Romper o ciclo de eterno (re)começo das lutas e organizações secundaristas exige manter vivas suas experiências anteriores e contemporâneas, relacionar passado, presente e futuro. Por Caio Martins, Leonardo Cordeiro, Luiza Mandetta e Marcelo Hotimsky.

Para nós, no movimento secundarista, parece que estamos sempre começando. Por um lado, começando nossa atuação política; por outro, começando ou retomando do zero a organização de nossos espaços políticos. Boa parte de quem participou de grêmios estudantis teve que se dedicar, primeiro, à sua (re)construção. O ritmo imposto pelo ciclo de três anos do colegial é hostil à formação de organizações estudantis duradouras. É difícil para os mais velhos, que estão deixando a escola e participaram da criação do grêmio, consolidar e transmitir suas experiências às turmas mais novas, o que leva comumente à desestruturação ou ao desaparecimento destas organizações. Em geral, o que sobrevive dos grêmios é só uma vaga lembrança entre os alunos e professores – que vez por outra incentiva uma nova geração a começar de novo.

Grêmios contra o aumento em 2006.

A perda sistemática das experiências e discussões passadas leva à repetição do árduo processo de estruturar um grêmio, que por si só pode ser desgastante o suficiente para desencorajar até os mais empolgados. Isso torna as coisas mais fáceis para uma diretoria escolar contrária à organização dos estudantes: ela poderá impor sempre os mesmos obstáculos, já conhecidos e aprimorados, a esse processo cíclico. Sem referencial, tanto acerca do que já foi feito e do que acontece em outros colégios, quanto de seus direitos garantidos em lei [1], os estudantes têm dificuldade em se defender e continuam cometendo os mesmo erros das gerações anteriores.

Este texto busca, por meio do resgate e registro da história recente de organização e luta de alguns grêmios em São Paulo – ao redor da nossa experiência pessoal na Poligremia até o fim de 2011 –, ajudar no combate a esse ciclo de mobilização-organização-desmobilização-desorganização, característico do movimento secundarista. É preciso perceber que, por trás daquilo que é muitas vezes um eterno começo, existe uma continuação.

Uma década de começos

No fim de 2008 e início de 2009 vivemos em nossas escolas um processo de reestruturação dos grêmios, que haviam se desmanchado nos anos anteriores. A memória das experiências passadas, transmitida pelos estudantes mais velhos, nos forneceu um importante referencial – tanto do que fazer, quanto do que não fazer. A partir desses relatos e de um escasso material escrito que chegou até nós, entramos em contato com um nome sugestivo: “Poligremia”. Ele remetia nossos colegas mais velhos a uma articulação de grêmios que, como mal sabíamos na época, existiu por pelo menos duas vezes ao longo da década de 2000.

A primeira Poligremia de que hoje temos notícia se formou em 2001, quando alunos de colégios particulares de tradição pedagógica crítica se reuniram em uma empreitada breve, que durou menos de um ano, mas deixou importantes marcas nos grêmios envolvidos. A discussão sobre autogestão, que já existia entre os alunos de algumas escolas, influenciou outros e fez com que muitos grêmios adotassem esse modelo de organização, baseado em assembleias abertas e horizontais, que permanece sendo praticado até hoje. O coletivo realizava festas e participou ativamente das mobilizações da Ação Global dos Povos.

Nos últimos meses de 2006, os grêmios daqueles mesmos colégios voltaram a se reunir, ao redor da luta contra o aumento na tarifa de ônibus. Junto ao Movimento Passe Livre (MPL) [2], estudantes da região do Butantã realizaram uma passeata na saída da aula e bloquearam a ponte Eusébio Matoso com cerca de 200 pessoas [3]. A partir dessa reaproximação, formou-se em 2007 uma segunda Poligremia, a “Poligremia Pindorama”, que realizou debates sobre temas como a redução da maioridade penal e a privatização da Vale do Rio Doce (na ocasião do plebiscito popular organizado por sindicatos e movimentos sociais) [4] e o jornal Piolho, que jamais ultrapassou a primeira edição [5]. Novamente a dificuldade dos mais velhos em transmitir sua experiência aos mais novos seria fatal para muitos grêmios, e o coletivo não duraria até o ano seguinte.

Nosso começo

Em 2009, entusiasmados em começar uma Poligremia, nos juntamos com outros estudantes para pensar sobre a possibilidade de articulação entre nossos grêmios, mas não conseguimos estabelecer nada de concreto. A idéia consistia na criação de um espaço de caráter regional que reunisse os grêmios a fim de potencializar a formação de outros e fortalecer os já existentes [6]. Porém, foi só em 2010, quando surgiu a idéia de um festival de curtas-metragens produzidos pelos alunos dos diferentes colégios, que se formou nossa Poligremia – agora com um objetivo prático em torno do qual se mobilizar.

Grêmio Ágora em acampamento do MST.

O I Festival de Curtas Evandro Capivara [7] trouxe ao coletivo um importante acúmulo de experiência, consolidou sua identidade bem-humorada e permitiu a aproximação de novas escolas. Durante o processo de preparação do evento estabelecemos informalmente na Poligremia um funcionamento interno horizontal e participativo, parecido com o de nossos grêmios. Horizontal, porque não havia hierarquia definida e todos podiam participar igualmente das decisões, quase sempre tomadas após as discussões alcançarem o consenso coletivo, de modo que o voto poucas vezes se fez necessário. Participativo, porque todos os estudantes eram convidados a participar, sem necessariamente expressar uma posição fechada de seu grêmio [8]. Isso não desligava os grêmios da Poligremia: o Festival de Curtas foi elaborado, preparado e divulgado também nas reuniões de cada grêmio em cada escola.

Se por um lado fortaleceu e aumentou nosso grupo, o Festival deixou um vazio depois de si. Até então nos reuníamos quase que exclusivamente ao redor da organização desse evento; após o qual nos vimos sem objetivos concretos. Deparamo-nos com a necessidade de definir o que era e o que queria, em termos de metas e bandeiras, a Poligremia. Alguns falaram em orientação anticapitalista, causando estranhamento em outros, que propuseram a bandeira da ecologia; surgiu, como mediação, a idéia de apoio à luta pela terra. Desse debate inicialmente distante do nosso cotidiano, foram se delineando eixos mais concretos: formação de grêmios, discussão sobre o modelo de ensino, participação em lutas urbanas e “farra”. Essas diretrizes, porém, se traduziram muito pouco em ações práticas. Em 2010 fizemos atividades sobre grêmio com estudantes do Educandário Dom Duarte e um sarau de rua no Largo do Café [9], além de participar da visita ao acampamento do MST Santa Maria da Conquista, em Itapetininga, organizada pelo Grêmio Ágora.

