Por Paula Regina de Oliveira Cordeiro

“Elas são vítimas, em primeiro lugar, do maldito sistema da propriedade; em segundo lugar, da maldita hipocrisia moral. Isto é claro. E não há brutos nem míopes que possam esquecer isso.” (Clara Zetkin, Lênin e o Movimento Feminino, 1920).

“O que é o dia da Mulher? É realmente necessário?” se perguntou Alexandra Kollontai em 1913. A resposta vinha anos mais tarde e, como sempre, do movimento real da luta de classes: no dia 8 de março de 1917 (23 de fevereiro pelo calendário juliano), a greve das operárias da indústria têxtil contra a fome, contra o czar Nicolau II e contra a participação do país na primeira guerra Mundial precipitou os acontecimentos que resultaram na Revolução de Fevereiro e, posteriormente, no Outubro Vermelho.

Precisamos, nós, feministas e revolucionárias/os, fazer a mesma pergunta no século XXI. Mais ainda, precisamos compreender a importância das lutas no período que estamos enfrentando. Como sabemos, depois da queda do muro de Berlim e da ofensiva neoliberal, acirrada pela crise estrutural do capital a partir da década de 1970, a estratégia socialista vem recebendo diversas baixas e a classe trabalhadora, que outrora lutava pela emancipação humana, hoje luta pela manutenção de direitos já conquistados e pelo avanço de reformas, que pouco ou nada contestam o sistema capitalista.

dia-de-luta4O movimento feminista, bem como outros movimentos sociais, cada vez mais assumem características particulares e, portanto, não conseguem dialogar com a totalidade social. Isso ocorre pela crítica feita ao marxismo, acusando-o de negligenciar os assuntos das mulheres. Tal análise é fruto do desserviço feito pelo marxismo mecanicista (principalmente o endurecimento da dialética) às elaborações marxianas e engelsianas sobre a mulher e a família na sociedade capitalista.

O marxismo stalinista coloca a libertação da mulher como sendo fruto de uma obviedade ao momento posterior à revolução “socialista”, como nos diz Iasi em sua crítica:

[…] que pressupõe o mais amplo desenvolvimento das forças produtivas, a socialização da produção, a incorporação da mulher à esfera produtiva e a conquista das igualdades formais diante do salário, dos direitos sindicais e da participação política. (IASI, 1991, p.1)

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A história nos mostra que tal análise é equivocada, já que na experiência revolucionária (mas não comunista, nos moldes marxistas), a Revolução Russa, apesar das tentativas formais de igualdade, pouco avançou no que diz respeito à opressão da mulher. Tentativas estas, expressas em uma fala de Lenin sobre a importância das mulheres trabalhadoras se unirem em escala internacional:

A primeira ditadura do proletariado abre verdadeiramente o caminho para a completa igualdade social da mulher. Elimina mais preconceitos que a montanha de escritos sobre a igualdade feminina. E, apesar de tudo isso, não possuímos ainda um movimento feminino comunista internacional. Mas devemos chegar a formá-lo, a todo custo. Devemos proceder imediatamente à sua organização. Sem esse movimento, o trabalho de nossa Internacional e das suas seções será incompleto e assim permanecerá. (Zetkin, 1920).

Entender o motivo do não avanço desta luta é tarefa central das/os comunistas do presente. Além disso, é nossa tarefa relembrar os motivos que nos fizeram herdar a fama de sermos contra o Estado, a propriedade privada, a religião e a família. Reafirmar, como fez Sérgio Lessa:

dia-de-luta6Nós, comunistas, somos de fato a favor de uma sociedade sem classes, sem Estado, sem propriedade privada. Uma sociedade na qual a abundância torne desnecessárias as religiões, – esse consolo ideológico que transforma a miséria terrena em paraíso espiritual. […] somos também contra a família monogâmica. (Lessa, p.4).

Engels em seu livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, que, apesar ter sido escrito em uma época em que a ciência não conseguia explicar elementos que hoje são banais, apresenta de forma clara, a partir do materialismo histórico, a origem da família monogâmica e como se deu o acirramento da opressão e exploração feminina no seio da sociedade regida pela égide do capital.

Com a crise estrutural do capital, a família tende a adaptar e a modificar a sua estrutura às necessidades imediatas do sistema do capital, tendo como impulso “acima de tudo a necessidade de incorporação ao mercado de uma força de trabalho feminina cada vez maior” (Lessa, p.65). E o que o movimento feminista ligado a democracia burguesa comemora como vitória – direito ao voto, leis contra a violência doméstica, etc. – nós consideramos como modificações necessárias à nova dinâmica do capital e que não realizam a aproximação destas mulheres com um estágio emancipado. Pelo contrário, essas mulheres vêem suas condições objetivas e subjetivas de vida se degradarem:

Elas têm de aceitar uma parcela desproporcional das ocupações mais inseguras, mais mal pagas no mercado de trabalho e se encontram na péssima situação de representar 70 por cento dos pobres do mundo. […] as exigências que são (e continuarão sendo) alocadas às mulheres são cada vez mais difíceis de serem atendidas […]. (Lessa, p.65).

