No Brasil, um país de maioria negra que usou a imigração branca como política massiva de contenção, a chamada esquerda não poderia ficar imune. Por Pedro Benevides[*]

Entre as forças de oposição estilhaçadas no Brasil predominam grupos sindicais e grandes movimentos sociais, portadores de referências marcadas pelos combates travados desde a Encruzilhada Natalino e do ABC até à greve dos petroleiros encerrada com os tanques de Fernando Henrique Cardoso, linhagem que por sua vez incorpora sobretudo experiências russas, cubanas, nicaraguenses e salvadorenhas. São referências da maior importância, cuja predominância, contudo, parece acarretar a invisibilidade de certas zonas.

Existem outros conjuntos de combates, que raramente são relacionados entre si e com aqueles mencionados acima. Em termos diretos – e simplificados – não conseguimos articular as lutas relacionadas a racismo, patriarcado, crise ambiental e exploração do trabalho. Não é um conjunto fechado, de modo que se poderia afirmar a dificuldade de relacionar o suplício do trabalho doméstico, o encarceramento massivo, as crises econômicas, os transgênicos, a extração de mais-valia, a objetificação do corpo feminino, a favelização, a precarização, os desastres ambientais espetacularizados, o extermínio da juventude, a mortalidade materna etc. etc. Não se trata de simples lista de demandas, nem de audaciosa busca por teoria unificada ou nem mesmo de proposta de frente unida, mas de resgatar e relacionar diferentes referências teóricas e práticas ligadas a uma variedade de zonas de sofrimento mutuamente alheias. Trata-se de buscar outros nexos entre teoria e prática.

* * *

No final dos anos 1960 e início dos 1970 houve uma iniciativa de resistência feminista que ficou conhecida como movimento antiestupro (anti-rape movement) e que se concretizou em centros de crise de estupro (rape crisis centers). Opondo-se à individualização do problema e ao isolamento da agredida, o feminismo concebeu o fenômeno politicamente e criou uma opção coletiva. Sem dúvida, admirável. Havia limites, naturalmente, e um deles aparecia como a ausência das mulheres negras. Elas sofriam a coisa mas não aderiam ao movimento. Lamentável, pensavam sinceramente as feministas.

Angela Davis

Angela Davis (Rape, Racism and the Myth of the Black Rapist. Women, Race, & Class. 1983) vai enxergar outros nexos:

– a denúncia socialmente organizada do estupro oferece chances de proteção institucional às feministas brancas de classe média, que não tomam conhecimento dos casos em que mulheres negras eram estupradas pelo agressor e em seguida violadas pelas instituições, ou seja, eram estupradas pela própria polícia;

– existe uma desproporção racial entre agressores e acusados: a denúncia recai mais sobre homens negros, com a punição seguindo essa mesma seletividade, concretizando-se em prisão, linchamento e castração;

– grandes casos de estupro, com ampla repercussão na mídia, são usados para justificar o reforço do armamento policial, que depois serve para aterrorizar a comunidade negra;

– uma vez que mulheres negras, homens negros e comunidade negra sofrem as piores consequências, o estupro funciona como suborno do homem branco rico para o homem branco pobre, pois a imunidade total do rico pode beneficiar parcialmente o pobre, que se sente beneficiado, e ambos se solidarizam, enquanto mulheres pobres brancas, mulheres pobres negras e feministas de classe média se dividem;

– pior: o homem negro assume a ideia de que ele estupra mais e tende a aceitar a acusação sobre seu semelhante; a feminista branca idem, como no perturbador caso da estudiosa que escreve um célebre livro contra o estupro e reforça nele o mito do estuprador negro; finalmente, a mulher negra tende a aceitar a imagem de que é promíscua;

– finalmente, o estupro, com incentivo racial, é também tática de guerra contra outros povos não-brancos (“revistem as vaginas das vietnamitas com seus pênis”, orientavam os oficiais americanos), executada massivamente pela tropas de homens pobres – brancos e negros – que depois retornam com tal treinamento para a pátria e vão executá-lo sobre as mesmas mulheres que ignoraram o caráter racista da violência sexual.

É fácil concordar com Angela depois que ela escreveu o texto, mas não é em percepções como esta que a esquerda brasileira costuma se instalar. Com referências nada convencionais, Angela percebe outros nexos e expõe a capacidade de o melhor feminismo incorporar o racismo e culpar a mulher negra individualmente como omissa.

Esse problema é nosso. Se pensarmos nas grandes injustiças tornadas visíveis pela iniciativa popular e transformadas pelos movimentos sociais em demandas e bandeiras, e se em seguida pensarmos nas referências e nexos que Angela nos traz, então seremos obrigados a pensar até que ponto nossas táticas e estratégias apontam para soluções e até que ponto recolocam a dominação. Nossas mais caras soluções apareceriam em seu caráter altamente problemático. Angela nos convida a recusar uma demanda tal como ela nos aparece; a enxergar desdobramentos de classe, raça e gênero internos a cada demanda específica. Se entendermos a demanda ou a reivindicação como uma mediação entre o sofrimento e a emancipação, então vislumbramos a possibilidade de que as nossas próprias noções de liberdade e justiça estejam profundamente comprometidas com o racismo, o patriarcado, a exploração do trabalho e a dominação do meio ambiente. O caráter oculto de nossos movimentos viria à tona.

