Por Youri Paiva
A Mouraria tornou-se, neste mandato de António Costa na Câmara Municipal [Prefeitura], no bairro de maior intervenção e mudança de Lisboa. Embora sejam evidentes as dificuldades que têm as pessoas que vivem neste bairro, as acções desenvolvidas pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) aparentam ser mais de embelezamento de fachadas e de preocupações «desviantes» do que uma melhoria real das vidas dos moradores.
Devagar, devagarinho, se foram notando as alterações no bairro da Mouraria (expandido a norte para os Anjos e a sul para São Cristóvão). Antes da onda de financiamentos canalizados para as obras no bairro, já se notara que a Mouraria estava nos planos da CML para mudar. O bairro – antes apenas conhecido por «problemático» (bairro pobre, ligado à toxicodependência e à prostituição) e por «rainha do fado» (local de nascimento e vida de Maria Severa e Fernando Maurício) – começou por ser mostrado duma forma menos «obscura», como um local «multicultural», em que o fado coexistia com várias sonoridades diferentes.
Em 2009 aparece o Festival Todos, organizado pela CML. Não que a ideia fosse errada à partida – todo o tipo de coisas cabia neste festival que pretendia ser «inclusivo». Tanto se podia ouvir uma chinesa cantar fado no Intendente, como os OqueStrada no Martim Moniz. Tanto havia workshops de danças orientais nas antigas colectividades de bairro, como exposições de fotografia no Arquivo Municipal e nas ruas. Mas a concentração destas actividades nuns dias do ano parecia uma coisa forçada, longe das pessoas que poderiam participar nas actividades (e participar aqui não é ver, mas é fazer com). Essa distância era óbvia nalguns espectáculos deste festival, em que havia grades na rua formando um recinto, e para entrar nesse recinto era preciso uma senha. E aqui fica a questão, que se repete nas restantes intervenções da CML na Mouraria: isto servia para as pessoas que moram no bairro ou para o tornar atractivo para os de fora? Certamente, há quem se sinta mais seguro dentro de grades e quem se sinta longe disto fora delas.
Mas a «cultura» e o «social» na Mouraria não começou com o Todos, nem com intervenções da CML – que durante décadas deixou este bairro ao abandono. Já muitas associações andavam pelo bairro a fazer – mal ou bem – coisas com as pessoas. Desde a Obra Social Irmãs Oblatas ou o Grupo Português de Activistas sobre Tratamento de VIH-SIDA, que trabalham de perto com os problemas da prostituição e da toxicodependência; passando pelo GAIA, que organizava actividades (jantares populares e uma horta urbana) no Grupo Desportivo da Mouraria; pela associação Renovar a Mouraria, que entrou em contacto com muita gente, promovendo como actividade maior um arraial «alternativo»; até à Casa da Achada – Centro Mário Dionísio com uma programação variada e incansável, pondo ao dispor das pessoas sessões de cinema, oficinas e, entre outras coisas, uma biblioteca pública. E isto para só dar alguns exemplos de associações que estavam já a trabalhar na Mouraria em 2009. A lista não terminará aqui.
Foi, também, em 2009 que surgiu o financiamento europeu QREN [Quadro de Referência Estratégico Nacional], não só na Mouraria, não só em Lisboa, mas em várias cidades do país. Mais uma vez a CML mostrou que a sua aparente preocupação com os habitantes da Mouraria é uma segunda questão. A face mais visível das mudanças no bairro – as intermináveis obras – tornou as preocupações prioritárias da CML mais que evidentes.
Quando existe um bairro em que as pessoas têm problemas dentro das suas casas, que vivem em condições mais que precárias, que tem várias casas abandonadas (e muitas delas camarárias) não deixa de ser estranho que se reabilitem as fachadas e as ruas, ou que se pense em criar mais um museu do fado no Largo da Severa. Isto não significa que não existam problemas óbvios nas ruas da Mouraria: o chão é torto, o que dificulta a mobilidade a muita gente, para além de não existir um jardim ou algo parecido nesta zona.
Mas, então, onde começaram as obras de renovação da Mouraria? No Largo do Intendente, para onde o presidente da CML António Costa mudara o seu gabinete em 2011. Um dos largos de Lisboa onde se concentrava a prostituição e o tráfico de droga, mas também local de convívio de muita gente, transformou-se agora num largo plano e árido, desabitado e muito bem iluminado. As pessoas não desapareceram da face da terra – mudaram de sítio, para onde incomodem muito menos a vista das gentes de fora.
As restantes obras mais visíveis são, na realidade, um percurso bem próximo do centro da cidade (da Baixa e do Martim Moniz). Começando pelas traseiras do Centro Comercial da Mouraria até ao Largo da Severa, depois pela Rua Marquês Ponte de Lima até ao Largo da Rosa, desse largo pela Rua das Farinhas até à Rua de São Cristóvão, terminando já perto do antigo Mercado do Chão do Loureiro.
