Por Hugo Scabello de Mello

 

I. Proposta

De forma sucinta, a ideia deste texto é oferecer algumas reflexões sobre a atuação libertária em movimentos sociais, a fim de aprofundarmos – ou pelo menos mantermos em pauta – o debate consideravelmente em voga em nossas fileiras acerca de tática- estratégia-programa. Um diferencial que tentarei dar a este é trazer mais reflexões advindas de experiências práticas coletivas do que teóricas. Este esforço não deve ser compreendido como uma posição anateórica ou pragmática, até mesmo porque, apesar da discussão teórica não ser o foco, sem dúvida este se encontra dentro dos marcos do discurso especifista. Ademais, deve considerar-se a centenária dose de inspiração do seguinte trecho de Bakunin: “Quem se apoia na abstração, nela encontrará a morte. A maneira viva, concretamente racional de avançar, no domínio da ciência, é ir do fato real à ideia que o abarca, o exprime e por isso o explica. No domínio prático, o caminho da vida social leva à maneira mais racional de organizá-la, de acordo com indicações, condições, necessidades, exigências mais ou menos apaixonadas da própria vida.”

Um objetivo imediato deste texto é contribuir para a imersão da tendência estudantil libertária Rizoma, já que durante esta realizaremos – em algum grau – o debate sobre estratégia, tática e programa. Desta maneira, este texto é mais voltado para o nível de tendência – apesar de muitos aspectos da discussão serem válidos também para a organização política.

Gostaria de colocar que quando digo programa refiro-me a objetivos e planejamento de longo prazo, não à totalidade do planejamento organizativo. Isto é uma diferença em relação, por exemplo, a como este termo é utilizado muitas vezes por José Antonio Gutiérrez – sem dúvidas um dos grandes motivadores deste pequeno texto, juntamente com Felipe Corrêa, Frank Mintz e outros libertários mais antigos como Nestor Makhno, Errico Malatesta e Mikhail Bakunin.

II. Tática, estratégia e programa

Dentro duma discussão sobre militância organizada junto a movimentos, estes termos basicamente se referem a um significado semelhante, e estão inexoravelmente entrelaçados. Os três dizem respeito às nossas expectativas e intenções com o movimento – o caminho que nós gostaríamos que este percorresse –, a diferença essencial entre estes conceitos é de escala: a tática nos dá as orientações para este trajeto numa escala bastante grande, o programa numa escala pequena, enquanto a estratégia se localiza numa escala intermediária. Ou seja, na construção da tática procuramos traçar uma via próxima e bem detalhada; um planejamento de curto prazo. Na construção programática pincelamos a extensa estrada que expressa os nossos objetivos finalistas para com o movimento – esta que muitas vezes quase até se perde de vista… – um esboço de longo prazo. Já na construção estratégica desenhamos o trajeto intermediário que faz a ponte lógica entre nossas distantes ambições e a imediata realidade.

Dentre estes três, o programa deve ter o conteúdo mais geral, enquanto a tática o mais detalhado possível. O programa deve nos dar apontamentos de onde queremos chegar – é o norte de nossa bússola. Isto faz com que ele seja bem mais constante e, consequentemente, é importante que ele não seja muito específico e tampouco extenso, de maneira a evitar um engessamento da atuação militante e uma prática tendendo à pregação semi-religiosa. É muito importante que o nosso programa não nos impeça de ter jogo de cintura, habilidade bastante importante para nos sairmos bem na dança política. Já a tática deve ser a mais esmiuçada possível, pois diz respeito aos nossos imediatos próximos passos – o que acarreta imprescindivelmente uma séria análise de conjuntura, a fim de nos dar o mapa dos trajetos possíveis e dos impossíveis. Quando comparado com o programa e a estratégia, o debate tático deve se mostrar também mais flexível e aberto a experimentações e inclusive erros. Já a estratégia fica no meio termo – é papel desta dar concretude aos ideais mais gerais apontados pelo programa, indicando o possível processo para os conquistar, mas, ao mesmo tempo, dar significados e sentidos mais ideais para o planejamento tático. É esta característica que faz com que preocupações como a expansão espacial, a continuidade temporal, a construção de alianças com movimentos de outros setores da classe e o fortalecimento tanto em quantidade de braços quanto em organicidade estejam no âmbito estratégico. Assim sendo, cabe acrescentar que enquanto a tática deve ser discutida a cada reunião ordinária – podendo nesta ser praticamente toda alterada – a estratégia costuma ser discutida somente semestralmente ou anualmente em reuniões de planejamento/imersão – e tende a ser modificada lenta e processualmente – e já em relação aos objetivos de longo prazo pode passar-se anos sem que eles se alterem substantivamente.