* * *

Como situamos os problemas particulares que ajudam impulsionar movimentos? Como contextualizamos as injustiças pontuais em nossas denúncias? Quais concepções acionamos para ligar parte e todo? E como elaboramos cada um destes pólos?

Há meio século morreu Ronald X. Outro muçulmano ficou paralítico com as balas que também atingiram mais cinco pessoas, várias pelas costas, uma delas com o pênis perfurado. Em abril de 1962 apolícia de Los Angeles abordou membros – todos desarmados – da mesquita 27 da Nação do Islã e abriu fogo. Ronald X foi alvejado à queima-roupa enquanto caminhava em direção à polícia com as mãos para o alto, numa ação que a imprensa classificou de “inflamada troca de tiros”.

Pense você em como nossos movimentos, sindicatos e associações denunciariam o caso e agora leia o trecho do discurso do porta-voz da Nação do Islã:

Se é certo para o povo negro em Angola se defender das atrocidades dos portugueses brancos, se é certo para o povo negro da Argélia se defender das atrocidades dos franceses brancos, se é certo para o povo negro do Congo se defender das atrocidades dos belgas brancos, então é igualmente certo para os negros aqui nos Estados Unidos nos defendermos das atrocidades dos colonialistas americanos brancos. Não deveríamos apontar o dedo para o colonialismo na África ou na América Latina. Somos 20 milhões de negros aqui nos Estados Unidos tão colonizados quanto qualquer povo da Ásia ou da África (Painel com James Farmer e William Worthy – 1° de maio de 1962).

Nos anos 1960 seria possível encontrar um brasileiro de esquerda fazendo um discurso semelhante? Bem, de qual esquerda? Vejamos o livro Imagens da Revolução, coletânea de manifestos de organizações guerrilheiras dissidentes do PCB. Esses documentos indicam a qualidade inegável das avaliações desses grupos, por exemplo, com a lucidez acerca da relação entre movimento de massas e luta armada, num grau quem sabe inédito até então e talvez perdido depois. Cuba e China são os grandes modelos ao longo dos textos, preocupados em combinar luta armada e ação localizada. Outras referências de luta anticolonial aparecem, mas dispersas e sem maiores consequências para a estratégia que se esboça. Assim, um mesmo contexto de lutas era pinçado por um guerrilheiro brasileiro e abrangido por um muçulmano norte-americano. Diferenças como essa precisam ser estranhadas e não anuladas com respostas auto-evidentes.

Em 1963 um grupo dissidente da Nação do Islã cria a Organização da Unidade Afro-Americana e avalia seu potencial assim:

Os recém-despertos povos em todo o mundo suscitam um problema para o que é conhecido como interesses ocidentais, que são o imperialismo, o colonialismo, o racismo e todos estes outros ismos negativos. Assim como as forças externas suscitam uma grave ameaça, eles podem agora ver que as forças internas suscitam uma ameaça ainda maior. Mas as forças internas suscitam uma ameaça ainda maior apenas quando elas tiverem analisado corretamente a situação e souberem quais as chances realmente são. Apenas por advogar uma coalizão de africanos, afro-americanos, árabes e asiáticos que vivem dentro da estrutura [isto é, dentro da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos], isso automaticamente incomodou a França, que é supostamente um dos países mais liberais – ah! – do mundo, e isso os fez expor a sua mão. Idem para a Inglaterra. E eu nem preciso te dizer sobre esse país aqui [Estados Unidos]. Quando você conta o número de pessoas de pele escura no hemisfério ocidental, chegamos provavelmente a mais de 100 milhões de pessoas, considerando que o Brasil tem dois terços de pessoas não brancas, mais Venezuela, Honduras e outros países da América Central, como Cuba e Jamaica, e ainda outros países, inclusive os Estados Unidos e mesmo o Canadá. Essas 100 milhões de pessoas dentro da estrutura de poder têm causado muita preocupação à estrutura de poder. […] A primeira coisa a fazer é unir o nosso povo, não só nos unirmos internamente, mas precisamos nos unir com nossos irmãos e irmãs no exterior. Por isso passei 5 meses no Oriente Médio e na África durante o verão (Organização da Unidade Afro-Americana – OAAU, 14 fev. 1965, em Detroit, Michigan).

O que é o interno e o externo numa elaboração como esta? O interno pode ser um país e o exterior pode estar além da fronteira nacional, mas o interno também poderia ser o continente e a fronteira seria o oceano, ou ainda o interno é o gueto e o externo é a “sociedade”. Eis um tipo de imaginação geográfica-política em que as estruturas racistas e a solidariedade étnica e racial se impõem sobre balizas ortodoxas. Encontraríamos tal imaginação no Brasil? E de qual Brasil estamos falando? Para quem aprendeu a ultrapassar os limites das fronteiras instituídas pelo Estado burguês com noções de “internacionalismo” e “unidade latino-americana”, o discurso acima coloca alguns desafios, inclusive para a ideia de aliança.

