prosseguir um prazer monomaníaco ou em acumular fortunas, os personagens do thriller são compulsivos e confundem com a liberdade a força desse impulso. Serão estas as condições típicas da sociedade urbana no capitalismo? No entanto, o russo Nikolai Leskov, vivendo num contexto tão diferente e possuidor de uma formação estilística provincialista e ruralizante, escreveu em 1865 A Lady Macbeth da Província de Mtsensk, que antecipa, salvo num parágrafo de três ou quatro linhas, os melhores thrillers. Porém, não creio que a minha análise esteja errada, mas tem de ser aprofundada e elevada a um plano superior. Será que nos thrillers aquelas existências confinadas, do detective e dos vilões, transcendem — como todos os clássicos, afinal — os limites do seu quotidiano e da sua época, para iluminarem algo de mais profundo no ser humano?

O que distingue o detective, moralmente, dos outros personagens? Por vezes muito pouco. Por vezes nada, todos eles impiedosamente obsessivos. O investigador privado recebe uma remuneração para executar um trabalho. Assalariado numa sociedade de assalariados, a sua honestidade consiste em fazer exactamente aquilo para que lhe pagam, e daí lhe vem uma frieza sem compaixão. A tal ponto que num dos romances de James Hadley Chase, vertido para francês com o magnífico título Douze Chinetoques et une Souris — um título que literalmente significa doze chineses e uma moça, mas cuja gíria me parece intraduzível — Dave Fenner, o detective, infiltra-se entre os gângsteres de Key West com tanto êxito que lhes é igual em tudo, na violência como na amoralidade. Parodiando o detective de Hammett, para quem o contrato de serviços estabelecido com o cliente constitui o único padrão moral, e levando ao máximo expoente as contradições da redução da honestidade aos termos do negócio, Fenner suscita uma hecatombe entre os gângsteres de Key West para vingar uma cliente que ele julga assassinada e cujo papel fora artificiosamente assumido por uma jovem que é a principal obreira da corrupção naquele meio. E afinal, quando abandona ao seu destino miserável os gângsteres que restam, Fenner anuncia à jovem que nada comunicará à polícia, embora não goste dela nem de quem a cerca, e explica: «Quanto a si, ainda é minha cliente, por agora» [5], mesmo que se tratasse de uma falsa cliente e que neste ludíbrio residisse o início da tragédia. Fenner leva a amoralidade até à inversão da moral.

Uma excrescência dos thrillers, mas que os desvenda moralmente, é o tipo de romance onde não há polícias e a acção se resume ao meio dos gângsteres. Excelente exemplo do género é a obra de Albert Simonin, um mestre da gíria. Mas as regras são aqui as mesmas, e cada um dos gângsteres funciona como um polícia para os outros gângsteres seus inimigos ou rivais, o que confirma a profunda semelhança de comportamento entre o detective e o bandido no romance policial de acção.

E ainda que o detective e o gângster possam optar por valores inversos, a noção que eles têm desses valores é a mesma, como são as mesmas as regras do jogo. Paira sobre o thriller a grande interrogação de Smerdiakov: «Então, se Deus não existe, tudo é permitido!». Afinal, nada é permitido, porque na unidimensionalidade dos personagens a opção não é entre o mal e o bem, mas entre o mal e a morte, entre aceitar o que é — e viver, e recusar o que é — e morrer. Dispor-se a morrer é a única coisa que no thriller distingue o detective dos criminosos banais, e que ele tem em comum com os mais extremos, os mais obsessivos, dos grandes criminosos. Neste círculo vicioso a moral fica reduzida ao absurdo.

will-eisner-1Quando me ocorrem — cito-as de memória — as palavras de Marlowe, o detective criado por Raymond Chandler, «ser suficientemente duro para poder sobreviver, e suficientemente terno para valer a pena ter vivido», pergunto-me se Che Guevara teria sido um plagiário de Chandler, pois também ele disse que «é preciso ser duro, mas sem perder a ternura». Solitário, o detective é-o sempre, relativamente aos outros homens e às mulheres também. O que irá suceder aos thrillers se as editoras persistirem em obedecer aos imperativos do politicamente correcto? Como poderão os investigadores privados subsistir nesta nossa época de puritanismo ideológico, se a misoginia é uma das principais características dos romances policiais de acção?

