Sem organismos próprios onde se fixarem, os princípios ordenadores de uma sociedade diferente englobaram nos Banquetes Fraternais a totalidade das camadas populares de Paris. Por João Bernardo
Esta série de quatro artigos foi escrita e entregue ao Passa Palavra em meados de Dezembro de 2011, seis meses antes da publicação do manifesto Ponto Final.
A repressão é ilusória se não se fundamentar na prévia substituição de um quadro institucional por outro. A descristianização e as novas festas simbólicas pretenderam, por um lado, atacar o sistema de rituais herdado da monarquia. Mas, por outro lado, forneceram aos jacobinos a oportunidade de recuperar e tutelar a actividade popular que prosseguia autonomamente no âmbito dos clubes. A celebração da Federação, em 14 de Julho de 1790, foi o primeiro dos novos cultos, desdobrados depois, ampliados e aperfeiçoados em múltiplas festas cívicas. É possível distinguir um eco dos clubes e da autonomia popular na devoção aos mártires da liberdade, sobretudo Marat, mas também, para completar a trindade, Lepeletier e Chalier, duas vítimas com um valor social bem mais incerto. A homenagem popular a Marat recordava e promovia a clivagem de classes, com termos de referência concretos, tirados da história humana que todos estavam a viver. Eram opostos o objectivo e as referências das grandes celebrações jacobinas, com valores exclusivamente abstractos que serviam, como sempre, para confundir classes antagónicas. Foi com esta orientação que em 10 de Agosto de 1793 se realizou a festa laica da Unidade e da Indivisibilidade, seguida por outras celebrações, e na catedral de Notre-Dame de Paris, em breve consagrada à Razão, efectuou-se em 10 de Novembro a festa da Liberdade.
Para os jacobinos tratava-se de impor à sociedade uma nova disciplina. Se o cristianismo governara pela «superstição», os jacobinos pretenderam primeiro comandar em nome da Razão, depois em nome do Ser Supremo, e a partir daí procuraram estabelecer os termos metafísicos de uma moral cívica absoluta e inviolável, a mesma para todos. Assim como a igualdade abstracta perante a lei servia de quadro à desigualdade concreta das situações económicas, o padrão único de moral cobria o sistema legal, encimando-se uma abstracção com a sua abstracção.
«Para o legislador, tudo o que é útil ao mundo e bom na prática constitui a verdade», declarou Robespierre no relatório de 7 de Maio de 1794. «A ideia de Ser Supremo é uma lembrança permanente de justiça: por isso é social e republicana» [1]. A 22 de Maio foram formalmente proibidas as festas consideradas «parciais», ou seja, aquelas que não celebravam uma abstracção única e unificadora, e proibidas sobretudo as dedicadas à memória de Marat. Não podia ficar mais claro o sentido social das celebrações promovidas pelos comités de Salvação Pública e de Segurança Geral. Era a religião dos legisladores, encabeçada pelo legislador máximo, e Robespierre, presidente recém-eleito da Convenção, foi o grande oficiante da festa do Ser Supremo e da Natureza, com que o novo culto se inaugurou em 8 de Junho de 1794.
Nos clubes, como na devoção aos mártires da liberdade, não se manifestavam apenas as aspirações ideológicas dos sans culottes [2] e um sistema directo de organização. Consubstanciavam-se princípios de relacionamento social opostos aos defendidos pelas sucessivas assembleias legislativas e capazes de extravasar os limites do movimento e de se desenvolverem numa sociedade nova. Perseguidos e desorganizados os clubes e proibido o culto de Marat, concorrenciado pela religião jacobina, a vitalidade destas novas relações afirmou-se uma derradeira vez na Revolução Francesa naqueles meses de 1794 em que o movimento grevista atingiu o auge. Parecia que, sem organismos próprios onde se fixarem, os princípios ordenadores de uma sociedade diferente se ampliavam e englobavam enfim a totalidade das camadas populares de Paris.