No universo político libertário compreende-se que a relação entre estas três deve ser de complementariedade e conformidade, isto devido à nossa compreensão de que os meios, na verdade, determinam os fins ou, como expresso poeticamente por Bakunin, que “a liberdade só pode ser criada pela liberdade”. Agindo de maneira outra estaríamos cometendo o erro de “pegar um ônibus para o Rio de Janeiro querendo chegar no Rio Grande do Sul” – como muitas vezes é dito (e também realizado…). A tática deve apontar e necessariamente estar de acordo com a estratégia, e esta, por sua vez, apontar e estar de acordo com os objetivos finalistas. Assim sendo, uma vitória tática que não traz avanços para nossa estratégia não deve ser encarada como uma real vitória. Todavia, é importante compreender que os três são frutos das mesmas práticas político-históricas e que o caminho, no fundo, se faz caminhando – com isto quero dizer que é a prática política que constrói táticas, estratégias e programas, não o oposto.

Atuar num movimento sem um programa formulado – ou pelo menos esboçado – implica numa falta de orientação que de maneira geral leva o grupo ou a girar em círculos e “atirar para todos os lados” – caminhando a cada momento para um rumo – ou a “ser levado pela onda” – acabando por ser utilizado como “massa de manobra” colocada a serviço dos interesses de outros grupos mais organizados. Por outro lado, atuar num movimento sem tática e estratégia implica tanto um eterno improviso e espanto, quanto tende a levar o grupo a posições principistas, sectárias e dogmáticas – de que adianta sabermos aonde queremos chegar se não tivermos noção alguma de onde estamos nem de qual caminho podemos tomar? Discursar e gritar que deveríamos ir para Pasárgada, sem termos um mínimo roteiro de como lá chegar, pouco ou nada ajuda.

Todavia, mesmo sendo o caminho um só, há particularidades que só são visíveis em determinada escala – a tática tem suas questões específicas, assim como a estratégia e como o programa. Gostaria eu, então, de ressaltar algumas destas.

III. Programa

O nosso programa de atuação num movimento deve expressar o melhor possível o nosso ideal, por trazer nossas aspirações e desejos mais revolucionárias extraídos dos momentos de maior ascenso da luta classista e transformação social, este tende a ser pouco mutável – de certa forma, o programa de longo prazo se aproxima do âmbito ideológico. Se compararmos, por exemplo, um programa sindical revolucionário contemporâneo com o programa da ala libertária da AIT, veremos que há uma coluna vertebral praticamente inalterada. Mas se o programa é algo mais genérico e quase sempre muito distante, qual é sua necessidade e utilidade? Assim como a utopia, ele serve para nos mostrar o horizonte em direção ao qual caminhamos.

Ponto comum de qualquer programa libertário é a libertação absoluta de algum aspecto específico da opressão capital-estatista. No movimento estudantil, por exemplo, faz sentido ter como ponto programático a destruição total da educação disciplinadora e autoritária e a construção duma educação libertadora – o que parece incluir a expropriação das universidades e escolas a fim de universalizar o acesso a estes conhecimentos e as organizar com base na autogestão, na democracia direta e na horizontalidade.

Contudo, a fim de conseguirmos a transformação revolucionária de qualquer aspecto da sociedade, faz-se necessário termos movimentos fortalecidos, combativos e autônomos – objetivo que sem dúvida deve constar num programa revolucionário libertário. Todavia, além disto, é igualmente evidente que há um limite a partir do qual só se faz possível continuar avançando nas conquistas do movimento caso haja um ascenso generalizado dos diversos setores oprimidos da sociedade (trabalhadores rurais e urbanos, sejam eles empregados, precarizados, estudantes, escravizados, desempregados, sem terra, camponeses, associados, cooperados, subempregados, etc.). É difícil acreditar que o exemplo citado no parágrafo anterior possa ser alcançado sem uma ampla aliança entre os oprimidos. O que nos leva a um outro ponto que normalmente deve marcar presença num programa libertário – a solidariedade de classes.

Um terceiro ponto se relaciona com os princípios libertários organizativos: é comum desejarmos que o movimento organize amplamente o setor da classe ao qual se refere com base na autogestão e no federalismo, e tenha a ação direta como método prioritário de luta. Este ponto, somado aos do parágrafo anterior, se refere ao que chamamos de construção do Poder Popular.