No desespero com que age, o detective procura na mulher alguém com quem possa ultrapassar a solidão. Nunca tanto como no thriller o amor tem no espelho a sua melhor metáfora. Mas o leitor sabe que isto é ilusório e que a solidão é o outro nome da raiva furiosa que isola os personagens. As mulheres são criticadas por não corresponderem ao mito da feminilidade, é esta a sua imperdoável culpa. Mas, se correspondessem a uma tal imagem, como conseguiriam sobreviver num mundo impiedoso? A perversidade e a hipocrisia são a força daquelas mulheres fisicamente fracas, que não podem bater em violência descarada os homens com quem lidam. O detective gostava de se ver, por uma vez, ao espelho da piedade, num rosto feminino. Mas no final do romance a imagem que a mulher lhe reflecte é de uma dureza igual à dele próprio. A misoginia, e o seu correspondente, o mito da pureza feminina, representam a má consciência daquela sociedade, que é a nossa.

jordi-bernet-5Voltamos assim aos artifícios do politicamente correcto, porque o novo tipo de feminismo em moda é esta má consciência, quando proposta pelas mulheres. Andrew Klavan desvendou esses procesos em Shotgun Alley, onde o feminismo académico é exposto como aquilo que exactamente é, uma mistura de puritanismo, destinado a preservar a mulher receosa de se entregar ao prazer, e de carreirismo de departamento universitário, onde a ascensão fica mais fácil quando os homens são impedidos de competir. Se no thriller ser mulher é o crime das mulheres, no politicamente correcto ser homem é o crime dos homens. E ainda aqui, para seu enorme desespero se o soubessem, as feministas do politicamente correcto decalcam — mas em tons de farsa — o machismo solitário dos heróis de thriller.

São estes os depressivos dias de hoje. Que sucedeu aos heróis apolíneos dos primeiros thrillers? Sam Spade não tinha estados de consciência nem hesitações morais e fazia sem remorsos o que tinha a fazer. Depois, o complexo de culpa começou já a apoderar-se de Philip Marlowe e mais tarde tornou-se o companheiro inseparável de Lew Archer. Finalmente, para Matthew Scudder a culpa é uma obsessão sempre presente, que o leva a frequentar igrejas e a ler hagiografias no seu quarto de hotel, ou a assistir às reuniões dos Alcoólicos Anónimos, uma espécie de missas laicas. Em cada década parece que o detective arrasta uma cruz ainda mais pesada do que na década anterior, mas o que revela isto, uma evolução de estilo dos thrillers ou a evolução da sociedade norte-americana? No entanto, até o escocês John Rebus é vítima dos mesmos remorsos que afligem os seus colegas do outro lado do Atlântico, em The Black Book chega a procurar um padre para se confessar, e o inglês Billy Rucker vive igualmente rodeado de uma teia de culpas de que não consegue — ou de que nem sequer pretende — libertar-se. No maior dos autores de thrillers contemporâneos, James Ellroy, a morbidez da confissão pública dos voyeurs que se masturbam, personificados nas figuras com que o autor se identifica, serve para sintetizar a principal característica do detective, olhar os outros, espreitar-lhes as vidas, introduzir-se secretamente nelas, num universo confinado por ruas e muros, onde a fuga consiste apenas em encerrar o olhar nos quartos alheios. Num panorama assim, é refrescante a presença de um detective como Spenser, tão confiante em si próprio, no seu físico, na sua inteligência e nos seus sentimentos, e, em matéria de sexo e de cor de pele, tão ironicamente acima do politicamente correcto, essa forma última do complexo de culpa instituído na linguagem. Mas trata-se de uma pequena luz que não ilumina nada.