A escrita de Thomas Carlyle na História da Revolução Francesa é intraduzível, ao mesmo tempo erudita e popular, arcaica e coloquial, entremeando frases longas e de ritmo majestoso com outras brevíssimas, numa mistura pletórica de barroco e moderno que lembra talvez a complexidade do processo revolucionário. Foi com esta linguagem que Carlyle descreveu os Banquetes Fraternais. «[…] não será singular, e quase comovente, vermos a Cidade de Paris sair para a rua, nas suaves noites de Maio [3], em cerimónia cívica, a que chamam “Souper Fraternel”, Banquete Fraternal? Espontâneo ou parcialmente espontâneo […] Pela Rua de Saint-Honoré e pelas principais Ruas e Praças, cada Cidadão traz consigo, para o ar livre, o escasso repasto que o mesquinho Maximum [racionamento] lhe concedeu; junta-o ao repasto do vizinho; e em mesa comum, alegres velas frequentemente acesas, e aquele mínimo aceitável de louça e outros enfeites e atractivos que sejam frequentes, jantam frugalmente em conjunto, sob as estrelas benévolas. Vê, Oh Noite! […] A Noite no seu vasto império nada vê de semelhante. Oh, meus irmãos, porquê o reino da Fraternidade não chega! Chega, deve estar a chegar, dizem os Cidadãos compartilhando frugalmente. — Ah! estas estrelas eternas, não miram elas, “como olhos cintilantes, brilhando de imortal piedade, o destino humano”! — » [4].
A mesma trágica questão surgira já a Marat, quando perguntou se a revolução, como uma suspensão num líquido, necessitava de ser sempre agitada do exterior; se não haveria uma organização social que se revolucionasse permanentemente a si própria; se a fraternidade, afinal, não duraria. «Está a suceder à nossa revolução o mesmo que a uma cristalização perturbada por choques violentos», escreveu ele em L’Ami du Peuple (O Amigo do Povo) de 27 de Agosto de 1791; «primeiro, todos os cristais disseminados no líquido se agitam, se dispersam e se misturam desordenadamente; em seguida, movem-se com menos animação, aproximam-se gradualmente e acabam por regressar à combinação incial e se ligarem intimamente» [5]. Os Banquetes Fraternais foram denunciados e atacados pelos comités de Salvação Pública e de Segurança Geral, mas não foi por isto que se extinguiram. Eram apenas o embrião de uma sociedade igualitária, tão incipiente que não mobilizaram os sans culottes na sua condição de trabalhadores. Foi como consumidores que eles deram à fraternidade corpo e forma, em festins que foram os últimos numa linhagem multimilenária de repastos celebrativos e os primeiros na antecipação de um novo igualitarismo. Como tudo naquela Revolução Francesa, puseram fim a um mundo e abriram outro. A nova fase haveria de se atingir quando as manifestações igualitárias começassem a fundar-se na condição de trabalhadores, mas foi para isso necessário que os artesãos isolados se proletarizassem e que a multiplicidade de processos produtivos independentes se integrasse no sistema capitalista globalizante. Desde então a autonomia tem deparado com potencialidades cada vez mais amplas, tão vastas que hoje, perante o horizonte do possível, são quase desesperantes as suas capacidades efectivas. Mas isto é história muito posterior.
A partir do último dos Banquetes Fraternais a revolução entrou no período final, quando foi possível limitar o acesso ao Estado e manter na actividade económica o poder discricionário do patronato, sem ser mais necessário atacar ao mesmo tempo os clubes e as outras manifestações de autonomia. Durante várias décadas a iniciativa popular estaria completamente desorganizada e se em alguns aspectos ela pôde inspirar, na primeira metade de 1796, a Conjuração dos Iguais, nos seus traços decisivos esta conspiração revelou a apatia popular. Sem haver já um movimento de massas em que se apoiasse, Babeuf substituiu-lhe o comité insurreccional dos conspiradores e esta mudança transformou tudo. O amplo relacionamento directo e igualitário caracterizara as potencialidades da autonomia popular, mas a organização de Babeuf obedecia aos princípios opostos, ao centralismo director, a uma acentuada hierarquização, à militarização da disciplina. Desde então e até hoje, nunca o jacobinismo conspirativo — tal como o leninismo que o modernizou — foi a expressão da iniciativa popular, mas sempre uma forma organizacional do refluxo das massas.