Luta contra o aumento

No início de 2011 nosso vazio de identidade seria preenchido temporariamente por uma luta política: em janeiro o Movimento Passe Livre lançou um grande chamado à mobilização contra o preço da tarifa de ônibus, que então subia para três reais. Era o início da luta contra o aumento daquele ano, que se estenderia por três meses e levaria às ruas milhares de pessoas, sobretudo (mas não apenas) jovens e estudantes, enfrentando forte repressão policial e colocando em questão o modelo de transporte coletivo da cidade. Mesmo sem reuniões durante o período de férias, não ficamos de fora desse processo. Grande parte de nós estava, em maior ou menor grau, envolvido com o movimento; alguns desde as primeiras manifestações, tímidas, em novembro de 2010; outros até frequentavam as reuniões do MPL. A partir de adesões individuais, a Poligremia aderiu coletivamente a uma pauta de certa forma externa, que ganhava visibilidade; nela encontrou um forte, mas efêmero, elemento de identidade e unidade. Não era uma luta externa à medida que dizia respeito em algum grau a uma realidade cotidiana dos estudantes (a tarifa do ônibus), mas sim à medida que não nascia das discussões dos grêmios. Colocada diretamente nas reuniões da Poligremia, era uma pauta mais ampla que esta e centralizada por outro grupo.

No cerne da mobilização estavam os “grandes atos contra o aumento”, chamados pelo MPL, que aconteciam toda quinta-feira na região central da cidade, reunindo em média duas mil pessoas. Era notável a presença de partidos políticos e entidades estudantis tradicionais, invariavelmente desfilando com suas bandeiras, o que nos parecia mais uma tentativa de autopromoção do que apoio à causa.

Com o retorno às aulas, em fevereiro, o aumento era o tema inevitável da nossa primeira reunião: parecia claro, para quase todos nós, que a Poligremia deveria participar ativamente das mobilizações. E participar não podia significar meramente compor os atos centrais, com ou sem bandeira (nem tínhamos uma bandeira). Era preciso expandir a luta pela cidade. Assim, decidimos realizar uma série de pequenas manifestações descentralizadas nos bairros das nossas escolas, de forma a divulgar as passeatas do Centro e difundir o debate [10].

Policial fotografa manifestantes.

Nosso primeiro ato aconteceu em Pinheiros, aproveitando a saída da aula da ETEC [escola técnica estadual] Guaracy Silveira e do Santa Cruz. Com cerca de sessenta pessoas e embalados por uma bateria, interrompemos, sentados, o fluxo de carros no cruzamento entre a Faria Lima e a Rebouças durante vinte minutos, seguindo para as plataformas do corredor de ônibus, onde fizemos “catracaços” (abertura à força das portas traseiras dos ônibus) e um jogral [11]. Na assembléia de encerramento marcamos outro ato para dali a uma semana no mesmo local, porém este seria inviabilizado por uma tempestade. Passada mais uma semana, realizamos nossa segunda manifestação, desta vez na Lapa, onde invadimos o terminal duas vezes, driblando a polícia e os seguranças da SPTrans [empresa muncipal que gerencia o transporte] [12]. O terceiro ato partiu da ETESP [Escola Técnica São Paulo] embaixo de chuva e bloqueou a Av. Tiradentes até o metrô Luz.

A quarta passeata se concentrou na saída do Oswald de Andrade e foi também uma das primeiras ações do recém-formado grêmio deste colégio. Nela, um garoto riscou a tinta de uma viatura com uma chave e quase foi detido pelos policiais que nos acompanhavam. Ao final, ocupamos o Terminal Vila Madalena, onde fizemos um jogral e, zombando de um capitão da Polícia Militar que tentava fotografar os rostos de possíveis “lideranças”, posamos em conjunto para ele, gritando “põe no Facebook!” [13]. Na semana seguinte fizemos nosso último ato, na Av. Rebouças, no qual policiais sem identificação nos reprimiram usando spray de pimenta [14].

Se em relação às marchas centrais os atos da Poligremia tinham, por um lado, impacto político reduzido devido à quantidade consideravelmente menor de pessoas, por outro, se faziam notar por suas ações mais radicais, possibilitadas justamente por seu tamanho. A pequena atenção dispendida pela polícia ao controle e repressão das nossas passeatas e a ausência de disputas políticas internas permitia a participação direta dos manifestantes como protagonistas de todas as ações e decisões, constituindo um espaço coeso e divertido.

O envolvimento com esta luta – de certa forma externa – trouxe um importante acúmulo de experiência e gerou um crescimento considerável do grupo, que talvez tenha aqui atingido seu auge. Em artigo publicado na época, o Passa Palavra mencionou nossas ações e observou “que, ao mesmo tempo que a organização dos estudantes fortalece a luta contra o aumento, a existência de uma luta concreta potencializou esta organização, aumentando o número de grêmios participantes e o número de envolvidos dentro do grêmio de cada escola” [15]. Ao longo da mobilização, a Poligremia expandiu sua rede a dez grêmios, sendo estes metade de colégios particulares e metade de escolas técnicas estaduais (ETECs).

Depois da luta contra o aumento: entre o amadurecimento e o descaminho

Panfleto sobre o ato da greve das ETECs.

A entrada de mais ETECs na Poligremia trouxe à discussão uma série de demandas próprias da realidade dessas escolas. O contato entre seus grêmios permitiu a identificação de problemas em comum e abriu a possibilidade de conexão entre reivindicações e lutas antes isoladas. Possibilidade, porém, que nunca chegou a se concretizar plenamente – a falta de livros didáticos, por exemplo, motivou uma carta conjunta ao Centro Paula Souza [16], mas nada além disso. A greve dos professores em maio de 2011 gerou uma aproximação maior entre os estudantes, e juntos organizamos, logo após uma passeata grevista, um debate sobre a situação das ETECs [17]. Mas a discussão ali iniciada não teve continuidade. Somente em novembro os colégios técnicos voltaram a se articular entre si, para planejar o boicote à prova do SARESP [18], luta que acontece anualmente desde 2009.

Outro fator que dificultou a organização entre os grêmios das escolas técnicas foi a atuação do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), que, por meio da ANEL[19], enviava militantes universitários para panfletar e participar de reuniões na tentativa de reconstruir uma base secundarista nestes colégios. Voltada para a construção interna da própria entidade e orientada por uma lógica disputista, essa prática entravava o desenvolvimento autônomo dos grêmios e de suas lutas específicas, gerando desgaste e cisões entre os alunos.

