Te dão alguns santinhos de candidatos. As bandeiras das centrais sindicais foram substituídas pelas dos candidatos a vereador. Por Zeca Riben

Após mais de um mês de greve você descobre, em uma rede social, que o governo finalmente resolveu apresentar uma proposta. Você estava esperançoso, porque todos os mais experientes te disseram que esta greve já era vitoriosa, porque há muito tempo não se via mobilização assim tão forte, com tamanha participação. Além do mais, te disseram que este governo aí é companheiro, é “o governo da gente”. Parece que vem coisa boa… Mas então você se decepciona com o que vê, se revolta e fica sem saber o que fazer quando sabe do resultado da nossa vitória.

Você pesquisa um pouco – hoje é mais fácil, né? – e vê vídeos feitos logo após o Comando Nacional de Greve ter saído da sala de negociação com o governo. Vê nos semblantes dos seus representantes a decepção, o cansaço, a revolta. Percebe nas falas que foi tratado, através deles, da pior maneira possível. É pegar ou largar. É isso ou nada. Vocês já têm demais. Quem são vocês!?

Então você busca conversar com seus colegas, com aqueles poucos que querem falar sobre a greve nem que seja no bate-papo eletrônico ou com aqueles que você só viu nas redes sociais mesmo, e então ao encontrar solidariedade com a sua revolta você se sente menos aflito, porque a luta vai continuar, porque a gente vai botar pra quebrar, doa a quem doer. Eles só fizeram nos juntar ainda mais! E todos se preparam para suas assembleias locais.

Você se sente mais confiante. Você que já estava olhando o edital do próximo concurso qualquer, que já estava procurando o que mais poderia abrir mão para ter tempo de estudar e se livrar deste descaso, percebe que vale a pena lutar mais um pouco. Faz as contas e diz para si, mesmo sem acreditar, que com esse dinheiro que já tem dá para ir levando, por mais um tempo, a vida numa boa. Você esquece que não é só pelo salário que faz a greve, esquece do jeito que é tratado cotidianamente, esquece dos absurdos que vê. Então no outro dia você acorda e vai à assembleia encontrar seus pares, convicto de que o governo vai ouvir de nós o que merece por ter nos feito o que não merecemos.

Aí você chega na sua assembleia e procura não lembrar do que viu nas anteriores, mesmo que não tenha nem uma semana que você saiu frustrado de uma. Só que aí você, jovem trabalhador, se sente um ET mais uma vez. Não se reconhece nos rostos, não se encontra no ambiente. Procura no auditório lotado alguma feição que se pareça com a sua, alguém que possa sentar ao lado e compartilhar a sua revolta, e que possa construir algo junto, e é difícil encontrar. Você, então, se sente pequeno naquela enorme sala cheia de estranhos, com aquele microfone a falar o que todo mundo já ouviu para que o novo não seja dito.

Te dão alguns santinhos de candidatos. Estão sorrindo na foto. Diz não a um dos que entrega e é olhado com reprovação. As bandeiras das centrais sindicais foram substituídas pelas dos candidatos a vereador. Você nem estranha mais… O que estranha mesmo é a alegria que paira no ar. O clima de campanha substituiu o clima de greve. Você, então, não sabe se aquilo é cinismo ou é a mais pura expressão da honestidade.

Daí você lembra que tentou, em vão, trazer seus colegas de repartição – como era dito antigamente – às atividades da greve. Você lembra que há colegas de outras lutas que também são da sua categoria e procura-os nesta nova luta, e é também em vão. Então você olha para aqueles dois, ou três, talvez quatro, a quem você nunca deu ouvidos, aqueles ali com bandeiras ainda vermelhas de partidos sem expressão, e lembra que são os únicos que visivelmente se colocam contra aquilo. Você não quer ver a história se repetir, se diz já vacinado, mas ter razão nessas horas é difícil. Pensa em ir ao encontro deles, mas ainda reluta e decide pela solidão.

Sozinho, como um sequestrado, você busca em seu algoz algo de positivo. E até acha. Os que enchem o auditório não se reconhecem em você, nem você neles. Mas entre eles há solidariedade. Acha surreal um assembleia formada por aposentados decidir se você deve ou não continuar em greve, logo por você que vai ter que comer o pão que o diabo amassou quando voltar ao trabalho! Mas acaba admirando a história que eles construíram juntos e quer que os seus colegas, quem sabe um dia, façam também da assembleia um espaço de confraternização, de socialização e, claro, de construção. Já não bastava a frustração, agora vem a inveja.

Mas aí, sem muito o que fazer a não ser esperar a foto final na qual todos sorriem de mãos levantadas, você senta em qualquer canto, já sem a alegria e disposição que o fizeram levantar pela manhã, e resolve escutar o que vem dos microfones. Sei lá, vai que tem novidade desta vez… Defender o governo de todas as formas, declarar vitórias onde só se vê descaso, promover os seus candidatos, manobrar as deliberações e preparar o fim da greve. E então começam a ameaçar: não sejam irresponsáveis. O mundo está em crise. A direita quer voltar ao poder. A tática dos esquerdistas acabou com a gente no ano passado. Se não aceitarmos isto, não receberemos nada. É o mais do mesmo. Mas daí algo de novo, pelo menos para você, acontece. Você percebe que o sujeito responsável por amortizar a revolta, por canalizar a falta de respeito do governo em favor do próprio governo, é exatamente aquele que se coloca como “oposição histórica” ao sindicato. Desta vez deixaram que ele falasse por último, deixaram o microfone aberto o tempo que ele quis, até o aplaudiram ao final. Então alguém ao lado te diz, e finalmente consegue interagir: ele é do PT.

Você se pergunta, mais uma vez, o que faz ali. Você se pergunta se realmente faz parte daquilo. Num momento de raiva você se pergunta se é possível na mesma categoria haver administradores e motoristas, médicos e contabilistas. Você se lembra que sempre defendeu a solidariedade entre os trabalhadores e percebe, finalmente, o quanto isto é difícil. Você se sente reacionário por pensar assim, ou por deixar de pensar, o que é bem pior. Você que acordou otimista, pouco depois está preenchido de péssimos sentimentos. Quer ir embora. “Por que sou eu o único revoltado aqui?” Então você entende que onde há derrotas para alguns, pode mesmo haver vitórias para outros. E assim os abismos entre os trabalhadores só se ampliam.

Mas espera aí! Você se lembra que os professores, que trabalham no mesmo espaço que você, acabam de receber uma proposta que chega a ser três vezes maior do que a sua, sendo que eles já ganham três vezes mais, mas se revoltaram e vão continuar a greve. Passaram por cima do sindicato e tudo! Logo eles que percebemos com desconfiança, logo eles que no dia a dia se colocam como nossos patrões. Tudo isso você entende. O que você não consegue mesmo entender, de forma alguma, é o porquê de aceitarmos ser tratados como trabalhadores de segunda categoria, termos receio de querer mais.

Você quer e não quer participar daquilo. Você não sabe se é melhor lutar para mudar isto ou ficar bem longe para, pelo menos, não dar legitimidade ao que vê. É aí que, já do lado de fora da assembleia e após ter mandado um ou outro dirigente sindical àquele lugar, encontra alguns outros revoltados que nem você. Você não sabe o nome nem o setor. Nem sabe se deve confiar neles. Mas se sente menos estranho. Se sente de novo parte de algo, só não sabe o quê.

Nota sobre o autor:
Zeca Riben é técnico-administrativo de alguma universidade federal.

As imagens que ilustram o artigo são dos filmes “Eles não usam black-tie” e “ABC da Greve”, ambos de Leon Hirszman.

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