Agricultura familiar.

Por João Bernardo

Depois de uma gestação que durou cinco ou seis anos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, foi fundado oficialmente no 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, realizado no Paraná em Janeiro de 1984. O MST surgiu depois de o regime militar ter acelerado a modernização das áreas rurais no Brasil. Desenvolveu-se uma agropecuária empresarial, que se inseriu no quadro do desenvolvimentismo brasileiro, em estreita relação com a indústria através dos ramos de maquinaria agrícola e de componentes químicos.

A modernização da agropecuária precipitou a crise dos pequenos produtores. E como a agricultura industrializada é muito produtiva, necessitando de menos mão-de-obra por área do que a agricultura tradicional, não só ocorreu uma conversão de pequenos camponeses em assalariados agrícolas como se formou um excedente de população nos campos, que se viu obrigado a demandar as cidades. Segundo os Censos Demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, enquanto, em valores absolutos, a população rural permaneceu praticamente estacionária entre 1950 e 2000, a população urbana septuplicou e passou de 36% do total em 1950 para 81% em 2000.

mst-a-4O MST nasceu como uma forma de luta social no interior do processo de industrialização da agropecuária e aceitou plenamente o quadro da modernização. Esta opção política marcou a primeira fase de existência do Movimento e ditou-lhe as necessidades tácticas. Tornava-se urgente incentivar os pequenos camponeses a modernizarem as suas formas de cultivo e o MST procurou que os assentamentos desenvolvessem uma produção mecanizada e em grande escala, inserida no mercado. Neste contexto o MST apontava o exemplo dos projectos agroindustriais, pretendendo que a agroindústria fosse aplicada nos assentamentos.

Ora, isto não seria possível no âmbito da agricultura familiar e exigiria a formação de cooperativas de produção. «O sistema cooperativista dos assentados terá uma estrutura organizativa própria», explicou em 1990 o órgão do MST, «dedicando-se especificamente aos problemas relacionados com a produção, comercialização, agroindústria, crédito rural e a assistência técnica» [1].

mst-a-5Não se devem subestimar os obstáculos sociais com que deparava um empreendimento desta dimensão. Antes de mais, o particularismo doméstico é muito forte entre os camponeses, o que os leva a encarar com grande desconfiança o trabalho colectivo, e a direcção do MST considerava a mentalidade e o comportamento do produtor agrícola tradicional como um dos principais obstáculos a serem superados. É certo que, em sentido contrário, o MST podia mobilizar dois factores: as relações de solidariedade tecidas na luta pela conquista da terra e a tradição do mutirão [auxílio mútuo]. Todavia, à medida que uma ocupação parecia segura e abrandava o confronto com as autoridades, os elos de solidariedade tendiam a esmorecer ou, sob um ponto de vista estritamente egoísta, tornavam-se inúteis. E a respeito da utilização das formas tradicionais de entreajuda como base para formar cooperativas de produção, escreve Alexandre Ribas: «As primeiras experiências sobre a organização cooperativa desenvolvidas pelo MST consistiram nos grupos coletivos, grupos de ajuda mútua, baseados nas práticas da Igreja Católica. Posteriormente, incentivaram as experiências com os grupos de máquinas e com as associações. Já no final da década de 80, o MST iniciou suas experiências com pequenas cooperativas, as Cooperativas de Produção Agropecuária, caracterizadas por uma gestão inteiramente coletiva dos lotes e da produção» [2]. No entanto, este processo deparava com um grande obstáculo, porque a entreajuda nos mutirões ocorria tradicionalmente em momentos específicos e para finalidades singulares, e não como um sistema permanente de relações de trabalho na actividade produtiva. Como observa Rosemeire Socopinho, «a cooperação manifesta-se com mais clareza externamente às relações de trabalho, embora no mundo rural o trabalho e as outras dimensões da vida cotidiana nem sempre estejam nitidamente delimitadas» [3].