O contato com organizações partidárias, que já vínhamos travando desde a luta contra o aumento, nos mostrou o contraste do que fazíamos e pensávamos com a prática e o discurso destes grupos. Pudemos assim, por contraste, entender e formular mais claramente o nosso jeito de fazer política. Sentimos a necessidade de debatê-lo e dar-lhe uma forma mais própria, para além da definição por oposição. Disso surgiu a proposta de uma Carta de Começos, documento que definia nossa estrutura interna (autônoma, apartidária, horizontal e participativa), nossa forma de ação (direta e irreverente), nossa concepção de grêmio (livre e aberto) e nossa perspectiva de transformação social (poder popular ou, em outras palavras, a nossa prática autogestionária como construção da autogestão de toda sociedade) [20].

I Fórum na ETEC Basilides de Godoy

O I Fórum da Poligremia foi organizado em meio à tentativa de consolidação da estrutura e da identidade do grupo, acreditando que era importante, neste processo, abrir espaço para a participação de mais estudantes das nossas próprias escolas e de outras também. O evento aconteceu na ETEC Basilides de Godoy e reuniu 70 pessoas, de cerca de 20 colégios. Durante a manhã, apresentamos e debatemos a Carta de Começos; à tarde nos dividimos em cinco rodas de discussão temáticas, próximas dos antigos eixos pensados em 2010: grêmio, escola, cidade, arte e Direitos da Criança e do Adolescente (DCAs); ao final, socializamos os debates numa plenária de encerramento. Ao longo de todo dia aconteceram apresentações musicais, partidas de futebol e uma exposição de fotos da luta contra o aumento, pois considerávamos que a arte e a festividade não se dissociavam da nossa prática política[21].

A preparação do evento foi muito trabalhosa. Jamais havíamos tentado algo que necessitasse tamanha estrutura e organização. Diferentemente de um festival de curtas, em que tudo corre bem se as pessoas simplesmente assistem passivamente aos filmes, o Fórum dependia da participação ativa de todos que estavam presentes. Em outras palavras, as discussões só aconteceram porque as pessoas trouxeram suas questões, ideias e experiências – não seríamos capazes de falar sozinhos, tampouco pretendíamos fazê-lo.

Questões até então pouco discutidas surgiram durante a apresentação da Carta de Começos, que inesperadamente não foi aprovada. Não porque se divergia no que julgávamos serem os pontos centrais, mas pela indefinição sobre a relação entre os grêmios e a Poligremia. A falta de clareza do documento sobre o assunto revela o quanto estava confuso para nós este problema elementar, que deveria estar na base de tudo o mais. Tal relação era abarcada de forma obscura pela idéia de funcionamento “participativo”, que, para a maioria de nós, entretanto, parecia referir-se apenas individualmente aos estudantes. Assim, pareceu-nos que o modelo que propúnhamos apontava para uma “Poligremia de pessoas” e não de grêmios, pois a ligação com estes envolveria representação e ameaçaria a participação daquelas. Todavia, mesmo que na época contrapuséssemos teoricamente a participação (dos alunos) a qualquer representação dos grêmios naquele espaço, como excludentes entre si, nossa prática não desligava grêmios e Poligremia. Ao contrário: ao invés de uma representação unívoca, garantia pluralidade na relação entre eles.

Por outro lado, se mal definido, o modelo participativo é perigoso: numa espécie de burocratização às avessas, pode facilmente afastar os grêmios da Poligremia e fortalecer elites informais. A formalização das estruturas de poder – neste caso principalmente o esclarecimento da relação entre as organizações nas escolas e o coletivo – é necessária “para que todas as pessoas tenham a oportunidade de se envolver num dado grupo e participar de suas atividades” [22], evitando uma concentração de autoridade que esvazia o espaço de sentido e, em seguida, de pessoas. Embora tenha sido levemente realizado (a partir do artigo de Jo Freeman), o debate acerca da tirania das organizações sem estrutura foi continuamente adiado, enquanto ela se tornava um problema cada vez mais grave.

I Fórum: plenária de encerramento.

Após o Fórum a falta de organização e de estrutura se fez sentir. Tivemos muita dificuldade em acolher as novas pessoas e grêmios. Havia tanta gente que mal conseguíamos nos escutar, o que tornava as reuniões repetitivas, desgastantes e pouco encaminhativas. Muitas pessoas simplesmente deixaram de vir às reuniões, ao passo que outras tantas novas apareciam, mas era difícil saber se permaneceriam e com que grau de comprometimento. Com um fluxo irregular de pessoas não havia qualquer continuidade de ação e discussão: os debates eram sempre recomeçados e as deliberações não eram cumpridas, prejudicando fortemente a consolidação de nossa identidade e dos nossos princípios.

Isso não significou, porém, inércia total. Nesse período, organizamos o II Festival de Curtas Evandro Capivara, cuja preparação foi muito mais simples do que a da primeira edição, pois usamos do conhecimento adquirido e da estrutura já estabelecida no ano anterior. A realização do evento, agora com muito mais grêmios participantes, apontava para a instauração de uma tradição, indicando alguma continuidade entre nossos dois anos de atividades – período longo, se comparado à instabilidade das Poligremias anteriores.

Em meio à inconstância que reinava nas reuniões, agravou-se a centralização das tarefas por aqueles que frequentavam regularmente a Poligremia ou possuíam maior experiência, o que implicava em concentração de poder. Possibilitadas pela falta de estrutura, sobressaíram ainda mais algumas lideranças informais. (Cabe observar que tais líderes eram principalmente meninos [23] dos primeiros grêmios da Poligremia, de colégios particulares.) A situação piorou no início do segundo semestre e a iminência da saída da geração mais velha tornou urgente sua discussão. Aqueles que concentravam responsabilidades, prestes a deixar a escola, encontravam grande dificuldade em transferir aos outros sua experiência.

Por isso, o caráter do segundo e do terceiro fórum foi diferente do primeiro [24]. Identificando um desnível no debate teórico e na experiência, direcionamos esses eventos para formação política e elaboração de projetos de curto prazo, que levariam, segundo pensávamos, ao maior protagonismo dos mais novos. Exibimos os filmes Brad: uma noite mais nas barricadas [25] e Rebelião Pinguina [26], evocando experiências práticas, mas um tanto distantes, de luta (do movimento autônomo altermundista e do movimento secundarista chileno), numa tentativa de provocar mobilização. Os dois fóruns não foram, entretanto, suficientes para aplacar a irregularidade e falta de compromisso que se abatiam sobre a Poligremia e, assim, se perderam muitas ideias ali discutidas, que, embora interessantes, pouco tinham a ver com as demandas cotidianas dos grêmios.

