Abordar o fascismo, não o lugar-comum que as pessoas imaginam, mas aquele que existiu, é profundamente incómodo. Por João Bernardo
No dia 29 de Agosto o Passa Palavra recebeu uma mensagem de um leitor.
«Prezado/a,
O ideólogo do Estado russo de Vladimir Putin, Aleksandr Dugin, está a caminho do Brasil. Ele palestrará na USP, UERJ, UFPB e em Curitiba.
Seria interessante e oportuno se alguém do ou próximo ao coletivo Passa Palavra, melhor informado do que eu sobre a teoria política de tal indivíduo, talvez já familiarizado caso seja de terras européias, publicasse uma abordagem (marxista libertária?) sobre seu pensamento, que é muitas vezes caracterizado como neofascista.
Fica a sugestão.
Saudações.»
E a seguir o leitor transcreveu a apresentação da palestra, tal como foi divulgada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.
«A Quarta Teoria Política
Palestra com o prof. Aleksandr Gelyevich Dugin
Dia 03 de setembro às 19h, o prof. Aleksandr Dugin, do Departamento de Sociologia e Relações Internacionais da Universidade de Moscou, estará presente na UERJ para dar uma palestra versando sobre os seguintes temas:
1. Traditionalism: The Tradition / Metaphysics; 2. Geopolitics: The Eurasianism / Moltipolarity; 3. Political Philosophy: The Fourth Political Theory / Global Revolutionary Alliance.
Aleksandr Dugin é um dos fundadores de uma das principais escolas contemporâneas de geopolítica, geralmente designada de “eurasianismo”. Mas Dugin não é somente um filósofo e cientista político, sua obra intelectual abarca setores muito diversos que vão da geopolítica, passando pelo estudo comparativo das religiões, a teologia (sendo ele um cristão ortodoxo), crítica literária e de autores como Heidegger, Carl Schmitt, Halford John Mackinder e a Escola Tradicionalista de Julius Evola, René Guénon, Titus Burckhardt, Rama Coomaraswamy, etc. O prof. Dugin sendo um dissidente do regime comunista (seu pai foi um oficial da KGB), fundou a Associação Arctogaya e o Centro de Estudos Metaestratégicos com a dissolução da URSS. Em 1988, juntamente com o seu amigo Geidar Dzhemal, filiou-se na organização nacionalista Pamyat. Auxiliou também na redacção do programa político do refundado Partido Comunista da Federação Russa (ex Partido Comunista da União Soviética) sob a jurisdição de Gennady Zyuganov, sendo o produto final um documento mais inclinado para o nacionalismo que para o marxismo. Convencido de que o Nacional-Bolchevismo necessitava de uma encarnação política própria Dugin convenceu o seu aliado Eduard Limonov do mesmo e criaram a Frente Nacional-Bolchevique em 1994, posteriormente Partido Nacional-Bolchevique. Nos anos 80 suas teses foram fortemente influencidas pela escola intelectual européia comumente chamada de “Nova Direita”, sendo seu principal representante o filósofo francês Alain de Benoist. Dugin também é o principal conselheiro político do Presidente russo Vladimir Putin. Seus interesses atuais giram em torno da Teoria do Mundo Multipolar e da filosofia de Martin Heidegger. O autor tem ainda textos escritos na área de economia sobre as idéias de Friedrich List, Schumpeter e Brodel, entre outros. Dugin é um dos principais teóricos do pensamento antiliberal em nossos dias, defensor da noção de “Grande Síntese”, que nada mais é que a síntese entre todas as correntes antiliberais, antimodernas, antiburguesas, antidemocráticas; o aspecto mais inovador desse ponto de vista é agrupar dentro dessa mesma categoria personalidades históricas tão díspares e contrastantes como Julius Evola e Marx, Carl Schmitt e Sorel, Heidegger e Guénon, Ernst Jünger e Henry Corbin, Nietzsche e Ivan Kireyevski, Che Guevara e Codreanu, Lenin e Mussolini, etc.
Organização:
Dndo. Rodolfo da Silva de Souza (UERJ)
Prof. Dr. Marco Antonio Casanova (UERJ)
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.»
Sucede que há dois meses e meio publiquei no Passa Palavra o artigo Ponto final, que é o que o título diz, um ponto final, a decisão de que é inútil escrever para este público. Mas a sugestão, quase um repto, enviada por aquele leitor seduziu-me e podia ter aberto uma excepção. Não é frequente abrir excepções às decisões que tomamos? Algumas parece que só servem para isso. Além do mais, toda a minha vida adulta me interessei pelo estudo do fascismo e nos últimos vinte anos tem sido este o meu principal tema de pesquisa. Posso dizer que estou habilitado a tratar da questão.
Mas logo me veio o desânimo. Várias vezes, aqui mesmo, no Passa Palavra, quando escrevi acerca do fascismo a reacção imediata dos leitores foi a de enviarem comentários acusando-me de ser ignorante. Não sucedeu uma vez ou duas, que pudessem ser consideradas anomalias, mas tratou-se de uma reacção frequente. É que o fascismo constitui um dos temas em que as ideias feitas menos correspondem à realidade.
Por um lado, o fascismo foi derrotado militarmente, nalguns casos politicamente também, mas não foi derrotado ideologicamente. No plano da ideologia o que sucedeu foi que em todo o mundo as democracias capitalistas, depois de terem ganho a guerra, simplesmente proibiram a difusão dos livros fascistas, as editoras retiraram-nos dos catálogos, a generalidade das bibliotecas deixou de os ter à disposição ou relegou-os para a secção dos reservados e na sua esmagadora maioria os fascistas satisfizeram-se com esta situação, porque preferem passar despercebidos do que fazer proselitismo. Seria impensável que alguém escrevesse, por exemplo, sobre o marxismo sem ter lido Marx ou sobre o liberalismo sem ter lido Tocqueville, mas o fascismo é um tema sobre o qual parece que todos podem falar e escrever sem ter lido os autores fascistas. Há anos atrás, num debate acerca de um livro meu, numa sessão pública em Lisboa, uma das figuras mais expressivas do marxismo português, um homem que já morreu e por quem eu sempre tive uma grande consideração teórica, censurou-me por perder tempo a ler os políticos e os romancistas do fascismo já que, na sua opinião, o fascismo seria tão desprovido de ideologia como os gangsters. E se ninguém vai ler o Al Capone, para que iria eu ler Rosenberg ou Gentile ou Horia Sima? Assim o fascismo pôde ser coberto por uma tal camada de ignorância que quando alguém fala dele a reacção normal é acusarem-no de estar a falar de outra coisa, porque fala-se do fascismo que não é aquele que as pessoas imaginam. Foi o que me sucedeu muitas vezes no Passa Palavra e por causa da mensagem daquele leitor iria suceder-me uma vez mais? Obrigado, mas não.
Há outra coisa ainda. É que abordar o fascismo, não o lugar-comum que as pessoas imaginam que existiu, mas aquele que existiu mesmo, é profundamente incómodo. O fascismo não foi uma corrente política e ideológica com as margens bem demarcadas, como sucede com o conservadorismo, o liberalismo ou o marxismo, mas caracterizou-se por operar cruzamentos entre opostos. Se reduzirmos a política a uma linha, o fascismo situou-se na direita da direita, mas isto ajuda mais a confundir do que a esclarecer, porque o fascismo transportou alguns dos principais temas da esquerda para o interior da direita e transportou os principais temas da direita para o interior da esquerda. Foi esta operação que lhe conferiu a sua grande novidade e ao mesmo tempo o seu enorme perigo.
Como fica nisto tudo a esquerda, que gosta de se apresentar pura e imaculada? Como pode a esquerda admitir os cruzamentos e as convergências entre ela e o fascismo? E mais ainda no Brasil, onde essas circulações ideológicas atingiram um ponto extremo! Quando, numa série de artigos no Passa Palavra, muito de mansinho, chamei a atenção para a influência que as ideias de Manoilescu tiveram sobre as teses do desenvolvimentismo na esquerda brasileira, foi um ai jesus nos comentários. E iria eu, só porque um leitor amavelmente nos enviou uma mensagem, ser obrigado a ler mais uma série de comentários indignados?