Notas

[1] Ross Macdonald, The Goodbye Look, Nova Iorque: Bantam, 1974, págs. 96 e 110.
[2] John D. MacDonald, Darker than Amber, Nova Iorque: Fawcett Crest, 1995, págs. 102-103.
[3] Ian Rankin, Mortal Causes, em Three Great Novels, Londres: Orion, 2003, pág. 546.
[4] Jo Nesbø, The Devil’s Star, Nova Iorque: Harper, 2011, pág. 13.
[5] James Hadley Chase, Douze Chinetoques et une Souris, [Paris]: Gallimard (Série Noire), 1948, pág. 249.

As ilustrações são retiradas de bandas desenhadas de, a partir de cima, Jacques Tardi, duas de José Muñoz, outra de Jacques Tardi, outra de José Muñoz, Will Eisner e Jordi Bernet.

12 COMENTÁRIOS

  1. É curioso que para criar o Mandrake, advogado criminalista claramente inspirado nos thrillers norte-americanos, Rubem Fonseca tenha procedido a uma solução bastante particular. No Rio de Janeiro das décadas de 70 e 80 os ricos podiam ter um número significativo de criados e serviçais e nem a evocação de uma autoridade administrativa seria suficiente para que eles abrissem as portas de suas mansões. Para criar um personagem com livre circulação entre os vários campos Rubem Fonseca o torna um especialista em resolver casos de chantagens e extorsões. Conhecedor como poucos do submundo carioca, o Mandrake transita por tudo, de bocas e puteiros a escritórios de fachada e mansões.
    Somente tendo os ricos como seus clientes — e clientes de assuntos delicados — é que o cínico e mulherengo Mandrake consegue ter acesso a eles. E mesmo assim, salvo raras exceções, ele só entra em contato com os representantes destes ricos, normalmente seus colegas de profissão.

  2. A respeito de o feminismo acadêmico ser uma das formas do carreirismo faz certo tempo que observei que toda vez em que o assunto é mulher, seja nos jornais ou revistas ou mesmo na TV, apenas pesquisadoras são autorizadas a falar. Da mesma forma, embora haja homens e mulheres em todas as delegacias, nas delegacias da mulher a gente só vê delegadas. Naquele ato-publicidade em que o Fora do Eixo tomou frente se convencionou que só mulheres ficariam na organização de frente. Enfim, há um vasto mercado a se desbravar.

    Mas há razões sociais mais de fundo para que esse feminismo do poder e carreirista tenha surgido sobre as tumbas do velho feminismo igualitário. Hoje, por uma série de razões que vão desde o assassinato de jovens do sexo masculino até priorizações que as famílias fazem para as meninas estudarem, as mulheres são maioria no ensino superior brasileiro. Estamos passando por um momento em que as empresas, as ONGs, o Estado terão que optar cada vez mais entre mulheres para renovar quadros da administração ou trabalhadoras qualificados. Para um capitalismo cada vez mais feminino nada melhor do que promover à exaustão o mito da pureza feminina (ou complexo de EVA) e para aquelas que estão se preparando para assumir tais posições nada melhor que um feminismo combatente que as coloquem o mais rápido possível no poder e com as melhores condições. No entanto, embora toda essa emergência feminina, as pessoas continuam a raciocionar como se se tratasse somente de homens ao poder e chegamos ver professoras universitárias discursando como se fossem cortadoras de cana.

    Já a parte do puritanismo, lembremos da censura contra a Gisele, uma feminista da velha linha recordava na Folha que parte dos esforços do feminismo acadêmico são a expressão da luta de mulheres feias mas educadas que se esforçam para que as garotas desprovidas de estudo, mas bonitas, não façam uso do capital erótico, do próprio corpo, como elemento de conquista. Desprovidas de beleza ou muitíssimo chatas, elas se lançam contra as belas e simpáticas mas sem instrução que encontram no corpo o seu principal capital. É também de mercado que se trata, de concorrência.

    E o mito da pureza feminina me fez recordar a quase ausência de mulheres em filmes de terror e basta inquirir as crianças sobre as crueldades praticadas por mulheres naquele grande sadismo chamado educação: um contínuo de humilhações, violência psicológica, terror gestual, cinismo…

    Qual a razão de se ter desenvolvido tanto nos jornais quanto na tv e literatura uma escrita policial? Por que a grande mídia se interessa tanto em divulgar estas coisas, principalmente aos domingos? Que efeito esses programas possuem sobre a população?