Grêmio: organização política de crianças e adolescentes

Ainda no segundo semestre de 2011 estavam marcadas as etapas regional e municipal das Conferências dos Direitos da Criança e do Adolescente. Desde o princípio estivemos relacionados a essas conferências – foi este um dos espaços em que a nossa Poligremia surgiu como idéia, a partir da articulação de alguns estudantes e grêmios na etapa municipal de 2009. Nas Conferências foi possível uma aproximação entre grêmios de escolas particulares e públicas muito maior do que a atingida pelas Poligremias anteriores (ainda que o coletivo de 2007 tenha se envolvido na discussão dos DCAs).

O debate ao redor dos Direitos da Criança e do Adolescente e de seu Estatuto, que envolve temas importantes como o adultocentrismo e a participação política infanto-juvenil, estreitamente relacionados à organização dos estudantes, é historicamente menosprezado pelo movimento estudantil. Pouco apropriado pelas entidades estudantis oficiais, esta discussão e seus espaços são parcialmente tomados pelas práticas igualmente oportunistas e institucionalizadas de algumas ONGs e de uma parcela da burocracia estatal do município, composta de conselheiros ligados a vereadores e ao prefeito.

Ainda que alguns indivíduos e grêmios tivessem participação ativa na realização das conferências de Pinheiros, Butantã e Pirituba, o envolvimento da Poligremia como um todo sempre patinou. Ele atingiu seu auge no fim do segundo semestre de 2011, quando, junto a outras entidades, nos organizamos contra o descaso da prefeitura na preparação das etapas marcadas para o fim do ano. A politicagem, as disputas partidárias e os interesses escusos no interior do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) levaram a adiamentos do cronograma oficial e impediram que ocorressem oito dos encontros regionais por falta de estrutura básica como transporte e alimentação, esvaziando completamente a etapa municipal.

Após exigir em vão o recomeço do processo de organização das conferências, membros da Poligremia decidiram ocupar o auditório em uma das reuniões abertas do CMDCA. Em meio à desmobilização do final do ano, a ocupação foi pouco planejada e extremamente desastrada; não durou mais do que algumas horas. Mas a ação direta, inesperada naquele ambiente, causou rebuliço entre os conselheiros – uns acionaram a Guarda Civil para a repressão – e conseguimos que fosse entregue uma carta de reivindicações ao Secretário de Participação e Parceria. Apesar dos esforços, a luta se desarticulou no início de 2012 e a Conferência se perdeu “em meio a interesses privados e à burocracia estatal, terminando por ignorar e excluir aqueles para os quais deveria estar voltada” [27].

A luta por um sentido: ruptura do ciclo

Luta na E.E. Vieira de Moraes em 2009.

Desde seu início, nossa Poligremia veio acompanhada da ideia de realizar atividades para a formação de grêmios em outras escolas, mas tivemos poucas oportunidades de colocar em prática esse projeto [28]. A mais significativa aconteceu no segundo semestre de 2011, quando entramos em contato com um grupo de meninas da Escola Estadual José Vieira de Moraes, colégio no extremo sul de São Paulo que carrega um importante histórico de lutas. Em 2009 os alunos e professores haviam derrubado a diretora após uma série de protestos contra medidas autoritárias; não tendo conseguido formar um grêmio ao final do processo, a mobilização se interrompera e a experiência vinha aos poucos se perdendo [29].

Em 2011 a escola vivia um novo contexto autoritário, que culminou talvez em novembro, com uma intervenção da Polícia Militar para perseguir alunos que se atrasaram [30]. Iniciava-se um novo momento de organização entre os alunos, que os levou a reestabelecer algum contato com a memória do movimento de dois anos antes. A diretoria tratou de colocar o máximo de obstáculos burocráticos possível à iniciativa de formar um grêmio que ganhava força entre os estudantes. Em busca de apoio e referência, um grupo deles se aproximou da Poligremia.

Nas dificuldades enfrentadas pelos alunos do Vieira, reconhecemos significativos aspectos comuns às nossas experiências. As táticas de desmobilização usadas contra eles guardavam semelhança com a experiência vivida por outros grêmios. Por exemplo: exigência de um estatuto e de processo eleitoral, imposição de um modelo organizacional (fechado e hierarquizado), limitação do campo de ação, fabricação de divisão entre os alunos, entravamento e burocratização da relação entre o grêmio e a escola, personalização e perseguição individual. A identificação de obstáculos análogos em diferentes processos de organização dos estudantes tornou para nós mais clara a importância e a urgência da ligação entre tais experiências. A semelhança entre suas dificuldades e seus erros permite o traçado de um sentido comum, para o qual apontam as soluções diversas das experiências bem sucedidas.

Percebemos que, para a formação de um grêmio e sua continuidade, pouco vale uma cartilha pré-fabricada com um passo-a-passo abstrato; muito mais necessária é a conexão com outras experiências de mesmo sentido, do presente e do passado – em outras palavras, é preciso se apoderar da própria história. O caso do Vieira é talvez por isso o mais emblemático: em 2011 brotou aos poucos, junto com a mobilização dos alunos, a necessidade de entrar em contato com as vivências de outros estudantes em seus grêmios e também de resgatar a memória do movimento ocorrido há apenas dois anos em seu próprio colégio.

Romper o ciclo de eterno (re)começo característico das lutas e organizações secundaristas, tanto dentro quanto fora das escolas, exige manter vivas suas experiências anteriores e contemporâneas, relacionar passado, presente e futuro do movimento. Isto é, enxergá-las como parte de uma mesma história, traçando seu sentido histórico. Sem continuidade formulada, as ações ficam sem sentido e é quase impossível construir uma identidade coletiva [31].

A busca por identidade dentro de si: uma Poligremia de grêmios

Ora, a Poligremia – união do latim Poli- ao português grêmios – deve, por definição, procurar o ponto de convergência, o sentido comum entre as experiências destas organizações. Mas estabelecer a relação entre elas não é uma tarefa tão clara nem tão simples e é fácil não notar o quão absurdo é buscar fora da experiência dos grêmios um sentido para sua unidade. Desta maneira, a Poligremia se perde numa ausência de identidade, que retorna ciclicamente em momentos de refluxo e desmobilização.