É que as coisas com Alexander Dugin são piores ainda, porque no vasto leque do fascismo ele é um nacional-bolchevista. No sentido estrito do termo, o nacional-bolchevismo foi uma corrente surgida na Alemanha em Novembro de 1918 graças às duas principais figuras comunistas de Hamburgo, Heinrich Laufenberg, um tribuno, e Fritz Wolffheim, um teórico. E esta corrente surgiu na esquerda da esquerda, pois formou-se na vertente mais esquerdista do congresso fundador do Partido Comunista Alemão; e no 2º Congresso deste Partido, em Outubro de 1919, foram Laufenberg e Wolfheim os principais porta-vozes da ala esquerda. Em Abril do ano seguinte eles participaram no que é hoje considerada a génese oficial do conselhismo, a formação do Partido Comunista Operário Alemão, e o ascendente ideológico do grupo de Hamburgo revela-se pelo facto de o seu jornal ser o órgão da nova formação política. Assim, embora em Agosto de 1920 o Partido Comunista Operário Alemão tivesse excluído a organização regional de Hamburgo, o certo é que na sua formação teve um papel determinante o nacional-bolchevismo. Aqueles que gostam de considerar o conselhismo como o Santo dos Santos deviam meditar neste caso, que data da própria génese do conselhismo, mas em vez disso prevejo que enviem comentários a dizer que eu não sei o que é o conselhismo.
Foi Karl Radek o primeiro a estigmatizar a orientação defendida por Laufenberg e Wolffheim, dando-lhe em Novembro de 1919 o nome por que ficou conhecida, nacional-bolchevismo, o que é irónico porque em Junho de 1923 seria o próprio Radek a defender o nacional-bolchevismo no seu discurso acerca de Leo Schlageter, «o viajante do nada». Mas o que ele propôs então foi uma versão de nacional-bolchevismo que em vez de estar remetida para a periferia da extrema-esquerda se situava no seu próprio centro, constituindo de então em diante a orientação oficial do Komintern e, nomeadamente, do Partido Comunista Alemão.
Ora, estes passos cruzados não são uma bizarria e inscrevem-se num paradoxo constitutivo do próprio marxismo. Numa série de artigos que dediquei no Passa Palavra ao marxismo e ao nacionalismo procurei mostrar como Marx e Engels, ao mesmo tempo que escreviam os bem conhecidos textos teóricos analisando o carácter internacional ou supranacional da economia capitalista e, portanto, da formação do proletariado, defendiam, em textos políticos muito menos conhecidos, uma orientação nacionalista caracterizada por um antieslavismo feroz. Sustentei nessa série de artigos que neste paradoxo dos fundadores do marxismo se radicam as posteriores confusões e circulações entre marxismo e nacionalismo, que tão catastróficas têm sido para a esquerda. O que eu fui dizer! Na verdade já o tinha dito noutro lugar vários anos antes, mas como se tratava de um livro com muitas páginas ninguém tinha dado conta da heresia. Hoje, se alguém na esquerda quiser defender teses escandalosas, que o faça no meio de um livro, porque a esquerda pouco lê livros, só artigos na internet ou duas linhas no Facebook. O problema foi eu ter dito aquilo em artigos, o que me valeu insultos tanto neste site como noutros. E, para não fugir à regra, chamaram-me ignorante e disseram que eu não conhecia nada da obra de Marx, o que foi muito divertido, porque era eu quem estava a citar textos que os leitores indignados desconheciam. E continuam a desconhecer, porque se encontram em antologias em inglês e em francês e a fluência em línguas estrangeiras não é uma das características da esquerda brasileira. Legitimam essa ignorância linguística classificando-a como aversão ao eurocentrismo. Como se o português fosse a língua dos tupis-guaranis! O que aquele leitor sugere agora, que se faça uma análise crítica do nacional-bolchevismo de Alexander Dugin, já eu tinha esboçado num nível mais básico nos artigos em que pretendi analisar as relações entre o marxismo e o nacionalismo, e com resultados nulos. Como habitualmente, gritaram alto para cobrir aquilo que não queriam ouvir, porque lhes é muito incómodo ouvir.
E é tanto mais incómodo quanto no Brasil a génese do comunismo se confunde com a génese do nacionalismo moderno. Com efeito, a circulação ideológica entre a esquerda e o fascismo é tão profunda no Brasil que quase se pode dizer que está inscrita no código genético daquelas correntes políticas. Tudo remonta ao tenentismo, e Luís Carlos Prestes foi um tão legítimo continuador do tenentismo como o foi Getúlio Vargas. Para mim, que nasci e fui educado sob o salazarismo, falar do regime de Getúlio como fascista é algo inteiramente óbvio. A influência do Estado Novo português sobre o Estado Novo brasileiro fazia parte das aulas de Direito Constitucional na Universidade de Lisboa. Mas uma vez que eu escrevi, rapidamente, só de passagem, que o getulismo foi um fascismo, caiu-me o céu em cima. A esquerda brasileira tem a estranha mania de considerar o Brasil como uma excepção no mundo, como se pudesse haver excepções do tamanho deste país! Não creio que tenha alguma utilidade falar aqui, uma vez mais, de nacional-bolchevismo.
O público de esquerda habitual, se já não quer ler análises sérias do fascismo, muito menos as quererá ler do nacional-bolchevismo, porque atingem o âmago, o profundíssimo nacionalismo da esquerda e da extrema-esquerda brasileiras. E pior ainda devendo mencionar René Guénon e Julius Evola, num país onde as camadas de rendimentos intermédios disputam com as suas congéneres dos Estados Unidos a palma das consultas a psicanalistas e onde Jung é estimado pela esquerda; num país onde os sindicatos, e os movimentos sociais depois deles, recorrem a rituais colectivos que encontram grandes afinidades com alguns aspectos do pensamento de René Guénon e de Evola. Encontram afinidades também com o pensamento de Georges Sorel, e a este respeito seria interessante recordar a obra de Henri De Man, um dos mais importantes teóricos da social-democracia no período entre as duas guerras mundiais, que chegou ao fascismo a partir de uma revisão soreliana do marxismo, enfatizando a noção do mito enquanto expressão e veículo de um anseio colectivo. Sem tirar nem pôr, é isto que nos é proposto agora nas místicas dos movimentos sociais, um universo de irracionalismo colectivo que tem Evola numa ponta e Sorel na outra. Imagino o que seriam os comentários se eu tivesse escrito esta frase.
Já que mencionei Sorel, convém saber que um dos primeiros ensaios do que se poderá considerar protofascismo foi a constituição do Cercle Proudhon (Associação Proudhon) em França, no final de 1911, um lugar de encontro e debate para os sindicalistas antiliberais e os nacionalistas preocupados com a questão social, cuja iniciativa se deveu, do lado de Sorel, ao seu discípulo Édouard Berth e, do lado do partido de extrema-direita Action Française, a Georges Valois. Quanto à figura emblemática de Proudhon, ela serve pelo menos para mostrar que as ambiguidades do socialismo e do nacionalismo não são um exclusivo do marxismo, porque essas ambiguidades não foram menores em Proudhon. Um dos hitlerianos de Paris, Lucien Rabatet, escreveu durante a segunda guerra mundial, num dos livros cimeiros do colaboracionismo, que «sem os judeus, teríamos feito entre nós, e com o mínimo de estragos, essa revolução do socialismo autoritário que se tornou a necessidade do nosso século e de que os velhos doutrinadores franceses, como Proudhon, têm a honra de ter sido os precursores». E assim eu, que com os artigos sobre marxismo e nacionalismo desencadeei a ira dos marxistas, exponho-me agora a suscitar a cólera dos anarquistas. E tudo isto para quê? Para explicar a um leitor amável que é inútil, hoje e para este público, fazer a crítica dos pressupostos do nacional-bolchevismo.
Ainda a propósito de Sorel, é curioso que a principal repercussão das suas ideias não tivesse ocorrido em França mas na Itália, onde ele esteve na origem directa do sindicalismo-revolucionário. Ora, juntamente com os futuristas e os membros das tropas de elite, os sindicalistas-revolucionários foram uma das três correntes constitutivas do fascismo italiano. Não o recordo aqui por acaso. É que no Brasil, por razões que se prendem com a origem do Partido dos Trabalhadores, PT, a figura de Gramsci goza de uma enorme celebridade, muito maior do que na Europa, onde só é conhecida, ou pouco conhecida, em meios universitários. O PT pretendeu conjugar a forma autoritária de partido com a forma democrática dos movimentos de base, e para isto as teorias de Gramsci pareceram-lhe oferecer um quadro útil. O PT podia ter optado com igual proveito por Otto Bauer, mas foi Gramsci o escolhido.