Apesar de tudo isto, o MST lançou-se ousadamente na formação de cooperativas de produção nos assentamentos. «Diante de uma política econômica e agrícola que penaliza o pequeno agricultor, o assentado não pode se contentar com a conquista de um pedaço de terra», afirmou em 1991 o órgão do MST. «Há a necessidade de encontrar meios que lhe possibilita [sic] ter acesso a recursos financeiros e técnicos, condições favoráveis de produção e comercialização; acesso a técnicas de produção mais desenvolvidas e a mecanização. Recursos esses hoje, somente ao alcance dos grandes proprietários. É para proporcionar essas condições que estamos implantando a organização de cooperativas em nossos assentamentos» [4]. Um dos dirigentes de uma cooperativa de produção integrada nos projectos agroindustriais do MST explicou que «o nosso objetivo com a inserção no mercado é melhorar a vida do assentado, dos cooperados do campo, nós queremos mostrar para eles que eles podem qualificar a sua produção, tendo mais eficiência e produtividade, para que eles evoluam socialmente e economicamente, daí a necessidade de agregar valor aos produtos, a partir da agroindustrialização, fechando a cadeia produtiva» [5].

As cooperativas de produção fundadas pelo MST tinham personalidade jurídica, para que pudessem inserir-se no circuito mercantil. «A organização de cooperativas busca a autonomia dos assentamentos para um desenvolvimento da produção agropecuária», escreveu o jornal do Movimento em 1990. «As cooperativas buscam, além de planejamento da produção, criar vias diretas de comercialização, eliminando os tradicionais atravessadores [intermediários]» [6].

mst-a-8Esperava-se que a criação, em assentamentos ou em partes de assentamentos, de experiências piloto que tivessem êxito serviria para convencer os demais assentados das vantagens do trabalho colectivo. Entretanto, a direcção do MST não poupava esforços, tanto no plano do esclarecimento ideológico como no das acções práticas, para incentivar as cooperativas de produção, tendo como objectivo último a implementação da forma cooperativa em todos os assentamentos. Em 1988 o MST criou o Sistema Cooperativista dos Assentados e a partir do ano seguinte aumentou muito o número de cooperativas agropecuárias nos assentamentos do Movimento. Este processo culminou em 1992 com a formação da Confederação Nacional das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil, «organizada pelo MST a partir de aproximadamente 55 cooperativas de produção e comercialização e de 7 centrais cooperativas estaduais» [7]. Tudo somado, nessa época, segundo Rosemeire Socopinho, «foram organizadas mais de 40 CPAs [Cooperativas de Produção Agropecuária] no país, muitas inteiramente coletivistas, verdadeiras ilhas socialistas não só quanto à organização do trabalho, mas também quanto a certos aspectos da vida doméstica como, por exemplo, o uso de refeitórios e creches» [8].

Entre as «principais idéias que marcaram a linha de orientação política para a cooperação do MST entre 1990 e 1992», tal como Alexandre Ribas as sistematiza, encontro duas que ilustram bem a forma como a questão era considerada: 1) «Passar da produção de subsistência para a produção de mercadorias. Isso significa acúmulo de capital para investimentos em produtos agroindustriais». 2) «Estabelecer uma fase de transição entre o camponês-artesão e o operário. Transformar a “consciência camponesa” em “consciência operária”» [9].

Além das dificuldades decorrentes do particularismo doméstico prevalecente nos campos, o projecto cooperativo do MST deparava ainda com as deficiências de formação técnica, resultantes do baixo nível de instrução, e com a aversão às inovações, resultante da falta de habituação às formas modernas de produção. Também aqui a direcção do MST tentou debelar a dificuldade. Neste sentido são significativos os Elementos sobre a Teoria de Organização no Campo, publicados pelo MST em 1986 como Caderno de Formação nº 11, da autoria de Clodomir Santos de Morais. Nesta cartilha, Clodomir Morais chamou a atenção para a importância da produtividade e da divisão do trabalho. Criticando as formas de trabalho individualistas e retrógradas da pequena agricultura tradicional e a sua noção arcaica de tempo, incompatível com as exigências da produtividade, afirmou Clodomir Morais: «Entre os camponeses […] as unidades de tempo são indefinidas e em geral são longas: um “momentinho”, um “momento”, meio dia, uma semana, a próxima lua nova, a colheita, etc. Já entre os operários de uma fábrica o tempo se mede em segundos, minutos, uma hora, etc.». E Clodomir Morais insistiu que «a maior preocupação que tem o produtor é a de produzir a maior quantidade de mercadoria na menor quantidade de tempo possível» [10].