Este trajecto todo com obras mais ou menos faseadas deixou estas ruas em terra e lama, esburacadas e com pedras por todo o caminho – o normal em obras de pavimentos, é certo. Mas existiu – e existe – uma falta de preocupação em manter trajectos para as pessoas com menos mobilidade passarem (e todas as outras também), ficando muita gente presa nas suas casas. Puseram-se pilaretes cinzentos por toda a parte para impossibilitar o estacionamento, com a ideia de expulsar todos os carros, metendo-os em silos automóveis pagos mensalmente a várias dezenas de euros. O chão ficou direito, mas a que custo?
Na realidade, estas formas de fazer as coisas não são particularmente surpreendentes. Quem vive em Lisboa noutros bairros e já acompanhou obras camarárias sabe bem o que a casa gasta. Mas não deixa de ser estranho que este executivo, eleito com a «promessa» de estar junto das pessoas, faça as coisas longe das pessoas. Que a CML organizou debates com a população é verdade, mas ocasionalmente e já com o processo em andamento; que a CML reuniu um conjunto alargado de associações também é verdade, mas não se nota uma aproximação real da população. As preocupações nunca passaram muito para além acabar com o vislumbre da droga e da prostituição, de pôr tudo direitinho e bonitinho, e de criar mais um polo da cidade onde o fado – misturado com outras culturas, eventualmente – seja uma atracção turística que se mostre com orgulho. No entanto, vivem cá pessoas e essas foram deixadas de lado.
A Praça do Martim Moniz também levou com alterações recentes. Uma praça que não é particularmente bonita, nem propriamente local com sombras, tinha dois cafés, e agora transformou-se numa feira mensal de quiosques gourmet para inglês ver. Foram buscar os restaurantes do bairro para os meter na praça, misturados com restaurantes de renome, criando uma espécie de zona de restauração dum centro comercial a céu aberto. Mais uma vez: para quem é isto?
O mais escandaloso – e a prova dos nove para a CML – foi na semana anterior às comemorações do 10 de Junho, dia de Portugal. No sábado, 9 de Junho, à tarde, estava marcada uma visita conjunta do presidente da CML [prefeito] e do presidente da República Cavaco Silva – «e suas esposas» – ao bairro da Mouraria. Nessa semana, as obras que criaram ruas de areia e terra durante largos meses foram aceleradas duma forma prodigiosa: de manhã até madrugada, mesmo num feriado (o Corpo de Deus), os trabalhadores estiveram a calcetar as ruas por onde iriam passar os presidentes. O percurso já mencionado anteriormente ficou pronto – mas ouve-se nas ruas que terão de refazer algumas partes. E ficou com um brilho acrescido: o Palácio da Rosa, há anos com as portas e janelas emparedadas a tijolo, teve as mesmas tapadas com placas brancas para chocar menos, houve rápidas pinturas de fachadas de prédios degradados por dentro para não irritar a vista do presidente, os graffitis e murais (como o da Barbuda) foram todos apagados, os cartazes de actividades e ideias do bairro (da Casa da Achada, do Movimento Amigos de São Cristóvão, da plataforma pelas Juntas de Freguesia) foram todos retirados para que não se lesse algo «impróprio». As máquinas das obras foram escondidas no Largo da Achada, ainda todo por fazer, por onde os presidentes não iriam passar. Nesse mesmo largo há dias deitaram abaixo a única árvore que existia, um grande ulmeiro, embora o projecto da CML para o largo mostrasse a sua manutenção com duas novas laranjeiras (muito em voga agora). E mais uma vez com ninguém falaram.
E, nesse dia 9 de Junho, a visita dos presidentes foi uma das melhores acções de propaganda (que lembra os tempos do outro «F»). Por mais que as pessoas estivessem desgostosas com os meses de obras e indignadas com a súbita aceleração nas mudanças do bairro, receber o presidente da República era algo novo e importante. As pessoas vestiram-se a rigor e ofereceram prendas, abraços e beijinhos. A Mouraria entraria, finalmente, nas bocas da cidade e do país como algo de bom e não como um problema. Mesmo que a vida das pessoas não estivesse a melhorar, pelo contrário. As dificuldades sentidas no país – e no mundo – com a «nova crise» não são excepção na Mouraria.
Temos então um bairro mais moderno com os mesmos problemas. E longe disto tudo fica a ideia – pelo menos a ideia – de que as pessoas podem ter as coisas nas suas mãos e mandar naquilo que querem. Que mudar as fachadas dum bairro não é o que torna a vida diferente – mas sim fazer com os outros. E isso poucos fazem, mas há quem faça, apesar das dificuldades.