Um episódio fascinante é aquele em que Gramsci, na Primavera de 1921, passados dois ou três meses apenas sobre a fundação do Partido Comunista, procurou obter a colaboração de Gabriele d’Annunzio para a formação de um exército vermelho, numa guerra civil que se previa próxima. Entre muitas outras coisas, D’Annunzio fora desde Setembro de 1919 até Dezembro de 1920 o ditador de Fiume, onde implantou um regime verdadeiramente fascista, rodeado de sindicalistas-revolucionários, os tais discípulos italianos de Sorel, e nessa época Mussolini teve grande dificuldade em disputar a D’Annunzio a primazia na extrema-direita radical. Foi a esta figura que Gramsci pediu, ou ofereceu, colaboração. A primeira menção que encontrei a uma tão inesperada tentativa de convergência política foi na Storia del Fascismo de Enzo Santarelli, vi-a mencionada também num artigo de Sergio Caprioglio na Rivista Storica del Socialismo em 1962, mas ambos remetiam para um artigo de Nino Daniele, «Fiume Bifronte», publicado em 1933 numa obscura revista intitulada I Quaderni della Libertá. Seguidor de D’Annunzio, Daniele manteve-se na vertente mais radical do fascismo, o que o levou a entrar em divergência com o regime de Mussolini e a exilar-se no Brasil, publicando aqui, numa edição precária, o relato das insistentes tentativas de Gramsci para ser admitido à presença de D’Annunzio. Este desejo ficou frustrado porque, como D’Annunzio lhe mandou dizer, «tenho telhados de vidro», mas isto não impediu que Gramsci defendesse a conveniência daquela aliança em artigos publicados no seu jornal L’Ordine Nuovo. Esta convergência política inscreveu-se no quadro do nacional-bolchevismo.
Pois bem, o artigo de Nino Daniele está em São Paulo, guardado numa biblioteca, talvez exista noutras, está em Paris X-Nanterre microfilmado na BDIC, eu tratei do assunto pelo menos num livro que alguns brasileiros leram, não me recordo se o abordei em artigos também, e apesar de todos os dias se fazerem dissertações e teses sobre Gramsci isto e Gramsci aquilo, estes primórdios de nacional-bolchevismo continuam — tanto quanto sei — a não interessar ninguém. E quer o amável leitor que agora as pessoas abram os olhos para aquilo que durante anos a fio se esforçaram por não ver?
Na área do nacional-bolchevismo russo contemporâneo o nome inevitável é o de Limonov. Li há vários anos um bom romance dele, His Butler’s Story, escrito e publicado durante o exílio nos Estados Unidos, que me permitiu resolver um problema intrigante. Numa certa época da minha vida li muito Bukowski. Não gosto dos romances dele, que me parecem forçados, mas acho os poemas modelares, e intrigava-me que Bukowski, um anarco-individualista que eu situava na esquerda, se sentisse tão próximo de Céline, não só do estilo de Céline mas de algumas das ideias também — aliás, este é um dos casos em que conteúdo e forma são indissociáveis. Ora, o fascista Céline foi um partidário extremo das teses de Hitler e um dos grandes nomes do anti-semitismo em França. O paradoxo da afinidade que Bukowski sentia por Céline foi aquele romance de Limonov que mo resolveu. Leiam His Butler’s Story e em seguida vejam o filme de Joseph Losey, The Servant, que podemos considerar duas versões opostas do mesmo tema, e compreenderão o que é o fascismo enquanto movimento de circulação das elites. Também aqui, nesta encruzilhada de temas estéticos, é de nacional-bolchevismo que se trata. Mas será que o amável leitor que enviou a mensagem pensa que estas considerações sobre Bukowski e Céline contribuirão para esclarecer alguém que goste de Bukowski ou goste de Céline? Um foi um bom poeta e o outro foi um dos mais geniais romancistas do século passado, mas que se leiam com os olhos abertos.
É uma já longa sucessão de tentativas falhadas, sem nunca conseguir despertar a inquietação dos leitores. Por isso tomei a firme decisão de não escrever este artigo.
Eu lí o Labirintos do Fascismo, que o sr. tem republicado algumas partes no Passapalavra, como afirma. O livro é muito rico, mas tem o problema de ser um tanto confuso. Aliás, é uma marca tua ser muito claro nos artigos e um tanto confuso nos livros, porque escreve em capítulos sem conclusão interna e em livros sem conclusão final. De todo modo, saiba que alguém leu. Outro deve ter lido. Mas os gramscianos não devem ter lido e são eles que hegemonizam a esquerda universitária, com acesso ao teu livro. Que tal republicar todo o trabalho na net?
Quando ofende os que não sabem línguas estrangeiras haveria de saber se se trata da esquerda herdeira, com família que sustenta os estudos, vive sem trabalhar, e que se não souber outra língua é por opção ou se trata de alguém como eu que leio este texto deste as 7 da manhã para começar o batente logo às oito, sem que tivesse oportunidade para estudar em longo tempo.
Os teus escritos dão uma sensação de que tudo está perdido. Já que teve a oportunidade de ser educado e crescer como erudito, é muito bom que faça jus a essa condição e contribua com a instrução geral da nova geração. Mas quando se limita apenas a denunciar os laços com o fascismo que toda a esquerda possui, fica parecendo que não existe absolutamente nada no presente em que se possa apostar. O teu marxismo é um marxismo trágico que agora anda beirando o niilismo. Afinal, há alguma coisa positiva no presente ou ficaremos como indicou Hans Haacke: apenas a fazer um trabalho defensivo para que as coisas não piorem?
Pedro,
Limito-me a duas questões de facto. A primeira, é que eu não tenho republicado partes do Labirintos do Fascismo em artigos deste site. Eu não republico textos. Continuo a trabalhar os temas e, quando os trato de novo, é acrescentando outras perspectivas e mais bibliografia. A segunda, é que eu não insulto pessoas por não conhecerem línguas estrangeiras. É necessário distinguir quando a pobreza é uma justificação ou quando é um pretexto. Na Europa, onde também existem trabalhadores que se levantam às não sei quantas da manhã, dificilmente se consegue um emprego que implique qualquer tipo de contacto com o público sem saber inglês. E se se tratar de um trabalhador catalão ou basco, terá de saber três línguas: a da sua região, o castelhano como língua veicular no país e, naturalmente, o inglês. Quanto ao resto, trata-se de apreciações suas, que não vou comentar.
Se já não correu, essa palestra do Dugin seria uma boa oportunidade para se manifestar pela libertação das Pussy Riot. Como se vê, o antiliberalismo de Dugin é bastante prático.
Lucien Rabatet deve ter algum texto de Proudhon que nunca ouvi falar nem tive contato, pois chamar Proudhon de um dos precursores da “revolução do socialismo autoritário” não me parece nada convergente com o que li de Proudhon.
Sobre Gramsci, é interessante como se faz uma leitura social-democrata, quase libertária ou liberal dele no Brasil.
Semana passada mesmo me deparei com uma fala de Marilena Chauí em que ela frisa que Gramsci nunca falou em ‘luta por hegemonia’, mas soemnte ‘contra-hegemonia’, e tira disso conclusões quase libertárias. Mas o fato é que o oposto é que é verdade. Gramsci nunca falou em ‘contra-hegemonia’ (que é um conceito criado pelos seus leitores) mas apenas em ‘luta por hegemonia’. O video da fala de Chauí: http://www.viomundo.com.br/politica/chaui-na-greve-dos-professores-uma-burrice-politica-completa.html
Acerca do interesse que a extrema-direita francesa teve, e ainda tem, por Proudhon pode ler-se, como simples introdução ao tema: Zeev Sternhell, La Droite Révolutionnaire, 1885-1914. Les Origines Françaises du Fascisme, Paris: Seuil, 1984, págs. 177, 186-187, 286, 344 e 392. Proudhon era muito apreciado por Charles Maurras — daí, aliás, o nome dado ao Cercle — e praticamente todo o fascismo francês havia passado pela Action Française. E não foi só Rebatet quem considerou Proudhon como o precursor de um fascismo francês, mas Drieu La Rochelle tinha a mesma opinião, como se vê, por exemplo, em Paul Sérant, Le Romantisme Fasciste. Étude sur l’Oeuvre Politique de quelques Écrivains Français, Paris: Fasquelle, 1959, pág. 69. Aliás, a invocação de Proudhon apareceu frequentemente associada à de Sorel entre os sindicalistas-revolucionários italianos na altura da campanha intervencionista, que constituiu a génese do fascismo. Também noutros países latinos Proudhon teve uma influência grande na extrema-direita corporativista, sobretudo entre os defensores do que Manoilescu definia como a sua modalidade pura e integral.