  3. Caro João Bernardo

    Tenho muita curiosidade em saber como se relacionaria para vc a ideia cristã de universalização do pecado através do mito do pecado original com o princípio subjacente ao thriller de que todos são (não só potencialmente) criminosos, apesar de saber que o amoralismo dos romances policiais se contrapõe (pelo menos aparentemente) à ideia de uma ordem moral que fundamenta a teologia cristã em suas várias vertentes. Também gostaria de saber como vc vê o papel da multidão (que tanto W. Benjamin enfatizou) não só na questão que levantei como inclusive no aspecto dos papéis intercambiáveis no thriller (todos podem ser criminosos e detetives).

    Saudações

  4. Caro Rui Matias,
    Se substituirmos a noção teológica de pecado original pela sua consequência psicológica, o sentimento de culpa, é curioso observar que nos thrillers é o detective privado ou o polícia excêntrico quem é possuído por esse sentimento, jamais o criminoso. Há excepções, por isso eu perguntei no final deste segundo artigo o que havia sucedido aos heróis apolíneos dos primeiros thrillers. Sam Spade é desprovido de culpa, e poder-se-ia pensar que isto se deve ao facto de Dashiell Hammett ser comunista numa época em que a teologia da libertação não se tinha ainda misturado com o marxismo, mas os personagens de James Hadley Chase são igualmente alheios ao sentimento de culpa, a tal ponto que num dos primeiros números dos Temps Modernes (cito de memória) uma resenha do No Orchids for Miss Blandish se indignava com o amoralismo da obra, onde os existencialistas não encontravam pasto para lucubrações. Mas já em James Cain, por exemplo, em The Postman Always Rings Twice e em Double Indemnity, me parece que podemos detectar no narrador vestígios daquela compaixão que distingue o cristianismo. Depois, o detective ou o polícia excêntrico passou a arrastar a cruz dos outros e a dele, a solidão deixou de ser uma simples exigência estilística e permeou a frustração amorosa e a vida destroçada do investigador, a tal ponto que nas obras de Rankin ou de Nesbø, de outros também, a busca do criminoso se assemelha a um longo calvário. E da psicologia caímos novamente na teologia, porque nessas investigações prosseguidas por detectives rasgados pela culpa soa um eco da remissão dos pecados. Ou da forma truculenta dessa remissão, quando Mike Hammer, a criação do cruzado da guerra fria Mickey Spillane, destrói a ferro e fogo comunistas e pederastas, num afã purificador. Tudo isto, e tudo junto nos mesmos personagens, vamos encontrar na obra de James Ellroy, que elevou o romance policial a uma nova síntese e a mais altos cumes. Afinal, em vez de eu ter lastimado o desaparecimento dos heróis apolíneos, talvez devesse ter-me queixado da extinção do olho clínico entre os escritores de thrillers. Precisamos urgentemente de um Flaubert dos thrillers.
    A multidão anónima e tentacular é um elemento tão essencial da paisagem urbana como o são as ruas e as casas. Mas em vez de evocar aqui o flâneur Baudelaire remeto para a origem e lembro o mais gigantesco de todos os flâneurs, Balzac. «[…] Paris é um verdadeiro oceano. Lancem-lhe a sonda, nunca hão-de descobrir a profundidade», escreveu ele em Le Père Goriot. No mesmo romance Jacques Collin, quando era ainda o chefe do submundo e não se convertera em chefe da polícia secreta, desvendou ao jovem Rastignac os mecanismos ocultos da sociedade: «Paris, sabe, é como uma floresta do Novo Mundo, onde se debatem vinte espécies de tribos selvagens, os Ilinóis, os Hurons, que vivem do produto dado pelas várias caçadas sociais». E em Z. Marcas o narrador de uma história de ambições frustradas evoca «as longas caçadas através dos matagais parisienses». No meio desta emboscada de perigos, o flâneur é um precursor do detective, o que confirma que o romance policial é a legítima epopeia da nossa sociedade urbana.
    E remeto aqui para um dos mais notáveis ensaios de George Orwell, Decline of the English Murder, onde o autor mostra como a segunda guerra mundial, extinguindo o paroquialismo da sociedade inglesa, pôs fim na vida real aos crimes de estilo Agatha Christie e importou o thriller real para o quotidiano da Grã-Bretanha.