IV. Estratégia

Como já fora escrito anteriormente, a função da estratégia em grande medida é fazer a ponte entre os anseios e o planejamento de longo prazo e a prática militante cotidiana – característica que a faz ser imprescindível e absolutamente central para toda prática militante que de fato se pretenda contínua, transformadora e eficaz. Em outras palavras, geralmente devemos organizar estratégias para cada ponto programático, a fim de processualmente o alcançar. Por exemplo, se temos a construção do Poder Popular como um objetivo programático, devemos ter como preocupações estratégicas tanto o acúmulo máximo e progressivo de força social quanto a construção/fortalecimento de alianças com movimentos de outros setores da classe. Entretanto, o planejamento estratégico deve ser bem mais detalhado e concreto do que o programa: é necessário pensar com quais movimentos a aliança deve ser prioritária e com base em que ações concretas esta será construída. É evidente a importância duma realista leitura do histórico e das possibilidades do movimento a fim de embasar a construção da estratégia.

Mas para avançar no planejamento estratégico visando o acúmulo da força social, faz-se necessário nos debruçar em questões de como podemos fazer para: 1. maximizar a quantidade de pessoas que compõem o movimento e também a quantidade de pessoas militando organizadamente para o nosso projeto; 2. maximizar o tamanho do território no qual o movimento está inserido e também em quanto deste nós estamos inseridos; 3. maximizar a organicidade (que no fundo é o mesmo que dizer a liberdade coletiva) e a memória tanto do movimento quanto do nosso grupo; 4. maximizar a combatividade e outros aspectos libertários, além da atividade em geral do movimento e do nosso grupo; 5. maximizar a inserção do movimento na luta mais geral da classe e, por sua vez, maximizar a inserção do nosso agrupamento no movimento. Digo maximizar, pois o comum para movimentos (e também para os grupos mas em menor escala) é funcionar em ondas – ter ascensos e descensos de acúmulo de força – dentro deste padrão, cabe a nós atuarmos dentro duma traçada estratégia a fim de que os picos sejam cada vez mais longos e altos, e os vales cada vez mais curtos e rasos. Conseguir detalhar uma estratégia que abarque satisfatoriamente todos estes aspectos obviamente não é nada simples – é necessário estabelecermos quais serão os nossos espaços principais de atuação; quais serão as nossas ferramentas de propaganda, mas também como esta será; com quais outros setores (organizados ou não) do movimento nós devemos potencialmente nos aliar e nos aproximar; quais serão os nossos eixos de atuação, e as reivindicações e pautas que defenderemos como prioritárias, etc.

Um terceiro ponto estratégico – o qual se refere mais diretamente à questão da destruição das opressões e construções de práticas libertadoras, mas de maneira alguma deixa também de se relacionar com o acúmulo de força social – é planejar como impulsionar e fortalecer práticas e experiências expropriativas pontuais de libertação. Na questão da educação, pensar como fortalecer e aprofundar práticas libertárias de expropriação-apropriação da educação das classes dominantes. É importante ter claro que em toda prática revolucionária estas duas dimensões (expropriação e apropriação) invariavelmente andam juntas – mesmo que em níveis ínfimos. É disputando a hegemonia territorial através de greves e ocupações que de fato abrimos espaços para construir e experimentar práticas autogeridas de educação. (Teço uma longa discussão sobre este tema num outro texto.)

V. Tática

Tendo o programa e a estratégia esboçados, a tática acaba por se mostrar como a arte de alocar a quantidade de hora.militantes (total de horas de militância com que contamos para a realização de nosso projeto) disponível nas diferentes atividades possíveis do movimento a fim de conseguirmos avançar rumo aos nossos objetivos com eficiência. Contudo, apesar da aparência de simplicidade da discussão tática, é nela que muitas vezes se encontrarão as maiores polêmicas e também os maiores equívocos – pois é nela que saímos do mundo das ideias para efetivamente contaminarmos nossas mãos com a suja e áspera realidade – isto faz com que a tática deva ser pensada com tanto – senão mais – zelo e dedicação quanto a estratégia e o programa.