Que eu saiba, quase todos os departamentos de filosofia das universidades brasileiras viraram casas do pensamento conservador e de direita.
Bem sei que não gostas muito de Foucault, João. Mas parece-me que há apesar de tudo algumas zonas de contacto com a tua interpretação do fascismo (que vai indubitavelmente mais longe) e algumas passagens dele a propósito do mesmo tema (sempre relativamente laterais no conjunto do seu pensamento):”Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do AntiÉdipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas quotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora”. http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/vidanaofascista.pdf
Entendo a reserva, mas lamento. Mais ainda porque, num momento de ascensão tardia de um pensamento protofascista (leia-se: uma teoria mística com afinidades internas e cegas com o pensamento fascista, portanto, sorrateiramente sedutora), há um apagão da inteligência crítica sobre esse fenômeno. O fascismo, reduzido e fossilizado pela crítica histórica, hoje, a um interregno aparentemente superado da história do século XX, passa desapercebido de todos, sob formas novas e reelaboradas. Essa reebaloração ainda não foi pensada e criticada, de maneira que se está inerme diante da situação. Que Dugin apareça como um intelectual público relevante atesta o desamparo da capacidade crítica pela esquerda.
Prova disso, no Brasil, serão organizados, em várias cidades e Estados brasileiros, encontros sobre o pensamento de Evola, com lançamento de livros de Dugin previsto. Existe uma sedução, ensejada pelas diversas demonstrações de esgotamento do capitalismo global, pelo pensamento antimoderno mais arcaizante, que demarca uma pretensa e romântica posição crítica. O conceito de Tradição de Evola é o fundamento dessa sedução e dessa nostalgia mitológica. E esse pensamento se dissemina cada vez mais aqui, se espraia à sombra de três fracassos no campo das esquerdas.
O fracasso do anarquismo em todas as suas formas (um praticismo muitas vezes púbere, apenas político e muitas vezes ético). Os conceitos-chave do pensamento anarquista, através de inúmeras elaborações cosméticas contemporâneas, segue incapaz de formular uma crítica sistemática, incluindo econômica, para além dos jargões políticos clássicos. No Brasil ao menos, o anarquismo serve no máximo como denúncia das hierarquias e das organizações verticais, sem compreender a funcionalidade desses tipos de estruturas e sua natureza sudordinada a categorias do funcionamento automático da produção capitalista. A prática continua cega e romântica. Não é casual que ele continue minoritário e muitas vezes seu desaguadouro sejam ghettos de valores comunitaristas, com suas nostalgias localistas e suas idealizações da classe trabalhadora.
No campo do marxismo, que aqui e ali ainda formula críticas sistemáticas e categoriais do capitalismo, a vertente dominante, porém, segue combinada com um neodesenvolvimentismo acrítico. No Brasil, essa imbricação é flagrante e estabelece os limites da crítica. Grande parte do marxismo difundido no Brasil é apenas uma modulação das teorias de modernização do século XX. Neste caso, a crítica econômica vem a contrapelo da crítica da economia política, que é o fundamento primeiro da contribuição do marxismo crítico.
Um terceiro fracasso que seria preciso enumerar consiste na derrocada das ilusões pós-modernas que nutriram as esperanças conformistas da última geração. Depois de naturalizar a economia e se concentrar em temas de consenso e sobre diferenças particulares (ecologia, gêneros, etc.), a utopia pós-moderna só poderia perder a credibilidade, numa perplexidade defensiva, depois que a crise “meteu dialética” na cabeça até do burguês multicultural mais renitente. A economia capitalista, no seu debacle mais agonizante e mundial, reapareceu num momento em que as teorias pós-modernas já lhe haviam dedicado um tratamento marginal.
A mística protofascista, com seus apelos hermenêuticos à Tradição, içada e reformulada como teoria com pretensões críticas, vem agora na crista da onda da vaga de oposição. Nesta hora histórica, parece o único vento fresco de novidade.
A propósito do que escreveram os dois Ricardos, convém, Noronha, não exagerares a minha falta de estima pelo Focault, mas é verdade que se ele não fosse tão elogiado eu não me mostraria tão renitente. O certo é que não creio que possamos ir muito longe com uma interpretação psicológica dos fenómenos históricos, porque a tal ânsia pelo poder, se existe como dado psicológico, então é supratemporal e não explica um fenómeno, neste caso o fascismo, que é localizado no tempo. Ou, se admitirmos que a psicologia resulta de uma conjuntura histórica, então é esta conjuntura que devemos explicar.
Quanto ao que Ricardo Nogueira escreveu, parece-me talvez interessante indicar o seguinte. Muito simplificadamente, na segunda metade do século XX o fascismo foi norteado por duas vertentes distintas. Uma, a que eu, quando falo com os meus botões, chamo fascismo social, teve como principal representante Maurice Bardèche, que além do mais foi um erudito conhecedor da obra de Balzac. Para Bardèche o fascismo fora uma estrutura social, e as pessoas de esquerda leriam ainda hoje com muito proveito o seu livro Qu’Est-ce que le Fascisme?, Paris: Les Sept Couleurs, 1961. A outra vertente é a que encontra em Julius Evola a figura mais expressiva, e que eu denomino fascismo místico, o mais directo continuador do misticismo dos SS. Se no fascismo tal como foi concebido por Bardèche há lugar para uma circulação e renovação das elites, no fascismo concebido por Evola é necessário que as elites se fixem de maneira definitiva, racicamente. O racismo entendido como um misticismo, foi essa a lição dos SS, e é por esta via que se deve entender a afinidade do fascismo com os temas ecológicos, o misticismo da Mãe Terra. É este tipo de fascismo que hoje parece interessar muitos brasileiros, como Ricardo Nogueira indicou.
Acrescento o seguinte. Especialmente impressionante no caso dos fascismos eslavos contemporâneos, ou do nacional-bolchevismo eslavo enquanto forma radical de fascismo, é o facto de o racismo do Terceiro Reich ter sido intrínseca e estruturalmente antieslavo. Os eslavos eram a sub-humanidade, destinada a ser escravizada, sem por si própria ser capaz de se revoltar, a menos que a conduzissem os judeus. Por isso a chacina dos judeus era entendida por Hitler e pelos SS como a condição para a escravização definitiva dos eslavos. Esta postura totalmente antieslava levou Hitler a recusar qualquer colaboração com os fascistas russos, dos quais existia um núcleo significativo exilado na Manchúria. Durante a guerra os SS só aceitaram elementos da Galícia ucraniana, que Hitler e Himmler consideravam racialmente distintos dos eslavos, enquanto o resto da Ucrânia estava votada ao destino que se sabe. Logo a seguir à guerra os fascistas russos, seduzidos pelo nacionalismo vitorioso de Stalin, procuraram pôr-se à disposição do comunismo soviético, já que o fascismo germânico não os havia aceite, e Stalin — que outra coisa se poderia esperar dele? — mandou dizer que sim, que os recebia, e depois mandou prendê-los e matá-los. E agora, num país em que praticamente não há nenhuma família que não tenha pelo menos alguém que foi morto pelos nazis, há quem faça a apologia não do fascismo social mas do fascismo racial. É bom sabermos do que se trata.