Este vácuo de identidade foi preenchido no início de 2011 pelas mobilizações contra o aumento. O envolvimento com uma luta mais ampla e a princípio externa à Poligremia proporcionou temporariamente a finalidade que falta a suas ações. Contudo, tão rapidamente quanto foi preenchido, o incômodo vazio voltou nos meses seguintes, perdurando pelo resto do ano. O problema foi sempre discutido às pressas, informalmente e, assim, combatido às cegas, sem que nos ficasse claro do que se tratava. Interpretávamos equivocadamente a baixa participação dos mais novos, que de forma cada vez mais certa ameaçava a continuidade da Poligremia no ano seguinte, como uma questão de falta de formação. Porém, não era tanto o contato com uma teoria abstrata ou com lutas políticas distantes que faltava, mas um olhar voltado aos próprios grêmios e a alguma direção para qual convergissem suas experiências.

É significativo, entretanto, que a mobilização dos estudantes ao redor dos protestos contra o aumento tenha sido feita também dentro das escolas, a partir dos grêmios: isso constituiu um importante contraponto à exterioridade desta luta, no qual se fundou o crescimento do coletivo neste período. Em 2012 o envolvimento com uma pauta externa apareceu novamente como possível solução para o vácuo de identidade da Poligremia, então estagnada, mas mostrou-se ainda menos efetivo.

Cinedebate “Brasil Militar” em 2012.

A luta por memória, verdade e justiça em relação à Ditadura Civil-Militar ganhou visibilidade nacional no início deste ano, e na sua esteira se destacou o Levante Popular da Juventude, organização ligada à Consulta Popular [32]. Depois da participação de estudantes em escrachos deste e de outros grupos contra torturadores, o tema surgiu nas reuniões da Poligremia e, com alguma resistência interna, levou à organização de um cinedebate em maio. Todavia, a distância entre esta bandeira e a realidade das escolas parece ter contribuído para aumentar a distância entre os grêmios e o coletivo. Ele parece ter perdido o sentido para eles ao deixar de buscar neles seu sentido.

A (não-)história da Poligremia sempre se deu ao redor de pautas externas temporárias: em 2001 e 2006 estas foram, respectivamente, a Ação Global dos Povos e outra luta contra o aumento. Elas forneceram, com suas lutas concretas, um sentido – alheio e provisório – ao grupo. O grande desafio é, entretanto, buscar lutas concretas nos grêmios, apropriar-se de nossa própria experiência. Sem uma relação definida com os grêmios, a Poligremia será sempre um grupo reduzido que tenta adivinhar as demandas dos demais estudantes ou impor projetos de seu próprio interesse. Será sempre comandada informalmente pelas idéias de uma turma de amigos ou por um grupo que participa de outra organização, maior e mais estruturada, e que partilha, assim, de concepções políticas comuns [33].

Já eram evidentes, na discussão levantada com a Carta de Começos, mas interrompida, os problemas mal resolvidos da relação confusa entre os grêmios e a Poligremia [34]. Sem se ver como espaço de encontro das lutas dos grêmios, mas apenas como lugar de reuniões periódicas de seus membros, ela vai na contramão de qualquer possibilidade de construção de identidade e continuidade. Seu vínculo com os grêmios afrouxa-se gradualmente: ela esvazia-se a si mesma em direção a uma Poligremia sem grêmios (!). Ela deixa de pressupor, enfim, a organização dos estudantes dentro das escolas – justamente aquilo que sempre definiu a participação deles neste espaço mais amplo – e se torna, no máximo, um grupo de amigos, um grupo de formação política, ou pior, um ambiente convidativo para juventudes partidárias, mas não um coletivo de grêmios.

Em 2010 participaram ativamente da Poligremia (por ordem de ingresso): Grêmio Ágora (Escola da Vila), Grêmio Livre do Santa Cruz, Grêmio Pão de Milho (Equipe), Grêmio Drão (Vera Cruz), Grêmio .Com (Santa Clara) e Grêmio Epos (ETEC Basilides de Godoy). Ao longo de 2011 somaram-se: Grêmio da ETEC Guaracy Silveira, Grêmio Livre Bertold Brecht (ETESP), Grêmio Caféh (Oswald de Andrade), Grêmio Vanguarda (ETEC Albert Einstein), Grêmio do Ítaca, o grupo pró-grêmio da EE José Vieira de Moraes, Grêmio do SESI Vila Leopoldina e o Grêmio Ketsogou (ETEC Takashi Morita). Em menor grau, estiveram próximos naquele ano: Grêmio da ETEC Antônio Prado (de Campinas), Grêmio da Móbile, Grêmio da EE Mauro de Oliveira, Grêmio Gênese (Santa Maria), Grêmio do Bandeirantes e alunos não organizados do Instituto Federal (antigo CEFET).

Notas

[1] A organização política dos estudantes dentro das escolas é garantida por lei: http://gremiolivre.wordpress.com/about/leis/

[2] O MPL é um movimento social autônomo, apartidário e horizontal que luta por um transporte verdadeiramente público, sem tarifa e sem catraca. É organizado a partir de coletivos municipais independentes.

[3] Fotos do ato em: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2006/11/367174.shtml

[4] Convocatória para o evento publicada no site do Colégio Equipe na época: http://www.colegioequipe.g12.br/agora/imprime.cfmid_obj=4032&url=//index.cfm&id_doc=1743&oridoc=1742&imprimir=1

[5] O jornal Piolho: não sai da sua cabeça pode ser acessado em: http://issuu.com/yannvadaru/docs/jornalpiolho

[6] Um documento elaborado pelo Grêmio Ágora em 2009, esboçando propostas para a Poligremia, pode ser acessado em: https://docs.google.com/open?id=0B4rxmBvNXJ7CYWUzNzk1MWEtNDljNC00MDQ3LWFhMDYtMWY5M2I4M2FjOGU0.

[7] O nome do festival é uma homenagem a Evandro Capivara, importante e esquecido cineasta brasileiro investigado em documentário não autorizado (http://youtu.be/AuNXL5gfILw). Mais informações em http://evandrocapivara.blogspot.com/. Cartazes dos dois festivais: https://docs.google.com/open?id=0ByGeEL7VvSpmX3VXM0lLYlVteXM.

[8] Nessa época foi discutida a possibilidade de uma estrutura em rede para a Poligremia, com base no texto https://docs.google.com/open?id=0B4rxmBvNXJ7CSzNQNl9YRTU2Nk0.