  5. Caro João Bernardo
    Parabéns por mais esta série da artigos. Nesta análise, como em outras, percebo que usa o conceito de campo, e lembro que no seu Dialetica da Prática e da Ideologia você explorou esse conceito, partindo do de práticas sociais e articulando-o a outros como grupo, classe etc. (Perdoe-me a simplificação.) Neste texto, no entanto, você alude à dialética exposta por Mao, ao referir-se ao fato de o detetive jogar em campos diversos, antagônicos. Agradeceria se pudesse me explicar essa referência a Mao e, um tanto perplexo, arrisco indagar se o detetive, nessa posição privilegiada, capaz de lhe render uma espécie de “consciência crítica”, poderia se constituir numa espécie de vanguarda?
    Abraço,
    Paulo

  6. Caro João Bernardo

    Vc acha possível pensar a relação do pecado com o crime nos thrillers como uma manifestação fantasmagórica das relações sociais prevalecentes no capitalismo?E a multidão como uma materialização das relações impessoais no mundo moderno?
    Obrigado pela resposta e saudações

  7. Caros Paulo e Rui Matias,
    Em obras escritas na época da guerrilha e da guerra popular Mao Tsé-tung analisou formas como o mais fraco pode jogar com as contradições entre os mais fortes. Isto na sequência de outros grandes estrategas chineses, como Sun Tzu. Há dois monumentos da literatura clássica chinesa, a História dos Três Reinos, de Luo Guan-zhong, e À Beira de Água, de Luo Guan-zhong e Shi Nai-an, que são os melhores estudos que conheço sobre o aproveitamento das contradições na acção política. No thriller o detective vai sozinho a um dos campos inimigos porque possui uma informação sobre o campo rival, com ela obtém novas informações, que usa depois em sentido contrário, e quanto mais todos os campos se digladiam entre si, mais o detective assegura a sua imunidade — com a condição de se saber mover para um e outro lado consoante os momentos. Esta é uma característica da totalidade dos thrillers, faz parte das regras desse género literário. Mas vanguarda nunca! O detective privado é um sujeito solitário e modesto nas suas ambições, um assalariado que cumpre um contrato. E o polícia excêntrico é igualmente solitário, visto com desconfiança ou pelo menos com perplexidade pelos restantes membros da corporação. Eles só são heróis no romance, aos olhos do leitor. Não são nem querem ser vanguardas, mas só pessoas comuns executando um trabalho. Nas ruas que percorrem eles são pessoas anónimas e confundem-se com a multidão. Olhe o Maigret, de Simenon, apesar de ser comissário e de ter as suas investigações narradas na primeira página dos jornais, como ele se confunde com o cidadão comum, como ele desaparece na multidão.
    E passo aqui para a segunda das questões do último comentário de Rui Matias. Acho que se pode definir exactamente assim a multidão, como uma materialização das relações impessoais. É isto que garante o anonimato a todos nós. Passar despercebido no meio de muita gente, ser invisível na multidão, é um dos prazeres do flâneur e uma das necessidades profissionais do detective no thriller.
    Mas hesito em estabelecer uma relação entre, por um lado, o crime e o pecado no thriller e, por outro lado, as relações sociais prevalecentes no capitalismo, porque me parece metodologicamente arriscado pôr a par uma noção específica e outra muito ampla. Talvez se encontre a solução em Dostoievski, no Crime e Castigo, nos diálogos entre Raskolnikov e o polícia.