João Bernardo, escrevo para agradecer por seu texto generoso. Sobre Dugin você diz não escrever, embora tanto tenha escrito: a relação do bolchevismo com o nacionalismo na Alemanha e por extensão na Rússia, o flerte do partido comunista com a fascismo na Itália ou a tendência corporativa de certas tradições tidas como libertárias na França – isso para não comentar a apropriação local enviesadamente interessada de Gramsci… Todavia há que se desculpar por não escrever algo que, de fato, está escrito!(…) Seu compromisso com a produção e partilha do conhecimento parece ser mais forte que alguns comentários sanguíneos que são dirigidos a seus textos.
Obrigado por partilhar experiências pessoais sobre os (des)caminhos da esquerda de modo tão lúcido e delicado. Nestes tempos em que falar de experiências subjetivas parece sempre ser uma concessão burguesa, nada mais ético que destacar nuances políticas a partir de percepções reconhecidamente particulares.
Talvez por isso seu texto incomode tanto a alguns que teimam em permanecer viúvas de formulações mais peremptórias e pretensamente impessoais. Como Bukowski, talvez nos interesse menos a fortuna crítica e mais o pauperismo da experiência. Deixemos as teorias adesistas a figuras como Limonov que se basta no cinismo de uma literatura insossa, ainda que azeda a paladares mais aguçados. Saudações!
Caro João Bernardo, aqui fala o tal “leitor amável”, e com esta designação tua veio, é claro, um tom irônico indicando ingenuidade da minha parte. Acho que mesmo alegadamente não adotando a sugestão de análise do nacional-bolshevismo de Dugin, que tenho certeza possui suas especificidades enquanto ideologia eurasiana que vigora na Rússia, ao escrever este artigo de carácter auto-crítico com relação, pelo menos, ao (público do) Passa Palavra, fez com que a sugestão valesse suficientemente a pena. Por isso agradeço. Mas só para esclarecer, e isto é apenas por se vias das dúvidas fui mal interpretado, não um ataque, o meu e-mail não foi de forma alguma uma indireta a você. Desculpe se fui muito pretensioso ao sugerir que escrevessem um artigo, imagino que isso não seja comum; é uma daqueles situações em que se pensa que algo deveria ser feito, mas você mesmo é incapaz de fazê-lo.
Não participei da discussão envolvendo o texto “Ponto Final”, apesar de tê-la acompanhado, e não tenho a mesma percepção tua sobre o público do Passa Palavra, embora tua crítica se aplique a grande maioria da esquerda. O fato de você ser incômodo para outros não deveria de modo algum ser um incômodo para ti. Aqueles mais atingidos são provavelmente os que se sentem mais impelidos a intervir, comentar, etc., e mesmo assim muitos saíram em sua defesa, é claro que não integralmente já que a intenção deveria ser justamente tirar-te do mar da desistência. Sou de maneira geral leigo em História, situação que em breve pretendo começar a reverter, por isso considero essencial que artigos como os de João Valente Aguiar (http://passapalavra.info/?p=62764), tuas séries de artigos “O mito da natureza” e “As raízes ideológicas do Brasil Potência”, e “Socialismo da abundância, socialismo da miséria” sejam publicados e divulgados a fim de prevenir, ou no mínimo atentar para, erros fundamentais, comuns, e às vezes até banais, da esquerda — erros estes que possuem implicações políticas graves, e que muitos acabam reproduzindo onde quer que seja que convivam, militem, debatam, etc.
Marcus,
Eu gosto de ser irónico, mas há muitíssimas ocasiões em que aquilo que escrevo significa exactamente e apenas o que lá está escrito. Quando mencionei a sua amabilidade foi um desses casos. É que foi uma amabilidade mesmo. Muito obrigado.
Gostaria de opinar sobre dois aspectos do texto.
1) Quanto ao nacional-bolchevismo na gênese da corrente conselhista.
O conselhismo germano-holandes como corrente política com influência de massas está extinto desde os anos 1930 (não sobreviveu à ascensão de Hitler). Como corrente teórica restaram análises de alguns de seus principais expoentes (Pannekoek, Korsch, Mattick, Rhüle, Gorter). Neste seu curto período de existência – comparativamente com outras correntes políticas – seria necessário demonstrar em que medida as proposições e concepções de Laufenberg e Wolffheim permearam a prática dos conselhistas alemães, já que eles foram excluidos com muita brevidade do KAPD. Até onde sei, não me parece que as ideias nacional-bolcheviques da dupla tenha continuado de alguma maneira através de qualquer das duas vertentes em que a corrente conselhista se subdividiu (a tendencia das uniões operárias e a tendência partidaria). Diferente do que ocorreu com as posições de Karl Radek no seio da III Internacional a partir de 1923.
2) Sobre os usos que uma idéia permite
Não sou especialista em Proudhon, no máximo um leitor precário que não se identificou com o pouco que leu. Portanto, fico a vontade para dizer que o que ele escreveu (ou qualquer outro) não necesariamente pode ser associado ao que fascistas em França tenham considerado ser sua “fonte precursora”.
Também aqui resta demonstrar.
A utilidade que vejo para o momento presente em realizar ambas demonstrações, para além de reforçar a noção de que não devem exitir “santos dentre santos”, é que as ambiguidades podem ter maiores ou menores repercussões em uma prática que se pretenda transformadora nos dias de hoje baseadas nas contribuições de Proudhon ou do conselhismo alemão.
Claro, já faltavam. Chegou o comentário de Zé.
Muito brevemente, quanto ao primeiro aspecto não é a mim que cabe demonstrar, mas a si que cabe dizer se leu ou não Laufenberg e Wolffheim. Se não leu, aconselho-lhe que leia, para começar, o relatório de Laufenberg, publicado em Junho de 1919, portanto quase um ano antes do congresso fundador do KAPD. Esse relatório acerca da actividade de Laufenberg à frente do conselho revolucionário de Hamburgo é uma expressão eloquente de nacional-bolchevismo e pode ser encontrado em Denis Authier e Jean Barrot, La Gauche Communiste en Allemagne (1918-1921), Paris: Payot, 1976. Como disse no artigo, quando o KAPD se formou, o seu órgão era o jornal dos comunistas de Hamburgo e toda a gente conhecia aquele relatório. Mas se o senhor desejar saber mais acerca do assunto aconselho-lhe a leitura de uma verdadeira obra-prima da historiografia, indispensável para o conhecimento do nacional-bolchevismo na Alemanha: Jean Pierre Faye, Langages Totalitaires. Critique de la Raison — l’Économie — Narrative (ed. corr.), Paris: Hermann, 1980.
Quanto ao segundo aspecto, se o senhor escreve no seu comentário que leu «pouco» Proudhon, é o senhor quem deve começar por ler. Aliás, quanto a este aspecto indiquei uma bibliografia sumária num dos comentários a este artigo, remeto para lá. Qualquer pessoa que tenha um conhecimento médio do fascismo nos países latinos não ignora a importância que sobre ele exerceu o pensamento de Proudhon. Pelo que entendo do seu comentário, o senhor não está nesse caso.
Caro,
só espero que continues a escrever assim sobre o que faz com que não escrevas – sobre o fascismo e o resto.
(Um longo parênteses: Creio que percebo o fascínio juvenil que um certo satanismo de Foucault – o poder em si é o mal e existe sempre, e, se onde há poder há resistência, deixai toda a esperança, vós que entrais na resistência, porque não podeis fazer mais do que só isso sem reproduzir o poder – exerce sobre o nosso camarda Ricardo Noronha. Mas, como é evidente, estou longe de aprovar essa fraqueza: o grão de verdade que, apesar de tudo, aparece em certas análises de Foucault, estava já no que há de melhor numa Escola de Frankfurt que ele não cita, ainda que a Escola de Frankfurt também deva ser severamente criticada sob outros aspectos, que aqui não posso abordar. Viu-o bem Castoriadis, que não morria de amores por Adorno… Mas é verdade que, também eu, se não visse o niilismo decisionista de Foucault, ou o seu decisionismo irracionalista, incensado tão acriticamente, seguiria o teu exemplo e não acharia tão necessário perder demasiado tempo com a sua caixa de ferramentas. Dito isto, não sei se o psicologismo será o pecado principal do Anti-Saint-Michel em causa e da sua, pasme quem toma por evangelho as suas profissões de fé histriónicas, antropologia sumária.)