Clodomir Morais
Clodomir Morais

Velho militante do Partido Comunista, Clodomir Morais fora na década de 1950 deputado estadual no Recife e assessor e organizador das Ligas Camponesas, animadas por Francisco Julião. Preso e depois exilado durante o regime militar, durante os longos anos em que foi forçado a permanecer fora do país Clodomir Morais desempenhou numerosas funções de consultoria e de organização relacionadas com a reforma agrária e o desenvolvimento rural em vários organismos no âmbito da ONU. É interessante saber que, de acordo com o que Clodomir Morais conta numa entrevista, ele encontrava-se na República Democrática Alemã em 1986 e foi aí que teve conhecimento da publicação do Caderno de Formação nº 11 [11]. Este Caderno revela o predomínio da abordagem marxista da questão camponesa no MST daquela época. Entendia-se que era necessário transformar o antigo camponês no novo operário do campo. Sem isto, defendia então a direcção do Movimento, as cooperativas não seriam viáveis economicamente. «Portanto é necessário organizar formas superiores de cooperação», afirmava o órgão do MST, «aumentar a produtividade física das terras, a produtividade do trabalho, os ganhos na comercialização e criar condições econômicas para implantar agroindústrias» [12].

Neste sentido a direcção do MST, além de prosseguir outras actividades de formação e capacitação, criou os Laboratórios Organizacionais de Campo, destinados a transmitir aos assentados conhecimentos tanto de técnica organizativa como de técnicas referentes à agroindústria. Já Clodomir Morais idealizara Laboratórios Experimentais, definidos como «um ensaio prático e ao mesmo tempo real ao qual se busca introduzir em um grupo social a CONSCIÊNCIA ORGANIZATIVA que necessitam [sic] para atuar em forma de empresa ou ação organizativa. Para a realização de um “Laboratório Experimental” é necessário criar artificialmente uma empresa, porém com existência e funcionamento reais» [13]. O primeiro dos Laboratórios Organizacionais de Campo criados pelo MST reuniu-se em Outubro de 1988, no Rio Grande do Sul.

Hoje, que as modas políticas e académicas viraram, o balanço desta fase cooperativista do MST é geralmente apresentado como negativo. Sem dúvida que os obstáculos humanos, quer os resultantes da cultura e do comportamento tradicionais do campesinato quer os resultantes da formação técnica deficiente e arcaica, só podem resolver-se a longo prazo, e as cooperativas do MST eram demasiado recentes. Apesar disto, não me parece que dificuldades iniciais de percurso devam ser apresentadas como sintoma de uma inadequação estrutural do cooperativismo agropecuário, como demonstra o sucedido durante os primeiros anos da década de 1990.