  8. Caro João Bernardo

    Desculpe-me voltar às questões abordadas por mim, apesar de suas respostas terem sido realmente pertinentes – e até mesmo por isso – e gostaria de reformulá-las para deixar mais claro quais as dúvidas que carrego há muito tempo não só sobre os romances policiais, mas envolvendo outras mais gerais e centrais.
    Parece-me existir nas sociedades baseadas na exploração-dominação com vocação para “Impérios Universais´´ uma espécie de “espectro de decadência´´ ou um tipo de consciência reificada do próprio fim, ou melhor ainda, a reificação das relações sociais alienadas e/ou estranhadas que determinam os processos de dominação-exploração numa sociedade na forma ideológica de forças colossais e externas senão à sociedade pelo menos aos indivíduos. Essas forças não seriam fruto da própria atividade das pessoas em sociedade, mas de algo externo a esta atividade que a determina de forma fatalista. Um exemplo disto, e atualmente na moda, seria a idéia dos antigos Maias (claro que circunscrita e consubstanciada pela temporalidade circular) do Fim e recomeço periódico do seu mundo.
    Para vc até que ponto se poderia atribuir este “espectro de decadência“ aos ambientes sórdidos que geralmente prevalecem nos thrillers, ou este no máximo poderia ser imputado aos romances com algum fundo moralizante.E o detetive até que ponto se apresenta como um elemento efetivamente ativo na trama, como uma rota de fuga para o fatalismo, ou o seu próprio amoralismo expressa a sua real impossibilidade de mudar as regras do jogo?Por outro lado, a amoralidade poderia funcionar como uma crítica implícita às formas de negação do sistema vigente baseadas na concepção de ordem moral? Bom, espero não ter me alongado demais.

    Saudações

  9. Caro Rui Matias,
    A noção de decadência existe em muitas civilizações, tanto urbanas como rurais, e não só em impérios universalizantes. Por outro lado, não creio — embora não tenha a certeza — que estivesse difundida a noção de decadência entre os pensadores políticos do império chinês, que foi o mais universal de todos. Note-se, no entanto, que na maior parte dos casos os historiadores só conseguem estudar formas ideológicas prevalecentes nas classes dominantes ou em alguns estratos das classes dominantes ou, como na Europa medieval do século XII em diante, prevalecentes nas cidades. Quanto ao resto ou não há documentação suficiente ou nada se sabe. É um dos grandes problemas com os estudos culturais hoje, esse de tomar a parte pelo todo e de atribuir a uma época noções e comportamentos que eram apenas específicos de alguns meios sociais dessa épopca.
    Onde você encontra um excelente tratamento dos ciclos de ascensão e declínio das civilizações, fundamentado numa análise objectiva, sócio-económica, e não moralizante nem fatalista, é na Muqaddimah, de Ibn Kaldūn, um monumento que todos os alunos de graduação de História deveriam ler, mas infelizmente não lêem, aliás os professores também não.
    Mas, passando aos thrillers, uma pergunta. Você é leitor habitual desse tipo de literatura? Porque, se o é, estranho a sua pergunta. Eu sou um fanático devorador de thrillers. Há uns que se picam, há outros que cheiram, há os que fumam, eu leio thrillers, é este o meu vício. E nestes romances nunca me apercebi da noção de decadência. Mesmo nos livros de Mickey Spillane e dos muitos outros que lhe imitaram o estilo encontra-se a luta do bem contra o mal, do puro contra o impuro, assumindo a forma dos valores ocidentais contra o comunismo e a perversão sexual, mas não se encontra a ideia de decadência civilizacional.
    A noção de decadência civilizacional difundiu-se na cultura europeia desde os finais do século XIX até à segunda guerra mundial, e assumiu aquela que me parece ser a sua primeira forma clássica nas óperas de maturidade de Wagner, especialmente a Tetralogia e Parsifal. Pelo poema dessas óperas e acima de tudo, evidentemente, pela música, Wagner parece-me o grande pensador e encenador do tema da decadência. Não era só por causa dos textos racistas que o nacional-socialismo germânico considerava oficialmente Wagner como um dos seus quatro precursores, mas igualmente por causa da noção de decadência. Lukács, em A Destruição da Razão, analisou muito bem a relação entre o tema da decadência e as concepções raciais prevalecentes no Terceiro Reich.
    Mas a noção de decadência, tal como ela se encontra em Wagner, Spengler e noutras figuras menores, não é alheia à noção de contradição interna. Do mesmo modo o racismo hitleriano baseava-se na contradição entre uma raça de senhores, que não existia ainda, mas devia ser edificada a partir da raça nórdica, e a anti-raça, os judeus, que não eram considerados propriamente uma raça, mas destruidores de raças, como os bacilos podem destruir o corpo. Do mesmo modo, tanto a Tetralogia como o Parsifal estão estruturados em função de contradições internas.
    Naquela época o tema da decadência civilizacional era caracterizadamente um dos temas definidores da extrema-direita, e ninguém o ignorava. Mais recentemente, o multiculturalismo e a ecologia puseram a circular em vastos meios de esquerda temas originariamente de extrema-direita, e entre eles se conta o da decadência civilizacional. Mas não creio que isto tenha atingido os thrillers, senão eu já tinha deixado de os ler.
    O que se encontra no thriller são as contradições no estado puro, e o núcleo dessas contradições, a ambição pelo ganho, o desejo de poder, a vingança. O sórdido resulta de dois factores. Primeiro, tudo isso é feito sem frases nem pretextos hipócritas. É, como acabei de dizer, a contradição no estado puro. Segundo, toda essa agitação tem como objectivo ambições muito mesquinhas. Os Bórgias não são personagens de thriller. Mas são-no os malandros e os espertalhões. E é aqui que, como você escreve, o «próprio amoralismo» do detective «expressa a sua real impossibilidade de mudar as regras do jogo». Não é só, como você indica, que «a amoralidade poderia funcionar como uma crítica implícita às formas de negação do sistema vigente baseadas na concepção de ordem moral». Não é que «poderia», é que funciona mesmo. Funciona nos romances e nos contos do comunista Dashiell Hammett, o grande mestre que codificou o estilo, como funciona nas obras de Raymond Chandler ou de Ross Macdonald ou de muitos outros, cujas simpatias se encontram do lado esquerdo, como funciona nas de autores de direita ou de coisa nenhuma. Para mim o essencial do thriller é isto — desvenda os mecanismos elementares da sociedade.