Talvez porque então as classes dominantes se sentiram seguras, a Constituição de 1795 estabeleceu um regime censitário mais lato do que o de 1791. Definiu-se como cidadão activo aquele que tivesse idade igual ou superior a vinte e um anos, com domicílio próprio há pelo menos um ano e pagando uma contribuição de qualquer montante. Os cidadãos activos nomeariam os eleitores, que deveriam ser de idade igual ou superior a vinte e cinco anos e, na definição mais genérica, proprietários de bens cujos rendimentos equivalessem a duzentas jornadas de trabalho. Havia cerca de trinta mil eleitores que, sem condições de censo, designavam os membros do corpo legislativo. «Um país governado pelos proprietários encontra-se na ordem social, aquele onde os não proprietários governam encontra-se no estado de natureza», declarou Boissy d’Anglas em 23 de Junho de 1795, no discurso com que apresentou o projecto de Constituição. «Se derem a homens desprovidos de propriedades direitos políticos sem reserva e se um dia eles ocuparem o banco dos legisladores, incitarão ou deixarão incitar distúrbios sem lhes temer os efeitos; estabelecerão ou deixarão estabelecer taxas funestas para o comércio e para a agricultura, porque não terão sentido nem receado nem previsto as suas temíveis consequências, e precipitar-nos-ão por fim nas violentas convulsões de que mal acabámos de sair» [6].
Notas
[1] Citado em Albert Soboul, La Révolution française, [Paris]: Gallimard, 1964, vol II, pág. 110.
[2] As culottes eram calças justas e curtas, até ao joelho (veja aqui), que constituíam uma parte indispensável do vestuário dos ricos. A plebe e o povo trabalhador usavam outro tipo de calças, largas e mais compridas, de outro tecido também (veja aqui), por isso eram chamados sans culottes, ou seja, sem culottes.
[3] Carlyle situou os Banquetes Fraternais no mês de Maio. Porém, Albert Soboul, op. cit., vol. II, pág. 121 afirmou que se realizaram nos finais de messidor, o que os situaria em Julho.
[4] Thomas Carlyle, History of the French Revolution, New York: Grosset & Dunlap, s. d., vol. II, pág. 353.
[5] Nº 539, transcrito em Revue des chefs-d’oeuvre du XVIIIe siècle, s. l., s. d., pág. 122.
[6] Citado em Albert Soboul, op. cit., vol. II, págs. 176-177 e Fernand Braudel e Ernest Labrousse (orgs.), Histoire économique et sociale de la France, tomo III: L’Avènement de l’ære industrielle (1789 – années 1880), 2 vols., Paris: Presses Universitaires de France, 1976, págs. 9-10.
A série Dilemas da liberdade tem quatro artigos:
1) Uma incipiente nova ordem da sociedade
2) Os banquetes fraternais
3) Marat: a soberania é o uso da soberania
4) Marat: nomear um ditador detido sob vigilância
A primeira metade do texto me lembrou a discussão sobre a “mística” (não gosto dessa palavra) e movimentos sociais. Essas festas populares parece que tinham um papel nesse sentido.
Eu tenho uma opinião diferente, Leo. A mim me pareceu que os festejos populares narrados na primeira metade do texto envolviam relações concretas de solidariedade e de resgate da memória da luta em meio a um contexto em que os organismos populares de autodeterminação haviam sido suprimidos e os seus líderes, mortos. Isso é diferente das místicas nos movimentos sociais, ou melhor, no seio de algumas organizações dos movimentos, nas quais, geralmente, valores abstratos – e, não raramente, mistificadores – são disseminados.
Eduardo, uma coisa não nega a outra.
No texto está explicitada as relações concretas de solidariedade. Isso não implica que essas práticas não tenham seu lado simbólico. Inclusive é difícil separar as duas coisas.
Bem, é por isso que eu não gosto da palavra mística. Trata-se de uma idéia vaga na qual entram coisas bem diferentes. Mas dentro do uso que normalmente é feito da palavra entra também cerimônias de lembrança dos mortos, do passado etc. Nesse sentido há mística sim. Há rituais que ajudam a criar ou manter identidade.