Diante desse cenário há em curso a dissolução da forma vitoriana (tão citada por Freud) de família monogâmica; porém, isso não significa, como podem pensar as/os leitoras/os mais atentas/os, que estamos passando por um processo em que os indivíduos estão adquirindo uma nova forma de sociabilidade não burguesa, se afastando dos processos alienantes que brotam da família e da propriedade privada. Pelo contrário, acontece que:

[…] perdida a ancoragem histórica no patriarcalismo típico, as pessoas buscam alternativas da maneira como a sociabilidade burguesa em crise as possibilita –, isto é, pelo fortalecimento do seu individualismo e pelo processo de coletivo isolamento […]. Suas personalidades continuam cindidas, não harmônicas e muito pouco íntegras. Os aparentes avanços do “gênero” são, antes, manifestação do aprofundamento da crise e da intensificação das alienações do que passos emancipatórios dos homens e das mulheres. Isso tanto do ponto de vista pessoal, individual, quanto do ponto de vista coletivo. (Lessa, p. 66).

dia-de-luta1Essa diferença de concepção (entre achar que são vitórias essas reformas e achar que tais reformas são necessárias à própria adaptação do capital) nos diferencia das feministas burguesas: “As feministas burguesas estão lutando para conseguir direitos políticos: também aqui os nossos caminhos se separam.” (Kollontai, 1913, p.3).

Portanto, nós, comunistas, que atuamos no sentido de abolir a propriedade privada e a sociabilidade burguesa, devemos atuar no sentido de nos contrapor às reformas burguesas proferidas pelo Estado, seja elas proferidas a partir de um governo “dos trabalhadores” ou de um governo de extrema-direita. A nossa luta é pelo fim do Estado e não pela sua reforma. Neste sentido é necessário compreender que as reformas feitas pelas mais esdrúxulas formas de social-democracia “não vão além do nível da igualdade formal” (Mészáros apud Lessa, p.67), bem como compreender que não basta a entrada no Estado de partidos trabalhistas para que o capital seja desafiado, rompendo com a submissão do trabalho.

É historicamente impossível realizarmos a emancipação humana através de etapas e reformas (em letras maiúsculas para reformas em “um único país”), as quais, no máximo, fazem com que o capital durma com uma dor de cabeça à noite. É necessário que nos chamemos à responsabilidade na construção de um mundo novo, com homens e mulheres diferentes, para isso é necessário que neste momento, nos debrucemos novamente sobre a teoria revolucionária e criemos espaços autônomos de debates e organização da luta direta.

O Dia da Mulher e o lento, meticuloso trabalho feito para elevar a autoconsciência da mulher trabalhadora estão servindo à causa, não da divisão, mas da união da classe trabalhadora. (Kollontai).

Trabalhadores do mundo todo, uni-vos! (Karl Marx).

Nota

[*] Militante do Coletivo Contra Corrente e estudante de Geografia na Universidade Federal da Bahia.

Referências Bibliográficas

KOLLONTAI, Alexandra. O dia da mulher. Marxists. 1913. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/kollontai/1913/mes/dia_mulher.htm>. Acesso em: 08/3/2012.

ZETKIN, Clara. Lenin e o movimento feminista. Marxists. 1920. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/zetkin/1920/mes/lenin.htm>. Acesso em: 06/03/2012.

IASI, Mauro. Olhar o mundo com olhos de mulher? 21, mai.1991. Disponível em: <http://abeef.files.wordpress.com/2010/01/mauro-iasi_feminismo.pdf>. Acesso em: 07/03/2012.

LESSA, Sérgio. Abaixo a família monogâmica. 17, set. 2010. Disponível em: <http://rederelacoeslivres.wordpress.com/2010/09/17/3455/>. Acesso em: 06/03/2012.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado: trabalho relacionado com as investigações L. H. Morgan. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1977.

Ilustrações de Michelangelo Merisi da Caravaggio

6 COMENTÁRIOS

  1. Apesar da suposta crítica ao mecanicismo, essas críticas aos ganhos feministas (direito de voto, etc) sim que me parecem altamente mecanicistas. Quer dizer então que isso foi cedido benevolamente às mulheres pelo Capital? E as mulheres que lutaram por isso? Não há nenhum ganho real nisso?

    Esbravejar contra o reformismo e enaltecer a eterna luta contra o Capital já virou um discurso tão corrente que parece quase não acrescentar nada se não for justamente para apontar caminhos estratégicos novos ou que já estão sendo tomados nalguma parte. E isso me parece que faltou no texto, que fosse uma pequena menção.

  2. Igualitarismo social não tem nada a ver com fim de família monogâmica. Cooperativas de produção e comunas urbanas podem ser tocadas tanto por grupos de putaria anarquista (embora a putaria sempre acabe destruindo os coletivos de luta) quanto por famílias habituais. Aliás, os movimentos sociais mais resistentes possuem em sua base tais famílias, um alicerce existencial para encarar um mundo atroz.

    Em 2012, ver texto citando Kollontai é de doer. Saim do século XIX e dos primeiros anos do século XX. Olhem o hoje, analisem o hoje.

  3. Não vejo problemas em citar quem quer que seja, desde que se trate do hoje. A questão apontada pelas citações da Kollontai já foram resolvidas?

  4. Bianca,
    Tal como está indicado no final do artigo, os quadros reproduzidos são de Caravaggio.

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