  10. Caro João Bernardo

    Quero agradecer-lhe o longo comentário,a paciência e a pertinência das suas observações, inclusive o exemplo da China que vc deu, também me ocorreu quando eu escrevia. Devo admitir envergonhadamente que o meu contacto com o thriller se dá mais através das versões muito transformadas que o Gênero sofre no cinema.Mesmo que eu tenha pensado a decadência não tanto como tema, mas muito mais como uma espécie de mitologia de fundo, é no cinema (principalmente no cine americano)e não na literatura que esta mitologia difusa às vezes aparece, então admito que foi mais um abuso da minha parte.
    Por fim, sem querer alugá-lo, não resisto à tentação de perguntar-lhe o porquê da sua antipatia por Nietzche.Causa-me espanto esta tendência recente de esquecer a inegável filiação dele à extrema-direita (mesmo que com muitas contradições) e de transformá-lo quase num autor libertário. Parte da sua antipatia tem a ver com esta ligação dele com as ideologias da direita radical do período? Quando vc citou Wagner eu logo lembrei da proximidade que ele e Nietzche chegaram a ter. Aliás, se vc puder acrescentar algo à relação da psicanálise freudiana com o legado nietzcheano; eu em algum lugar li uma declaração de Freud afirmando que Nietzche era provavelmente o maior psicólogo do Ocidente, e que ele, Freud, não lia mais do que algumas linhas em sequencia dos textos de Nietzche para preservar a própria independência intelectual…