Abraço para o Ricardo Noronha e para ti
miguel serras pereira
Fiz uma colocação que ficou sem resposta. O autor citado se apresentou a convite de um departamento de filosofia e eu disse que os departamentos de filosofia são hoje, no Brasil, na maioria, centros do pensamento conservador e da nova direita. Ora, se um autor de direita é convidado por departamentos de direita, qual a novidade? Só haveria novidade para os que acham que a universidade é de esquerda, em princípio. Cabe pesquisar os outros grupos que convidaram o ideólogo de Putin. Ver isto na UFRGS não é nenhuma novidade, só esclarece mais as coisas.
João Bernardo teve o privilégio histórico e social de não só adquirir uma formação erudita, que começa na família e na rede de proteção que a cerca, mas ainda conhecer fatos e pessoas distantes da esquerda ralé que se pretende anticapitalista no Brasil de hoje. Se está descontente com a safra de anticapitalistas atuais, sem a erudição e robustez política da anterior, isso de modo algum deveria ser pretexto para que deixasse de escrever. Já idoso, a instrução geral é hoje a tua principal função e se a atual geração é muito pobre caberia pensar que os textos publicados hoje na net servirão a uma nova geração, ou mesmo a esta, tanto desconhecedora de suas lacunas e sem a experiência de um processo revolucionário. Ou escreve, ou se cala, o resto é falta de paciência histórica.
Por fim, certas posições do Bernardo estão em sintonia com uma grande dicotomia de seu marxismo trágico (considero trágico aqui como algo positivo porque avesso à esquerda final feliz e idealista que caracteriza o marxismo e anarquismo atuais no Brasil). Em toda a tua obra, Bernardo oscila, por um lado, entre um otimismo quando tece considerações sobre respostas coletivas da classe trabalhadora – tratada coletivamente – e um pessimismo quando se refere a pessoas e grupos em particular com relação a esta classe. Na obra dele alterna-se de um lado uma classe trabalhadora que em alguns momentos é revolucionária, mas em tantos outros deixa os revolucionários tão abandonados pela estupidez popular quanto ficaram os profetas da odisseia bíblica. Em dados momentos ele faz a apologia de uma classe capaz de respostas, em outros ela surge como um bloco estúpido incapaz de sequir os revolucionários de seu tempo. Mas em toda a sua filosofia da história há uma elite de revolucionários a insuflar e instruir o povo. A elite é tratada nominalmente enquanto os trabalhadores surgem sempre em bloco. Ora, há uma dicotomia porque se explicitamente há longas passagens sobre o potencial de autonomia dos trabalhadores – otimismo seguido por Tragtenberg -, implicitamente há a descrição da permanente existência de uma elite de revolucionários sem a qual o povo não se levanta. A esta luz devem ser interpretadas passagens sobre o “lucidíssimo” Marat e tuas zangas com a pobreza dos revolucionários atuais. De todo modo, a dicotomia permanece. Se é sempre necessária uma ilustrada equipe de lutadores sociais e hoje ela é tão pobre, por que escrever não é? Eis o pano de fundo.
Por fim, saber que da universidade saem os quadros para os jornais, empresas de net, tv, partidos,agronegócio, empresas, ongs, secretarias, ministérios, judiciário, exército, igrejas explicita a função central da universidade como centro do poder num sentido amplo e porque o ideólogo de Putin é convidado para ela e não para palestrar na ROTA.
Pedro,
Já parou para pensar que o que chama de “dicotomia”, “oscilação” e “alternância” é o próprio movimento da luta de classes?
Paulo,
A contradição está no fato de explicitamente ele afirmar o potencial autônomo da classe trabalhadora em dar respostas e combater o capital mas, implicitamente, ele ver sempre uma equipe de ilustrados revolucionários a chacoalhar esta classe, mobilizá-la, fazê-la seguir adiante. Ele dá uma diferença de tratamento e trata sempre dos trabalhadores em bloco enquanto refere aos ilustrados revolucionários nominalmente. O que demonstra uma hierarquia não sem importância.
Afinal, a classe é capaz por sí ou depende sempre desta equipe de ilustrados revolucionários? Se ela é capaz por sí, pode escrever que haverá quem aproveite os textos hoje ou a futuro. Se não é capaz e a atual safra de revolucionários é de má qualidade, justifica-se então o “sei, mas não escrevo”.
Obs: se eu escrevo – “desci da jega, comi um marroco, tava tirando uma chinfra, na hora do pá pode pá que pá” o Sr. João Bernardo não vai entender nada do que digo, assim como desconheço inglês, mas em tantos cantos é esta linguagem que os trabalhadores usam para sobreviver e para lutar e não as que o capital ditou como de obrigação para os trabalhadores portugueses serem explorados na Europa ou E.U.A.
Por fim, João Bernardo bem sabe e escreve, deve ter se esquecido, que os desenvolvimentos educacionais são dados pelo quadro econômico geral. Assim, se é comum que trabalhadores com possibilidade de migração européia aprendam todos inglês, pouco o é quanto aos precarizados brasileiros, todos envoltos no mercado interno, por vezes mesmo regionais ou até local. O inglês no Brasil não é uma língua dos trabalhadores, errou na análise.
Na verdade, Miguel, não é nenhum satanismo que me atrai, mas o estudo dos dispositivos de confinamento, de vigilância e de controlo, o seu funcionamento interno e o seu impacto histórico na formação da modernidade capitalista. A fábrica e a escola como reflexos da prisão e do hospício.
Isso e o questionamento de certos usos de termos como “verdade”, “científico”, “objectivo” e outras misérias do positivismo.
Quanto à tua descrição das posições de Foucault a propósito do poder e da resistência, parecem-me uma caricatura e, enquanto tal, difíceis de debater. Mas que isso não nos desmotive, camarada.
Caro João, não me parece avisado resumir a temática e problemática do desejo a um assunto psicológico. Pelo menos não nos termos ahistóricos em que tu a colocaste. Em todo o caso, prescindo facilmente de Foucault a esse nível a favor de Reich e de algumas das principais hipóteses desenvolvidas em “A psicologia de massas do fascismo”. E parece-me que a tua reflexão acerca do fascismo como ódio plebeu às elites tradicionais motivado pelo desejo de ascender à sua posição não anda demasiado longe dessas hipóteses.
Um abraço a todos.
Ricardo,
Já que estamos a falar destas coisas, e para mais evocaste o inevitável Reich, lamento que seja tão pouco estudado, ou simplesmente lido, o homem que ergueu a mais notável construção intelectual para analisar os sistemas de poder e que melhor colocou em ficção o fascismo enquanto ódio plebeu às elites tradicionais motivado pelo desejo de ascender à sua posição, como tu dizes. Refiro-me a Elias Canetti e ao seu ensaio Masse und Macht, que eu traduzo para Multidões e Poder (a versão inglesa chama-se Crowds and Power), bem como ao seu romance Auto de Fé. Se há alguém que vale a pena ler é ele.
Eu concordo, de modo geral, com a sua avaliação, João Bernardo. No entanto, noto que há representantes do pensamento místico protofascista, hoje, que dispensam, ou suavizam ao mínimo, o elemento propriamente racial, e num sentido bastante determinado. Esse pensamento desenvolve uma concepção essencialista das culturas e dos povos segundo a qual o vital, segundo a Tradição, é a manutenção da homogeneidade dessa mesma cultura. É evidente que essa tese justifica, de antemão, toda e qualquer forma de dominação direta, a depender do diagnóstico da essência da cultura, inclusive formas de dominação pré-modernas. Aqui, diga-se, ela se consubstancia com descaminhos da crítica banalizada do imperialismo, tomando feições de esquerda. Soberania se converte em Cultura, entendida nos termos da Tradição. Até certo ponto, porém, essa teoria mística é incapaz, na presente hora mundial, de implementar ou mesmo apresentar um sistema de dominação direta e abertamente arcaico. Isso se deve, a meu ver, ao influxo – embora cada vez mais rarefeito – do multiculturalismo, do qual a perspectiva mística em questão extrai sua credibilidade pública e atenua o que outrora seria um escândalo. Ou seja, essa teoria mística, reabilitada mediante uma reformulação em que o elemento racial se dissolve no cultural (negação, pois, da fase anterior de biologização mística das raças), pode sobreviver, aludindo ao título de um famoso livro de Evola, de pé entre as ruínas.