mst-a-6Nessa época o governo de Collor de Mello restringiu os créditos e a assistência técnica concedidos à pequena agricultura, extinguiu o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, esvaziou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Incra, e recorreu à Polícia Federal para reprimir o MST, mandando invadir secretarias estaduais, apreender documentos e prender e instaurar processos judiciais contra as lideranças. Esta vaga de repressão provocou uma queda de quase metade no número de ocupações, que passaram de 80 em 1989 para 49 em 1990, e uma queda de praticamente metade no número de famílias mobilizadas, que passaram de 16.030 para 8.234 no mesmo período. Nesta conjuntura difícil, tendo de sobreviver na defensiva e contando sobretudo com os próprios recursos, o MST concentrou-se no desenvolvimento das cooperativas de produção. O projecto de estabelecer pequenas agroindústrias para eliminar os intermediários na comercialização dos produtos agrícolas abriu um espaço para estratégias de economia de guerra, e na sequência do encontro sobre cooperativas, realizado em Junho de 1990, anunciou-se a coletivização da produção, com o intuito de resistir política e economicamente através da consolidação de um Movimento independente do Estado. Tratava-se de reduzir a agricultura de subsistência e de ampliar a rede de Cooperativas de Produção Agropecuária de pequeno porte, mecanizando tanto quanto possível as fainas agrícolas para atingir economias de escala e realizar grandes ações produtivas para o mercado. Paralelamente, a direcção do MST recomendou aos assentados que fundassem restaurantes comunitários e creches, com o duplo objectivo de economizar o tempo das mulheres com a cozinha e os filhos e de estimular a convivência colectiva, de modo a inspirar nos camponeses uma consciência socialista.

Para proceder a um balanço realista das cooperativas de produção é indispensável considerar o papel que desempenharam na resistência ao governo de Collor de Mello. Com estas cooperativas o MST pretendeu efectuar não só um corte radical nas relações de trabalho e nas relações de propriedade, mas ainda um corte radical na mentalidade camponesa. O Movimento abalançou-se então a fazer aquilo que deve ser a meta de todos os anticapitalistas, a construção de um ser humano novo. Foi ao longo da década de 1984 a 1995 que o MST conseguiu converter-se na organização de vanguarda das lutas sociais e aparecer como uma referência para a os anticapitalistas na América Latina e igualmente no resto do mundo.

A aceitação da modernização agrária e a constituição de cooperativas agroindustriais criaram condições para que o MST se ligasse à mão-de-obra que labora nas explorações rurais capitalistas. Já no Encontro em que ocorreu a sua fundação oficial o MST anunciara a intenção de «integrar à categoria dos sem-terra trabalhadores rurais, arrendatários, meeiros, pequenos proprietários etc.» [14]. E na medida em que uma percentagem significativa de assentados se vê obrigada a trabalhar como jornaleiros fora do lote familiar, poderíamos admitir que ficaria facilitada a relação do Movimento com os assalariados rurais. Com efeito, na década de 1990 ocorreu em várias regiões uma aproximação entre o MST e os bóias-frias [jornaleiros itinerantes], que, se tivesse sido durável, poderia ter formado uma base sólida para reivindicar estabilidade e segurança no trabalho, transformando os bóias-frias em assalariados regulares. Note-se, porém, que uma mudança social deste tipo representaria para os empresários da terra um aumento dos custos salariais e pressioná-los-ia a desenvolver a produtividade, ou seja, a acelerar a modernização capitalista nos campos. Portanto, só um MST capaz de prosseguir a modernização da agropecuária no interior do quadro cooperativo poderia estar interessado em dar força às reivindicações dos bóias-frias. Convém não o esquecer, se quisermos compreender o motivo que levou mais tarde o Movimento a desinteressar-se dos assalariados do agronegócio.

Comuna urbana de Jandira
Comuna urbana de Jandira

Do mesmo modo, aceitar a inelutabilidade da modernização da agropecuária e desenvolver uma luta no interior desse processo de modernização implicava também que o MST considerasse inevitável a migração de uma boa parte da população rural em direcção às cidades. O Movimento pareceu ter entendido, nessa época, que a industrialização da agropecuária abolia a velha distinção entre cidade e campo. Recorda Alexandre Ribas que «desde o seu início, a direção do MST explicitava seu apontamento estratégico básico: a articulação de uma luta corporativa, imediata, com a luta de classe, daí a importância atribuída à articulação do Movimento com os trabalhadores denominados urbanos» [15]. Como seria fútil tentar opor-se à migração para as cidades, o Movimento procurou em vez disso organizar e mobilizar a população das periferias urbanas recém-vinda das áreas rurais. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, MTST, criado oficialmente em 1997, constituiu um passo neste sentido. Um passo maior teria ocorrido se o MST tivesse iniciado muito mais cedo a formação de comunas urbanas e lhes tivesse dado continuidade, como foi feito em Jandira, na região metropolitana de São Paulo, já numa data tardia, em Novembro de 2005, e à revelia da orientação oficial. Trata-se de um assentamento de carácter urbano, sob a bandeira do MST e dedicando-se a actividades produtivas, tal como os assentamentos rurais. Se iniciativas deste tipo tivessem sido prosseguidas sistematicamente, ter-se-iam começado a criar condições para uma unificação política da classe trabalhadora, que correspondesse à realidade demográfica.