[9] Cartaz do sarau de novembro de 2010: https://docs.google.com/open?id=0ByGeEL7VvSpmdGg4VXA0Mzk3QXM

[10] Panfletos distribuídos nos atos regionais da Poligremia: Panfletos e cartazes dos atos contra o aumento: https://docs.google.com/open?id=0ByGeEL7VvSpmNGVpY3JvX2xOaGM.

[11] Reportagem sobre o primeiro ato em Pinheiros: http://tvuol.uol.com.br/assistir.htm?video=estudantes-protestam-contra-aumento-de-passagens-em-sp-0402993060D8991327

[12] Reportagem sobre o ato na Lapa: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2011/02/487178.shtml.

[13] Reportagem sobre o ato que saiu do Oswald: http://www.redebrasilatual.com.br/blog/megafone/estudantes-protestam-contra-o-aumento-do-onibus-em-sao-paulo. A fotografia tirada pelo policial e o jogral final foram registrados em: http://prod.midiaindependente.org/pt/blue/2011/03/488443.shtml e http://youtu.be/xC6k-7-h9Xo.

[14] Há um breve relato sobre o segundo ato de Pinheiros em: http://passapalavra.info/?p=37994

[15] “Para onde vai a luta contra o aumento?”. Passa Palavra, 08 mar. 2011. Disponível em: http://passapalavra.info/?p=37202

[16] O Centro Paula Souza é a autarquia que administra as Escolas Técnicas Estaduais (ETECs) e as Faculdades de Tecnologia do estado de São Paulo.

[17] Frente e verso do panfleto da Poligremia que convidava para o ato pela greve dos professores: https://docs.google.com/folder/d/0ByGeEL7VvSpmVnQyNGM5RjBRc1k/edit?pli=1

[18] O SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) é uma prova aplicada aos estudantes da rede estadual, que busca avaliar a qualidade do ensino e define bonificações a diretores, professores e funcionários das escolas. O texto de um panfleto pelo boicote à prova, redigido em 2011, pode ser acessado em: https://docs.google.com/open?id=0B4rxmBvNXJ7CMDJjNGQ2NWQtNWE5NC00Njc5LTlmOTAtMzgzNThhZGJmZDZi.

[19] ANEL, “Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre”, é uma entidade estudantil dominada pelo PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) que disputa espaços com a UNE (União Nacional dos Estudantes), esta dominada, por sua vez, pela UJS (União da Juventude Socialista), um braço do PC do B (Partido Comunista do Brasil)..

[20] Carta de Começos está disponível em: https://docs.google.com/open?id=0B4rxmBvNXJ7CMDQ4ODdjZTYtY2EyNS00MWE0LTk1NWYtYTRjODQ3ZGEyY2Zj.

[21] O panfleto e a carta-convite aos grêmios do I Fórum podem ser acessados respectivamente em: https://docs.google.com/open?id=0ByGeEL7VvSpmTGRieVUtNVNyS28 e https://docs.google.com/file/d/0B4rxmBvNXJ7COGVkMTRkNGMtOWE0Zi00ODBhLThlMTEtMzViZGJiYzM5NWU1/edit.

[22] FREEMAN, Jo. A tirania das organizações sem estrutura. 1970. Trad.: Centro de Mídia Independente. Disponível em: http://www.nodo50.org/insurgentes/textos/autonomia/21tirania.htm.

[23] Parece-nos sempre ter faltado uma verdadeira discussão de gênero na Poligremia.

[24] O II Fórum foi registrado em vídeo: http://vimeo.com/30396157

[25] O documentário Brad: uma noite mais nas barricadas foi produzido pelo Centro de Mídia Independente (CMI) e relata a vida de Brad Will, ativista norte-americano que participou das lutas da Ação Global dos Povos e morreu assassinado por paramilitares durante a rebelião popular de Oaxaca (México) em 2006. Pode ser assistido em: http://vimeo.com/1983128.

[26] A Rebelião Pinguina é um documentário de 2007 dirigido por Carlos Pronzato, que apresenta a luta do movimento estudantil secundarista chileno por educação pública gratuita em 2006. Pode ser assistido em: http://youtu.be/tetACHaxxJU.

[27] “Desrespeito ao ECA nas Conferências Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente”. Portal Aprendiz, 13 jan. 2012. Disponível em: http://portal.aprendiz.uol.com.br/2012/01/13/desrespeito-ao-eca-nas-conferencias-municipais-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente/. (Texto publicado no portal do Projeto Aprendiz sobre as conferências em 2012 e a posição da Poligremia).

[28] Além das atividades voltadas para formação de grêmio em 2010, participamos de uma mesa sobre “Educação, Arte e Política” no Festival Bairro-Escola do M’Boi Mirim, organizado pela Associação Cidade Escola Aprendiz, com estudantes da região (reportagem sobre o evento: http://www.mboi.agenciacomunitaria.org.br/2011/11/16/apresentacoes-culturais-encerram-o-festival-bairro-escola-mboi-mirim/).

[29] A luta no Vieira em 2009 está registrada em um blog criado pelos alunos na época http://revolucaoeducacional.blogspot.com. Há dois artigos publicados no Passa Palavra sobre o tema: http://passapalavra.info/?p=15192 e http://passapalavra.info/?p=38402.

[30] O que se passou foi mais ou menos isso: http://passapalavra.info/?p=53845.

[31] A procura de um sentido histórico na experiência do movimento secundarista se aproxima, talvez, da função da teoria revolucionária para Castoriadis: “formular explicitamente, em cada oportunidade, o sentido do empreendimento revolucionário e da luta dos operários; […] manter viva a relação entre o passado e o futuro do movimento.” (CASTORIADIS, Cornelius. A experiência do movimento operário. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.179).

[32] Recém-articulado a nível nacional, o Levante Popular da Juventude é uma organização de juventude da Consulta Popular, um partido político não-eleitoral, de concepção leninista, surgido a partir do PT, com o qual mantém relativa proximidade. O Levante não é, entretanto, o único grupo que realizou escrachos na luta por verdade, memória e justiça. Desde antes, por exemplo, já se articulava em São Paulo a Frente de Esculacho Popular, formada por militantes independentes e grupos da extrema-esquerda.