Ricardo (Noronha), como não tenho tempo para me alargar sobre a questão Foucault, que, de resto, é tangencial no contexto dos problemas que o João Bernardo levanta, fico-me por algumas observações avulsas.
1. É certo que as concepções de “verdade”, “objectivo”, “ciência”, etc. do “positivismo” são insatisfatórias e tributárias ou serventuárias, em larga medida, da dominação hierárquica. O problema é que Foucault incorre demasiadas vezes no erro banal de deitar fora o bebé com a água do banho em vez de sugerir concepções alternativas – ou insinunado até que quaisquer concepções da verdade, da racionalidade e da selecção dos seus critérios de validade são sempre fundamentalmente e só refinamentos dos dispositivos da dominação.
2. Foucault também não consegue pensar o poder, a lei e a instituição senão como dominação. O que reduz as perspectivas da emancipação e da autonomia à impotência ou à reprodução do mesmo.
3. A única concepção de “revolução” que, salvo erro, merece a aprovação de Foucault é a “teológica” ou “religiosa”: “teológica” ou “religiosa” no sentido de “alternativas à razão” -precisamente porque, tendo condenado a racionalidade ao poder e o poder à dominação, a fé no supra-racional arbitrariamente declarado e assumido lhe pode servir. Assim, quando a hipótese teológica é abandonada, resta a circularidade fechada do poder e da resistência ao poder, estando esta última condenada, sempre que dá um passo em frente, a dar dois atrás.
4. A “ars erotica” é preferível à “scientia sexualis” – mas porquê (do ponto de vista de Foucault)? A primeira não é menos “socializadora”, “educadora”, “normativa”, etc. do que a segunda. Ora, a “socialização”, a “educação” ou “paideia”, a “norma” são, independentemente dos seus conteúdos ou formas históricos, aquilo que ou aceitamos como dominação (igual a poder) ou aquilo a que só podemos resistir sem esperança na instituição de um poder que seja exercício de liberdade e sua condição. O que Foucault nos proíbe de pensar é a autonomia, como condição de uma sociedade que se dá e transforma, sabendo que o faz, a sua própria lei.
Enfim, poderíamos continuar indefinidamente sem sair desta cepa torta. Que, bem vistas as coisas, não nos dá critérios que legitimem mais uma república dos conselhos e a sua cidadania governante do que um gulague ou Auschwitz, ou em nome dos quais, apesar de tudo, possamos defender o habeas corpus contra as lettres de cachet. Em suma, com a conversa do satanismo e do niilismo o que eu queria dizer é que não nos leva muito longe denunciar a dominação quando, ao mesmo tempo, a declaramos, de direito, omnipotente e inelutável, sem ousarmos outro exercício ou concepção do poder, da norma, da socialização, e assim por diante. Caricaturo? Talvez, na medida em que todo o resumo o faz, mas creio que não invento.
Abraço
msp
Caro João, como está?
Você acha que essa única menção simplesmente, num artigo obscuro de uma pessoa obscura (como você mesmo relata, eu nunca tinha ouvido falar), a essa possível tentativa de aliança entre Gramsci e o tal fascista é suficiente para considerá-la efetivamente comprovada? Não sei, não tenho conhecimento sobre esse assunto ou sobre meandros da biografia de Gramsci, mas como leitor leigo me pareceu uma fonte ao menos para se desconfiar, por ser a única e por ser envolvida nos fatos de forma interessada. Não acha? Há outros indícios disso?
“A primeira menção que encontrei a uma tão inesperada tentativa de convergência política foi na Storia del Fascismo de Enzo Santarelli, vi-a mencionada também num artigo de Sergio Caprioglio na Rivista Storica del Socialismo em 1962, mas ambos remetiam para um artigo de Nino Daniele, «Fiume Bifronte», publicado em 1933 numa obscura revista intitulada I Quaderni della Libertá. Seguidor de D’Annunzio, Daniele manteve-se na vertente mais radical do fascismo, o que o levou a entrar em divergência com o regime de Mussolini e a exilar-se no Brasil, publicando aqui, numa edição precária, o relato das insistentes tentativas de Gramsci para ser admitido à presença de D’Annunzio.”
Um abraço,
Júlio
Ah, achei interessante o apontamento em relação às místicas, se eu fosse um leitor amável como Marcus sugeriria ou pediria um texto sobre isso…
Abraços!
Até onde eu entendi, a indisposição do João Bernardo se dirige aos militantes dogmáticos, aferrados em posições que há anos ele vem denunciando como oriundas de práticas tecnocráticas. Me parece que havia concluído que – citando um artigo publicado aqui há algum tempo – “É como lavar o focinho a um porco: gasta-se sabão e chateia-se o porco.”, levando-o a abandonar as “ilusões” sobre a possibilidade das questões serem racionalmente apreciadas.
No entanto, ante o pedido de um leitor, tece um texto indicando em qual lugar vinha falando destas coisas, fazendo as mediações para o caso ser enquadrado dentro de sua perspectiva, provocando o leitor a procurar mais referências e, principalmente, abandonando o que havia se proposto a fazer no artigo Ponto Final.
Agora, sobre o incômodo gerado por serem apontadas as deficiências dos militantes, isto pode servir para duas coisas: para as pessoas, como gatos magoados, passarem a lamber as próprias feridas e justificarem os seus problemas, ou; constatarem a situação e agirem para solucioná-la. Para mim esta diferença de apreciação faz uma verdadeira clivagem entre os que estão dispostos a resolverem os problemas e entre aqueles que estão dispostos a justificar seus problemas. Chorar é bom, mas não resolve, infelizmente.
Júlio,
Um historiador profissional não se deixa enganar tão facilmente. E não sou eu o único a aceitar essa fonte como legítima, então já seriam vários historiadores profissionais a deixar-se enganar. Vejo que você tem em escassa consideração a minha, aliás nossa, competência. Sugiro-lhe que procure a revista nas bibliotecas e leia o artigo, e que leia acerca de Nino Daniele e acerca da ditadura de D’Annunzio em Fiume. Sugiro-lhe também que consulte os artigos de L’Ordine Nuovo de Janeiro e Fevereiro daquele ano de 1921, não assinados mas escritos por Gramsci, em que ele se esforçou por agravar as fricções existentes entre os fascistas de Mussolini e os legionários que acabavam de abandonar Fiume, e por captar os legionários e o seu chefe, D’Annunzio, para o campo dos comunistas. O mesmo tema regressou num artigo de 9 de Agosto e reapareceu mais tarde nas Oito Lições sobre o fascismo que Togliatti ministrou no exílio moscovita.
Mas o problema principal parece-me ser outro e consiste na recusa imediata que a maioria dos leitores deste site manifesta perante alguma informação nova que os incomode. Bastam como amostragem os comentários a este artigo. Um leitor que nunca ouviu falar que Proudhon se pudesse contar entre os inspiradores da extrema-direita francesa nem leu nenhum texto de Proudhon que justificasse essa propensão, em vez de procurar informar-se, recusa a informação. Aparentemente nunca leu os textos anti-semitas de Proudhon nem os seus elogios às vitudes guerreiras nem as suas críticas às greves e, o que é mais grave para o caso, não leu nada de substancial sobre a formação da extrema-direita francesa no boulangismo e no affaire Dreyfus. O pior é que, ao deparar com a pista que forneci, a primeira reacção desse leitor tivesse sido recusar a informação em vez de procurar informar-se. O mesmo com outro leitor acerca dos nacionais-bolchevistas de Hamburgo e a formação do KAPD. O mesmo consigo agora. A reacção imediata de um cientista é a oposta, consiste em se precipitar para averiguar em vez de recusar. Parece-me que estou a falar de Darwin aos criacionistas devotos do Génesis.
No mais, agradeço-lhe a sua sugestão sobre as místicas, mas para quê? Abordei o assunto num artigo deste site (http://passapalavra.info/?p=41170 ), há mais de um ano. Se tiver paciência, leia os comentários àquele artigo. Acha que estou interessado em repetir a dose? Não creio que valha a pena.
De qualquer modo, muito obrigado pelo seu interesse.