Construção da nova Jandira
Construção da nova Jandira

Neste contexto de um cooperativismo agropecuário, que aceitava e reproduzia a modernização tecnológica mas procurava que ela fosse acompanhada por uma reforma agrária, é impossível não evocar a Revolução Verde. Só a Revolução Verde possibilitaria que pequenos camponeses atingissem o grau de produtividade necessário para concorrer nas novas condições do mercado. Hoje, uma das críticas recorrentes à Revolução Verde é a de que beneficia as grandes companhias transnacionais. E sem dúvida que as beneficia, como tudo o que acarreta o desenvolvimento do capitalismo e a integração dos seus vários ramos. A Revolução Verde lançou plenamente os pequenos agricultores no mercado, tanto para a venda de produtos como para a aquisição de inputs; inseriu-os no sistema global de crédito; aboliu a distinção entre agropecuária e indústria e depois, com as inovações operadas na informática, ligou também a agropecuária a esse novíssimo quadro tecnológico. Sob todos estes aspectos, a Revolução Verde não difere da modernização da indústria e dos serviços no meio urbano. Aliás, ela constitui um indício de que, numa perspectiva económica, a separação entre ambos os meios está na prática superada. Só a tendência à mitificação da natureza e dos camponeses leva os críticos da Revolução Verde a isolá-la do processo geral que resultou na liquidação das oficinas, das pequenas lojas e das profissões liberais por acção das empresas capitalistas. Por que é que no campo havia de ser diferente? Nesta nossa época pós-modernista fomos brindados com o aparecimento dos neofisiocratas.

Mas como a Revolução Verde implica investimentos em meios de produção (maquinaria, sementes e agentes químicos), ela exige formas de crédito. Ainda aqui a questão não difere do resto do capitalismo, pois toda a actividade económica se sustenta no crédito. Assim, além das dificuldades humanas já enunciadas, as cooperativas do MST deparavam também com uma grande dificuldade material, o acesso a financiamentos. Por isso a luta pela ocupação de terras e pela sua exploração numa forma cooperativa era indissociável da luta pelo crédito.

O financiamento federal concedido aos assentamentos, nomeadamente através do Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária, Procera, instituído em 1985, visava impulsionar a modernização do cultivo e a sua orientação para o mercado, mostrando simpatia pela formação de cooperativas. Segundo Gervásio Rezende, no triénio de 1995-1997 os «“empréstimos coletivos”, que reúnem os empréstimos concedidos a dois ou mais assentados e aqueles destinados à integralização de quotas-partes de cooperativas», «representaram nada menos que 56% do valor total das operações na região Sudeste, 25% na região Sul e 28% na região Centro-Oeste» [16]. Juliano Borges considera que o crédito do Procera se caracterizava por ser a curto prazo e não constituía um crédito de investimento [17]. No entanto, Gervásio Rezende afirma que as «operações ditas “coletivas”, assim como as decorrentes de formação de uma cooperativa ou agroindústria, geram uma dívida para o assentado […] que dificilmente poderá ser paga. No caso das operações “coletivas”, são tantas as incertezas e os condicionantes quanto ao efeito dessas operações sobre a capacidade produtiva e a renda individual e, assim, sobre a capacidade de pagamento de cada assentado, que só a expectativa de não-pagamento dessa dívida faz o assentado contraí-la» [18]. Se isto for exacto, não parece que o curto prazo tivesse constituído um grande problema. O problema veio de não se saber em que medida aquele crédito era efectivamente aplicado em investimentos. Como escreveu Gervásio Rezende em 1999, «não foi feita, até hoje, qualquer avaliação independente do efeito desses fundos sobre o desenvolvimento das regiões beneficiadas», e o autor previne de que, «quando o subsídio estende-se ao próprio principal, como é o caso do Procera, o agricultor pode destinar os fundos do crédito à compra imediata de bens de consumo ou à produção de autoconsumo, já que, nesse caso, ele não precisa criar capacidade de pagamento futuro» [19].