[33] Neste sentido é útil a reflexão de Jo Freeman (op.cit.): “Muitas [feministas] se voltam para outras organizações políticas para dar-lhes o tipo de atividade estruturada e eficaz que elas não conseguiram encontrar no movimento das mulheres. Dessa forma, essas organizações políticas, que vêm a liberação das mulheres como apenas uma questão entre outras, consideram o movimento de liberação um vasto manancial para o recrutamento de novos membros. Essas organizações não precisam se “infiltrar” (embora isso não exclua que o façam). […] Aquelas mulheres que entram em outras organizações políticas e permanecem no movimento de liberação das mulheres ou que entram no movimento de liberação e permanecem em outras organizações políticas tornam-se, por sua vez, pontos de apoio para novas estruturas informais. […] Já que essas mulheres partilham valores, idéias e orientações políticas comuns, elas também se tornam elites irresponsáveis, não escolhidas, não planejadas e informais – pretendam sê-las ou não. Uma vez que o movimento como um todo é tão inestruturado quanto a maioria dos grupos que o constitui, ele é igualmente suscetível à influência indireta de outras organizações. […] Dessa forma, seus membros se tornam as tropas sob a liderança das organizações estruturadas. Eles não têm sequer os meios de decidir quais devem ser as prioridades.” A sedução exercida pelas organizações políticas bem estruturadas é muito bem discutida no artigo Guarda-chuvas políticos (http://passapalavra.info/?p=29821.).

[34] Ainda que carecesse de formalização, esta relação parece ter se concretizado com mais intensidade na realização dos festivais de curtas, na breve articulação das ETECs após a luta contra aumento de 2011 e talvez na participação dos grêmios nas Conferências dos DCAs. Foram esboços de continuidade, de conexão de experiências, momentos nos quais a Poligremia era menos uma entidade separada e mais um espaço de articulação. Essa ideia da Poligremia como um “lugar de encontro dos grêmios” poderia ganhar força, por exemplo, com a simples instituição de um momento de informes sobre as atividades, as discussões e os problemas de cada grêmio no início de cada reunião da Poligremia.

Fotografias de Douglas Belome, Luiza Mandetta e Verônica Rosa

8 COMENTÁRIOS

  1. Fundamental a busca pela história e seu registro, passado e presente construindo o futuro. Senti falta das reivindicações que poderiam dar origem a lutas, provenientes dos próprios estudantes – só apareceram as questões do material didático e da prova centralizada (SARESP), ambas no contexto das escolas públicas (técnicas). Sem um motivo para se reunir e lutar, o debate se esvazia em torno às formas de organização, não?

  2. Antes de mais nada, quero parabenizar os autores e a autora pelo belíssimo texto! Além de fazer um relato muito interessante das experiências por vocês vividas, o artigo coloca alguns problemas importantes que estimulam nossa reflexão.

    Creio que muitas destas dificuldades/debilidades vividas pela Poligremia são comuns a outros grupos e espaços de militância. Eu mesmo vivi muitas delas desde que comecei a me envolver mais ativamente com a militância social e vi no texto muitos dilemas que já atravessaram essa minha atuação política. Para além dos problemas gerados pela falta de organização e de estrutura, gostaria de tentar contribuir com o debate a partir da experiência que tenho acompanhado de outro modelo organizativo pautado na horizontalidade e na democracia direta diferente da organização em forma de redes: o federalismo.

    Minha impressão é de que a maior parte dos coletivos e movimentos autônomos dos anos 2000 pautou muito sua organização neste formato de redes, bastante inspirados no modelo da AGP. Tenho a opinião de que este modelo de redes possui diversos problemas, boa parte deles descritos no Balanço Crítico da AGP publicado pelo Felipe Corrêa aqui no Passa Palavra (a primeira parte desta série pode ser lida aqui: http://passapalavra.info/?p=42773). Constatados os limites deste modelo de organização, devemos então pensar em alternativas a ele.

    Quando falo em federalismo, estou falando em um tipo de organização horizontal, com democracia direta, reforço da organização pela base e com mecanismos de delegação (delegação entendida como diferente da representação, com mandatos revogáveis e atuação pautada pelas decisões da base). Dentro deste modelo (o federalismo), ficam reforçadas as instâncias coletivas de discussão e deliberação, criando também responsabilidade coletiva.

    Ao trabalharmos desta forma, creio que combatemos o personalismo, o individualismo e a cristalização de tarefas, reforçando os acordos coletivos, uma vez que opiniões individuais não podem se sobrepor à discussão nos espaços de base (no caso da Poligremia, os Grêmios).

    Mais uma vez, parabéns pelo artigo!

  3. Parabéns pelo belíssimo artigo. Incrível a disposição de vocês em retomar a história, pensá-la criticamente por meio do apontamento de questões que dificultam a politização e organização dos estudantes. A trajetória de vocês foi marcada por pautas, por lutas realmente fundamentais e que, penso eu, devem ser sugeridas para as novas gerações de grêmios. A tentativa de fazer uma organização independente e com formas libertárias de organização também merece admiração. Senti falta do relato de participantes de grêmios e da Poligremia de anos anteriores aos de vocês. Uma boa sugestão é ver se eles se animam a escrever e complementar o relato aqui realizado com mais experiências vividas. Outra coisa importante é abrir um canal de sugestões para contribuir com a superação dos impasses apontados por vocês. O que pode ser feito para romper o ciclo de eterno recomeço? Há também um lado positivo nisso, mas os problemas apontados são realmente sérios. Muito obrigado, Silvio

  4. Khaled, a gente acompanhou o balanço crítico da AGP escrito pelo Felipe Corrêa conforme ele foi publicado aqui no Passa Palavra. Estávamos ainda no colégio, e reconhecemos ali vários aspectos em comum às coisas que estávamos vivendo nos grêmios. Chegamos até a apresentar o texto nos fóruns virtuais da Poligremia, mas acho que pouca gente teve saco de ler.
    Mas engraçado que, enquanto escrevíamos este artigo, me ocorreu a mesma coisa: um modelo federativo poderia ter funcionado melhor para a Poligremia do que o nosso modelo (informal) de rede. Porque o federalismo permite maior controle e formalização sobre as estruturas de poder, enquanto a rede é por definição mais difusa. Mas um dos companheiros com quem escrevi o texto me convenceu que o problema não estava necessariamente na forma de organização, mas sim no quanto a Poligremia fosse um espaço construído pelos próprios grêmios, e não uma entidade à parte. Em 2010, o modelo de rede funcionou bem. O Festival de Curtas foi elaborado e executado não só nas reuniões da Poligremia, mas fundamentalmente dentro das escolas, pelos grêmios. Os problemas de estrutura começaram a aparecer mesmo nos períodos de desmobilização e se agravaram a partir de 2011. No I Fórum eles já foram identificados. Mas nunca continuamos a discussão, e percebo hoje que isso se deu em parte porque não interessava às elites informais. Eu era parte dessa elite, mas não fiz essa manipulação conscientemente. Só entendemos o problema com clareza agora, já distantes. Um amigo até comentou: “bom, nesse texto vocês só tão escrevendo o que eu falei há um ano atrás no Fórum”.