Na prática o debate tático se dá em cima de quais atividades, dentre as possíveis, deve o nosso grupo: 1. impulsionar/bancar – dedicando parte considerável de nossos esforços e expectativas e sendo o protagonista ou estando entre eles; 2. quais ele deve apoiar – colocando à disposição algum esforço, mas tendo consciência de que algum outro setor do movimento terá que protagonizar a atividade; 3. quais ele deve ignorar – praticamente “fingindo” a inexistência daquela iniciativa; e 4. quais ele deve boicotar – lutar contra. De maneira esquemática, são estas quatro possibilidades que temos frente a cada ação do movimento – e escolher qual postura tomar é a parte mais refinada e importante do debate tático, já que esta escolha não pode de maneira alguma ser aleatória ou irrefletida, pelo contrário, o critério central deve sempre ser a possibilidade de avanços rumos ao nosso planejamento de médio e de longo prazo. Não podemos em hipótese alguma desvincular a tática da estratégia e do programa – agindo assim, estaríamos correndo o risco tanto do oportunismo quanto da incoerência, além de estarmos rompendo com a premissa libertária já citada de que os meios devem estar de acordo com os fins. É necessário sempre nos perguntar se impulsionar uma determinada ação poderá, por exemplo, contribuir para o acúmulo de força social do movimento, ou fortalecer os aspectos libertários deste, ou promover avanços no campo expropriativo- apropriativo, etc. Alguns exemplos: o movimento entra em processo eleitoral a fim de trocar e legitimar as direções de suas entidades – devemos nós participar com peso, participar como apoio, ignorar completamente, ou lutar contra estas eleições? O mesmo deveríamos nos perguntar na ocasião da deliberação dum ato, por exemplo. Entretanto, além das atividades saídas do conjunto do movimento, podemos também pensar em atividades organizadas tão somente por nosso setor do movimento – neste caso ou as bancamos ou elas obviamente não se realizarão.

VI. Considerações finais – nem vanguarda nem retaguarda!

Espero que estas passadas páginas breves possam contribuir para a atuação libertária em movimentos sociais, mas também ajudem a reforçar a imprescindibilidade do planejamento tático, estratégico e programático. Somente assim é possível termos uma efetiva militância que seja de fato coerente com a tradição libertária. Somente assim é possível fugirmos da posição de vanguarda que, com muita arrogância, se autoproclama superior ao movimento e seus diferentes setores, levando invariavelmente ao sectarismo e ao dogmatismo, senão até mesmo ao paralelismo e à total desvinculação do grupo com o movimento – tirando-o da realidade política e o isolando, eliminando assim qualquer possibilidade real de intervenção nesta e no movimento. Mas também somente assim é possível fugirmos da posição de retaguarda que, com muita ingenuidade, cegamente segue qualquer atitude que o movimento tomar, independentemente de onde este trajeto irá nos levar, independentemente dos avanços e retrocessos que esta pode trazer para o nosso projeto – perdendo assim toda a capacidade propositiva e, na prática, qualquer possibilidade de intervenção real e orientada no movimento. Somente assim é possível achar o equilíbrio entre a vanguarda – que boicota todas as ações que não protagoniza – e a retaguarda – que desempenha sempre um papel passivo e de coadjuvante. Intervir no movimento é remar com este, mas remar tentando orientá-lo em direção aos nossos ideais.

Por fim, gostaria de compartilhar duas passagens das Considerações sobre o programa de Gutiérrez:

“Entre as lutas que travamos hoje e a sociedade ideal do futuro a que aspiramos existe um enorme abismo. Somos utópicos no pior sentido da palavra. Ou reformistas, na medida em que a luta pelas reformas não se liga (para além de nossos desejos) a uma estratégia revolucionária. Entre nosso utopismo e nosso reformismo é onde devemos encontrar o caminho para a política revolucionária, que unifique nossa participação na luta por reformas e transformações no presente, com aquelas grandes aspirações que nos inspiram.
“[…]
“Porém, o pensamento programático não serve somente como uma maneira de enfrentar com propostas construtivas os problemas sociais […] mas, além disso, permite- nos acabar com duas características do movimento libertário: primeiro, com a política de satélite em torno do resto da esquerda, que nos converte em meros contraditores ou seguidores de outras alternativas, sem um desafio próprio e sem ser, por conseguinte, uma alternativa em direito próprio. Por outro lado, ele também nos ajuda a superar os desvios sectários, já que muitas vezes o sectarismo e a incapacidade de assumir corretamente uma política de alianças deve-se à falta de clareza dos próprios libertários em torno de seus próprios objetivos imediatos. O desenvolvimento de programas concretos, em conclusão, fortalece nossa presença nas lutas populares, com força própria à nossa bandeira.” Bandeira a qual muito anseio ver novamente ser hasteada para o triunfo de nossa emancipação – como nos diz uma antiga, porém ainda viva, canção popular libertária.

As obras que ilustram o artigo são de Kazimir Malevitch (1878-1935)

2 COMENTÁRIOS

  1. Esse debate é fundamental, mas tenho uma crítica ao texto: indiquei para uma pessoa que inicia agora a sua militância política a leitura do texto e o camarada reclamou que não conseguiu entender o que o texto dizia, não só pelas referencias complexas, mas pela construção do texto em si também ser de difícil leitura.

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