    Abraços e mais uma vez obiigado

  11. Caro Rui Matias,
    Quanto a Freud & Cª, remeto para o segundo comentário no primeiro artigo desta série, a minha resposta a José Luiz.
    A minha aversão a Nietzsche em nada se deve às propensões políticas dele. Deve-se ao facto de ser um filósofo meramente especulativo, desinteressado da visão factual, e ao facto de ter convertido o estilo de aforismos num álibi para o pensamento desconexo. Aliás, não esqueça que Wagner rompeu espectacularmente com Nietzsche, mas falar disso levaria demasiado longe. Para me limitar ao aspecto que mais de perto toca o thriller, a questão do Bem e do Mal, remeto para o que disse acerca de Dostoievski no comentário há pouco referido. Mas a ausência de oposição entre Bem e Mal, ou a ultrapassagem dessa oposição, ou a restrição do significado desses termos encontra-se já tratada com profundidade na grande obra de Balzac e, imediatamente antes do romantismo, nos romancistas libertinos franceses das últimas décadas do século XVIII. Todavia, desde os libertinos até Dostoievski, todos os que se interessaram pela dialéctica do Bem e do Mal foram buscar inspiração num colossal filósofo — Spinoza, na Ética. E na cultura europeia as raízes dessa dialéctica nascem mais longe, na Idade Média, nos Adeptos do Livre Espírito, que eu classificaria como os heterodoxos da heterodoxia. É exactamente nesta trama que os personagens dos thrillers têm de agir. Eles são a ilustração viva de um milinénio de pensamento acerca da dialéctica do Bem e do Mal. Nesta longa linhagem as lucubrações de Nietzsche parece-me ocuparem um lugar menor.
    Quanto ao thriller no cinema, aconselho-o a ver os grandes clássicos, feitos antes de Hollywood ser o que é, os filmes com Humphrey Bogart como protaginista, sobretudo The Maltese Falcon, de John Huston, e The Big Sleep, de Howard Hawks. Estes foram os realizadores (ou directores, como se diz no Brasil) e o actor que fizeram no cinema verdadeiros thrillers. Depois, Scorsese, na época em que ainda fazia filmes realmente bons, realizou (ou dirigiu) uma obra-prima do thriller sórdido, Mean Streets. Mais recentemente, Werner Herzog realizou Bad Lieuetnant, que considero um excelente thriller, ilustrando dois temas do género: a obsessão na acção e o polícia (policial, no Brasil) excêntrico que age por conta própria. Igualmente nos últimos anos, Plata Quemada, do realizador argentino Marcelo Piñeyro, e Rosa La China, da realizadora chilena Valeria Sarmiento, são dois thrillers que me parece importante ver e que não se limitam aos lugares-comuns do género. Enfim, ficam algumas indicações.

  12. Caro João Bernardo

    Creio que ficou mais claro para mim o que está por trás dos meus questionamentos e de quão problemáticos são os pontos de vista que me ocorreram em relação a eles.
    Tudo começou pela profunda impressão causada pela leitura cuzada dos textos de Poe e dos comentários de Baudellaire em relação a ele e dos textos de W. Benjamin com respeito à relação dos dois e do papel de Poe como precursor do romance policial. Pareceu-me então haver uma grande tensão nos textos de Poe e que poderia ser levada aos romances policiais em geral, entre a superação da ordem moral e a impossibilidade (prática mesmo) de se abandonar totalmente o plano do dever-ser. Estas reflexôes voltaram justamente quando estudei na faculdade de filosofia a ´´ Ética“ de Spinoza.
    Pensei então na possibilidade de se pensar num processo algo análogo ao de fantasmagoria de W. Benjamin, e que se aplicaria à esfera da cultura de geral. Mas, além do problema que vc apontou do risco metodológico de se misturar um conceito específico ( fantasmagoria – no caso de Benjamin – na relação das novas tecnologias do capitalismo com as antigas) com categorias mais gerais como as da moral, temos o fato de as antigas tecnologias aparecerem aos contemporâneos como quadros de referência para as novas tecnologias, o que obviamente não ocorre na relação do thriller com a moral. O que talvez reste disso tudo seja a tensão entre a negação da moral e o plano do dever-ser…
    Quando vc esclarece que a sua diferença maior com Nietzche é com relação ao carácter especulativo das suas idéias, ocorre-me que talvez seja este carácter a principal razão para que Marx tenha deixado de ser a principal referência teórica na Filosofia da USP, como nos anos 60 ( segundo o relato de alguns professores) e agora este espaço seja ocupado por Nietzche. Sinal dos tempos?
    Obrigado pelas indicações e

    Saudações

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