Notas

[1] Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 1990, nº 95, pág. 21.
[2] Alexandre Domingues Ribas, Gestão Político-Territorial dos Assentamentos, no Pontal do Paranapanema (SP): Uma “Leitura” a partir da COCAMP (Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados da Reforma Agrária do Pontal), dissertação de mestrado, Universidade Estadual Paulista, 2002, pág. 41.
[3] Rosemeire Aparecida Scopinho, «Sobre Cooperação e Cooperativas em Assentamentos Rurais», Psicologia & Sociedade, 2007, vol. 19, ed. esp. 1, pág. 84.
[4] Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 1991, nº 101, pág. 2.
[5] Citado em Alexandre Domingues Ribas, op. cit., págs. 62-63.
[6] Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 1990, nº 93, pág, 19.
[7] Alexandre Domingues Ribas, op. cit., pág. 147.
[8] Rosemeire Aparecida Scopinho, op. cit., pág. 89.
[9] Alexandre Domingues Ribas, op. cit., págs. 148-149.
[10] Citado em Fernanda Thomaz, A Organização do Trabalho Camponês na Visão de Clodomir Santos de Morais, XIX Encontro Nacional de Geografia Agrária, São Paulo, 2009, pág. 7.
[11] Veja aqui.
[12] Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 1990, nº 95, pág. 21.
[13] Citado em Fernanda Thomaz, op. cit., págs. 9-10.
[14] Citado em Juliano Luís Borges, A Transição do MST para a Agroecologia, dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Londrina, 2007, pág. 47.
[15] Alexandre Domingues Ribas, op. cit., pág. 135.
[16] Gervásio Castro de Rezende, Programa de Crédito Especial para Reforma Agrária (Procera): Institucionalidade, Subsídio e Eficácia, Texto para Discussão Nº 648, Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea, Maio de 1999, pág. 8.
[17] Juliano Luís Borges, op. cit., pág. 61.
[18] Gervásio Castro de Rezende, op. cit., pág. 9.
[19] Id., ibid., págs. 11 e 13.

Esta série reúne os seguintes artigos:
1) 1984-1995
2) 1995-2012
3) hoje

4 COMENTÁRIOS

  1. Pois é. Eu conheci cooperativa do MST em 1998. Não estava mesmo conseguindo entender a argumentação dos pró vida arcaica segundo a qual ou se vive numa economia familiar de subsistência ou se cai diretamente no capitalismo agrário.

    Há a terceira alternativa, que nem é agricultura familiar arcaica nem exploração capitalista, e que pensa um modelo de produção coletivista sem prescindir dos avanços tecnológicos.