Enquanto a ligação entre os acontecimentos mais localizados e as maiores lutas anticoloniais era indispensável para os Panteras Negras, enquanto C. R. L. James (autor de Jacobinos Negros) vai entender a revolução cubana a partir da revolução em São Domingos (depois Haiti), enquanto mesmo a revolução cubana vai enviar armas e soldados para ajudar a defender Moçambique contra a África do Sul e a Etiópia contra a Somália, no Brasil houve uma seleção diferenciada das referências. Aqui, a esquerda se situa de outro modo no mundo. Num país de maioria negra que usou a imigração branca como política massiva de contenção, a chamada esquerda não poderia ficar imune: existe um filtro racial para a seleção de referências revolucionárias, que não podem colocar em questão a liderança branca. Dizia um texto do MTD-RS de 2008:

Quais são os critérios de uma memória seletiva que exalta as lutas estudantis de maio de 1968 e sonega a constituição de um Exército de Libertação Negra em solo norte-americano? Será que conseguimos aceitar e celebrar a luta dos vietnamitas justamente porque o Brasil não possui 75 milhões de descendentes de asiáticos mas sim de negros vivendo em favelas? Até quando vamos subestimar a força de transformação sitiada nas periferias brasileiras? (“Panteras Negras e o desafio da periferia”. Brasil de Fato, n. 276, 12-18 de junho de 2008)

Nossos guerrilheiros não pensavam nisso antes, assim como hoje um lutador checheno pode explodir um aeroporto sem que isso provoque em nós o menor estranhamento sobre o caráter colonialista interno da União Soviética – bem antes de Stalin.

* * *

Temos muito a fazer e debater no esforço de avaliação que tem na atual derrota um ponto de recomeço. Um dos motores desse esforço pode ser o levantamento de referências, nexos e zonas de sofrimento até então ignoradas ou cordialmente desprezadas. Referências que vão muito além – no tempo e no espaço, na história e na geografia – da “realidade brasileira”, da “América Latina”, dos “ciclos de esquerda” e de todos os seus espaços públicos, ainda que tudo isso faça parte da coisa. O foco no PT, necessário até certo ponto, pode funcionar como distração. É grande o potencial de aliança entre as forças de oposição à matriz heterossexual e as forças faveladas de libertação anti-racista. Não sabemos contar a longa história da anulação desse potencial.

[*] Professor do curso de Jornalismo na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Revolução do Haiti

4 COMENTÁRIOS

  1. Adorei a classificação “ex-militante”. Está cheio de ex-militante por aí que não se reconhece como tal e fica, ainda, enchendo e atrapalhando quem está militando.

  2. Bom texto. Obrigada por repensar a ´´dominação´´, que eu chamaria ´´poder´´. Já existem textos bastante interessantes refletindo a relação feminismos e mulheres indígenas, outra importante crítica ao feminismo ´´branco´´. Se interessar, vc pode consultar: http://www.loquesomos.org/index.php?option=com_content&view=article&id=2461%3Afeminismo-zapatista-otra-trinchera-a-favor-de-las-mujeres&catid=44%3Ay-nosotras-ique&Itemid=72&lang=es
    ex-grupo-de-estudo-de-brasília:)

  3. Vagalume, obrigado: eu não conhecia a Sylvia Marcos. Uma vez tive oportunidade de ouvir Rita Segato dizer que bell hooks, angela davis, patricia hill collins são importantes, mas que aqui o problema é muito diferente daquele que se coloca nos EUA. De fato, no RS houve uma importante luta de mulheres, camponesas, descendentes de alemães e italianos sobretudo, mas de várias outras heranças. Em outros estados, a composição étnica e racial seria bem diferente. Isso apenas dentro do Brasil. São forças ou potenciais que às vezes dialogam, mas em geral tenho a impressão de que a distância se impõe. Precisamos de muita iniciativa para ir quebrando barreiras. A OAAU dizia: “precisamos construir novas pontes”.

  4. Pedro,
    Concordo contigo que precisamos estabelecer novos nexos, no sentido de articulação de lutas. Tanto para questões raciais e de gênero quanto para as outras.
    Tentei apontar alguns caminhos para isto em um artigo publicado neste site: http://passapalavra.info/?p=53209
    Pelos caminhos musicais acho que os Racionais propuseram nesta entrevista alguns caminhos que podem ser interessantes também:
    http://www.youtube.com/watch?v=RNW25XJIrFw&feature=plcp
    Acho fundamental pensarmos nisto para a além das formas de “apoio” entre as lutas que temos em prática no Brasil hoje, que se resumem a assinaturas em manifestos de apoio, ou repúdio, sem refletir sobre a real articulação entre as demandas. Um tentativa prática de articulação pode ser lida aqui: http://passapalavra.info/?p=48391

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