  5. Acho que tanto o comentário do Sílvio, perguntando por propostas práticas para os problemas que apontamos, quanto o comentário da Marília, que pergunta por reivindicações originadas dentro dos próprios grêmios, estão parcialmente respondidos na última nota do nosso artigo. Talvez por ser uma nota tenha passado desapercebida:

    “[34] Ainda que carecesse de formalização, esta relação parece ter se concretizado com mais intensidade na realização dos festivais de curtas, na breve articulação das ETECs após a luta contra aumento de 2011 e talvez na participação dos grêmios nas Conferências dos DCAs. Foram esboços de continuidade, de conexão de experiências, momentos nos quais a Poligremia era menos uma entidade separada e mais um espaço de articulação. Essa ideia da Poligremia como um “lugar de encontro dos grêmios” poderia ganhar força, por exemplo, com a simples instituição de um momento de informes sobre as atividades, as discussões e os problemas de cada grêmio no início de cada reunião da Poligremia.”

    Mas a questão da Marília é bem importante, e também me ocorreu enquanto escrevia o texto. Onde estão as lutas originadas dentro dos próprios grêmios? Essas lutas existem?

    A princípio, parece mais fácil encontrar respostas nas ETECs (escolas públicas administradas pelo CPS) do que nas escolas particulares (e estamos falando aqui de algumas das mais renomadas de São Paulo, impecáveis em termos de estrutura material). Mas nem por isso essas respostas são mais consistentes: um amigo que era do grêmio da ETESP estava me falando esses dias que sempre sentiu o boicote ao Saresp como “ativismo, prática sem teoria”, como algo que virou “rotina”, enquanto “um par de merdas tava acontecendo nas ETECs”. Ao mesmo tempo, lembro agora de um processo bem interessante que se passou em uma escola privada onde estudavam alguns amigos: revoltada com uma decisão da diretoria, uma classe inteira paralisou as aulas, foi ao pátio e fez uma assembleia, de onde saíram várias propostas. Uma delas, concretizada, foi a instituição de assembleias de turma regulares e reuniões de representantes com a direção.

    Mas sobretudo, acho que existem problemas que são comuns tanto à escolas públicas quanto à escolas privadas. Isso tá dito até no texto: as formas de repressão empregadas pela direção do Vieira (escola estadual) contra os alunos eram similares às vividas por outros grêmios da Poligremia, em menor ou maior intensidade. Me parece que a própria organização política dos alunos dentro do espaço da escola é uma luta, pois é aí que os estudantes criam um espaço autônomo deles, onde eles mesmos podem discutir a escola que eles querem, sem depender de professor, orientador, etc. Isso pode ser ameaçador para as estruturas hierárquicas de poder dentro do colégio (aliás, “gestão da escola” era um tema que a Poligremia discutia muito em 2010). Não é à toa que muitas diretorias tentam impedir a formação de grêmios. Pra citar um caso extremo de uma escola particular: há alguns anos, o Palmares expulsou os alunos que tentaram organizar um grêmio.

  6. Olá,

    Esse último comentário apresentado pelo Caio evidencia um ponto fundamental, que está subjacente em toda essa análise dos “ciclos de começos e recomeços”: qualquer forma de organização autônoma dos estudantes (e de trabalhadores também) precisa pautar o seu próprio calendário e agenda.

    Ou seja: os grêmios (assim como movimentos sociais, sindicatos, rádios livres e muitos etcs) não podem apenas se organizar e expressar solidariedade entre si somente quando são atacadas ou no momento em que sofrem alguma restrição ou repressão de entidades diretivas. Desse modo, a experiência política de organização coletiva será um espaço sim de resistência e solidariedade, mas também de criação e compartilhamento de outra forma de viver e sentir uma lufada de ar da nova sociedade que almejamos e estamos a construir (a tal política pré-figurativa que aponta, desde já, o modelo de organização coletiva que buscamos).

    Abraços.

  7. Como eu vinha comentando acima, acerca da repressão em escolas particulares:

    Rio Branco suspende 107 alunos após protesto contra câmeras em sala de aula
    http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,rio-branco-suspende-107-alunos-apos-protesto-contra-cameras-em-sala-de-aula-,935669,0.htm

    “A suspensão dos alunos que protestaram ocorreu, segundo Esther, pelo fato de os estudantes terem se manifestado em horário de aula. “Foi a terceira vez que eles se reuniram para discutir questões do colégio em um momento em que deveriam estar em sala”, diz.

    No artigo 110 do regimento escolar do colégio consta que o aluno é proibido de ocupar-se, durante a aula, de qualquer atividade que lhe seja alheia. Para os estudantes que não obedecerem à regra, o artigo 111 os submete à suspensão de até cinco dias. “Conversamos com as famílias, explicamos o posicionamento do colégio e os motivos da suspensão”, afirma Esther.”

  8. Olá! Há muito tempo tinha ficado de responder o comentário do Xavier e acabei esquecendo.

    Acho que ele ressaltou o ponto para o qual aponta a reflexão que tentamos fazer no texto, ainda que ainda não tenhamos conseguido alcançá-lo com clareza: a construção de uma agenda, de pautas próprias dos grêmios, que tenha origem nas escolas, nas salas de aula, nas necessidades, desejos e ideias de cada aluno. Isso significa ir além da solidariedade às pautas externas e da resistênica à opressão dentro dos colégios, significa discutir e lutar pela escola que os estudantes querem.

    Vão nesse sentido tanto atividades culturais e políticas organizadas pelos alunos na escola, quanto a discussão da dinâmica das aulas e da relação com os professores (como os alunos de uma ETEC em Santo Amaro fizeram: http://insidethemindwall.wordpress.com/), discussões sobre a relação entre os alunos, deles com o ambiente escolar e também a ocupação de novos espaços nesse ambiente, abertos pela resistência e luta contra opressões ali presentes (talvez como o uso da quadra pelas meninas que esse grupo de estudos feministas conseguiu: http://gilkamachado.wordpress.com/).

    Pra tentar compartilhar essas iniciativas de luta e construção de outras formas de se relacionar, de viver na escola (e dali pra fora) estamos tentando começar um jornal e um site de apoio à organização dos estudantes: http://gremiolivre.wordpress.com/

    Abraços.

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