  2. Texto muito bom e esclarecedor.
    No meu ponto de vista, ao analisarmos as diferentes estratégias por trás da organização da produção no movimento é necessário identificar sua relação com uma estratégia mais ampla, focada na transformação social. Acredito que alguns pontos ficarão mais claros com a segunda parte do artigo, entretanto, ao meu ver, o abandono do cooperativismo e da busca pela modernização não está necessariamente em contraposição à proposta agroecológica do movimento no que se relaciona a sua estratégia de transformação social.
    A definição de diferentes formas de organização do trabalho e da produção pode responder a “n” fatores. Mesmo em empresas capitalistas há um movimento dinâmico em relação às diferentes formas de organização da produção, que respondem a contingências encontradas no decorrer do processo produtivo. É comum observar na literatura acadêmica sobre organização do trabalho (sob qualquer viés ideológico) a relação dinâmica entre estratégia organizacional e estrutura organizacional, e sua relativa organização da produção ou do trabalho.
    Se não nos atentarmos à tal característica corre-se o risco de atribuirmos às questões relacionadas à organização da produção um papel central em toda a dinâmica social relacionada a uma determinada comunidade, seja ela uma empresa capitalista ou um assentamento do MST. Isso reduziria o escopo da análise e seria uma simplificação da realidade e uma aceitação de um “determinismo econômico” superficial.
    As estratégias definidas pelo movimento respondem às suas percepções em relação a conjuntura e ao processo de transição pelo qual luta. Ao meu ver são estas estratégias, e o que está por trás delas, como seu viés ideológico, sua percepção da conjuntura e inclusive a avaliação de seus recursos visando aumentar a eficiência do movimento, no sentido de lhe garantir avanços em direção à reforma agrária com seu fortalecimento, que devem ser analisadas.
    Está o MST passando por uma mudança estratégica/ideológica? Abandonando velhos conceitos do marxismo clássico, como a centralidade do operariado industrial versus o lumpem campesinato no processo revolucionário? Quais possíveis impactos pode haver em sua luta de tal mutação?
    Questões como estas podem ser muito melhor exploradas se compreendermos que os métodos de produção, agroecológico ou agroindustrial, quando não relacionados à uma estratégia de superação da dominação, do Estado e do capital, e, por sua vez, relacionados à uma concepção de sociedade socialista, não significam nada para o socialismo.
    Muito podemos falar das diversas experiências capitalistas de organização da produção sustentável, agroecológica, sociotécnica, etc. Da mesma forma podemos citar experiências tayloristas no âmbito do socialismo “real”.
    Enfim, torna-se importante abordarmos o que está por trás deste debate ao falarmos de estratégias para a transformação social e as possibilidades abertas pelas diferentes formas de organização da produção.

  3. O texto apresenta uma argumentação não usual, e nela vem basicamente uma análise que detecta qual seria um dos, ou o principal, caminho para a criação de uma sociedade anticapitalista. A união das cooperativas do MST com a luta dos assalariados rurais e, concomitantemente, construção de comunas urbanas numa luta conjunta com assalariados citadinos. Eixos anticapitalistas para campo e cidade numa base de luta popular.

    Ler esse texto me fez pensar o quanto a base da esquerda letrada está muito distante de algo deste porte. Essa mesma esquerda que produz textos e críticas anticapitalistas e se une em algumas lutas conjuntas, Pinheirinho, por exemplo, por outro se digladia vorazmente ante as parcas oportunidades que o mercado oferece, principalmente o universitário. De um lado se escreve, critica e luta em algumas ocasiões, de outro há um desejo secreto pelo fracasso dos companheiros de forma que haja mais espaço no mercado acadêmico, principalmente.

    Se deixarmos como mofo, o que é, os tantos grupos de debate e discussão sobre autores e mitos anarquistas e marxistas, basicamente esta esquerda não produz absolutamente nada de prático que seja contra-hegemônico. Ao contrário, segue tanto as normas que vemos anarquistas e marxistas em rituais de defesa de teses críticas nas quais o público é proibido de fazer questões e participar do debate, restando somente os doutores. E todos, até hoje, aceitam e aceitaram isso sem nenhum questionamento.

  4. A análise de João Bernardo é, em certo ponto, inovadora. Polêmica e inovadora. As idéias básicas estão contidas no texto, apesar de parcial. Assim, espero pelo resto do texto, parabenizo o autor, e também polemizo: não existe um certo determinismo tecnológico nas idéias defendidas pelo João Bernardo? Adianto que espero que estes debates sejam publicados em sua forma completa em formato de livro.

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