Muito me incomodam algumas de suas considerações, João, mas precisamos disso. Por vezes suas colocações são irritantes, mas necessárias. Nos enfurece, às vezes, seu comportamento, que consideramos arrogante, mas o Sr. conquistou esse direito. Ao lermos teus escritos, consideramos nossas discussões, nossas trajetórias intelectuais inteiras, uma brincadeira de criança. Não deixe de escrever! Precisamos nos sentir desconfortáveis, precisamos ser contraditos, precisamos ser auxiliados a nos libertar do senso comum, precisamos nos sentir humilhados pela nossa aceitação medíocre de jargões ultrapassados. Peço que não desista de nós, João. Leva tempo para que se aprenda, sobretudo com os grandes mestres. Aquele que já chegou tão longe talvez não perceba o quanto é difícil a empreitada. Se os leitores por vezes não demonstram gratidão, saiba que existem aqueles que o admiram e que procuram, embora nem sempre com tanto sucesso, compreendê-lo e transformar suas ideias em uma ponte para um novo mundo emancipado. Saudações fraternas, João!
Por certo não conquistei direito especial algum e por esta classificação feita no último comentário eu seria um cidadão de segunda categoria. De qualquer, forma sinto-me no dever de dizer que por este caminho somente criamos um novo mito, que nada mais é que manter a antiga estrutura de submissão com nova roupagem.
Pra mim isto também não serve.
Meu querido João,
Apenas para que não fique dúvidas para si e para os leitores do PP, não houve de minha parte nenhuma atitude de recusa.
Não recusei a informação de que Laufenberg e Wolffheim sejam nacional-bolcheviques;
não recusei a informação de que o nacional-bolchevismo tenha estado na origem do conselhismo alemão;
não recusei a informação de que o nacional-bolchevismo seja uma variante de fascismo.
Essas 3 informações já eram de meu conhecimento antes do texto acima.
A questão que levantei foi: o que houve de nacional-bolchevismo na pratica dos conselhistas.
Em termos de incômodo, se houve algum, foi esta associação dos atuais nacional-bolcheviques russos com uma corrente política que procurou estar o mais distante de qualquer forma de nacionalismo. Isto não significa santificá-la. E se restar demonstrado que tenha fracassado em relação ao nacional-bolchevismo de Laufenberg e Wolffheim que seja tratada com o mesmo rigor que qualquer outra.
A propósito deste último comentário de Zé, tudo o que eu afirmei foi que o nacional-bolchevismo participou na origem do KAPD. O contrário seria de estranhar, porque na época essas e outras correntes cruzavam-se e, mesmo quando se opunham, havia entre elas uma circulação de ideias e de pessoas, atingindo por vezes proporções que hoje nos espantariam. O problema não se limitou ao grupo de Hamburgo, porque o KAPD não pôde deixar de ser arrastado para um espaço político nitidamente nacional-bolchevista quando o Exército Vermelho soviético invadiu a Polónia no derradeiro episódio da guerra civil. Nessa ocasião o conde zu Reventlow, figura proeminente da direita radical e um dos animadores do bloco racista no parlamento, procurou persuadir vários dirigentes políticos alemães a colaborarem com o governo soviético contra a Polónia. Estes seus esforços foram vãos, mas entretanto alguns corpos francos da Alta Silésia pretenderam entrar na Polónia para se ligar ao Exército Vermelho, e a direcção do Komintern decidiu criar uma comissão para a Alta Silésia, formada com representantes tanto do KPD como do KAPD, incluindo Wolffheim. Várias centenas ou mesmo vários milhares de alemães alistaram-se então no Exército Vermelho para combater a Polónia, e se alguns deles eram comunistas, outros eram fascistas.
Precisamente porque o fascismo foi — aliás, tem sido — um movimento transversal, que atravessa o espectro político e é capaz de mobilizar as suas várias facetas, é que a abordagem mais adequada é a de Jean Pierre Faye, que toma como unidades não os grupos, associações e partidos, mas os cruzamentos e circulações entre eles. Fê-lo com tanto mais facilidade quanto é, além de grande historiador, um linguista. A propósito de outro artigo publicado neste site, um amigo recordou um verso da grande poetisa Sophia de Mello Breyner, «navegavam sem o mapa que faziam» (poema completo aqui: http://purl.pt/19841/1/1980/1980.html ). Sucede o mesmo nas lutas sociais e políticas. Quem vai de mapa feito não descobre paisagens novas e arrisca-se mesmo a não chegar a lugar nenhum, novo nem velho, porque ou esses lugares já não existem ou as correntes mudaram de rumo. E de nada vale ter atitudes moralistas e querer venerar virgens imaculadas, porque para se navegar sem o mapa que se faz é indispensável assumir o direito de errar. «Trémula a bússola tacteava espaços».
João Bernardo,
Obrigado por ainda se dispor aos incômodos.
Pois é, João, de minha parte vale o mesmo do Zé acima, não houve recusa nenhuma, só perguntei ué… Achei estranho a única fonte citada ser de uma que você mesmo aponta como obscura, por isso perguntei, você respondeu e eis que temos um diálogo, maravilha. Exatamente por confiar em você e sobreutdo nesse espaço de troca de ideias é que parecia uma boa perguntar, essa é a vantagem da Internet, posso trocar ideias (e isso também é se informar) sem necessariamente ter que ir a bibliotecas, o que é ótimo mas nem sempre possível ne, agora por exemplo estou trabalhando. Durante todo seu texto, e nos comentários, você reclama de intransigência dos leitores e aí qualquer humilde dúvida já é vista também com instransigência… sugiro que “descanse seu gatilho”, porque às vezes parece que está se enfrentando com moinhos de vento…
Aquele abraço!
Sobre a discussão das místicas, obrigado por me remeter ao outro texto, João, gostei sobretudo desta parte, nos comentários:
“Tudo isto para dizer que a emoção é uma componente indispensável dos seres humanos e todos a têm, não faz mal a nada nem a ninguém. Outra coisa muito diferente, e situada noutro plano, é a elaboração de práticas rituais destinadas a consolidar uma identidade colectiva num quadro irracional e não racional. E o elemento que eu uso para distinguir estas duas esferas é a presença ou ausência de espírito crítico. Chegando à questão de viés. Não é interessante que as organizações de extrema-esquerda e uma tão grande parte dos militantes detestem a ironia ou nem sequer a entendam? É que a ironia é uma forma hábil de espírito crítico, é o tambor que bate numa cadência diferente e destrói a marcha do batalhão. Por que motivo alguns movimentos sociais tomam como modelo das suas místicas certas cerimónias religiosas e não as conversas de boteco em torno de uma mesa cheia de garrafas de cerveja? Também há espírito de grupo e solidariedade colectiva em torno das mesas de boteco, mas há igualmente ironia e conversas que são um fogo cruzado e não um coro.”
Pena que depois o papo não aprofundou muito por esse lado lá na discussão.
Abraços!
Escrevo não sobre o artigo não escrito.
E sim sobre uma discussão paralela e marginal, diria periférica? Ao ler o Pedro e seus rancores lembrei de uma meditação de Fabiano em Vidas Secas.
Podia mudar de sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo
para amassar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também. Nascera com este destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer?
Ah, mas que estou cá a fazer, o Rodrigo sem miados já respondeu, e talvez a classe trabalhadora em luta também.
É certo que em situações de miséria e privação absoluta dos bens mais elementares da vida, não se escolhe, vive-se o movimento perpétuo do “círculo vicioso da pobreza”, que se caracteriza pela quase impossibilidade da escolha pessoal da vida que se quer viver. Seria este o caso da maioria das deficiências dos militantes? Já conheci analfabeto que foi alfabetizado na luta, à luz de velas, na madrugada, na ocupação, quando voltava do extenuante trabalho. Justificativas e lamúrias não mudam o mundo. Lutar talvez.
José Carlos, eu nem devia perder meu tempo…
A propósito desta discussão toda me recordei que nunca tais militantes, os sindicatos, os grupos, e os partidos ofereçam cursos de língua. Eles oferecem cursos de tudo, os de língua não, os de arte não… Se é tão importante, por que não ensinam? É necessário manter o capital cultural, as marcas de formação que distinguem os anticapitalistas herdeiros dos militantes populares.
Não é a primeira nem a décima vez que ouço de um ou três anticapilistas herdeiros a expressão “pobreza não é desculpa, se não possuem formação é porque não se interessam, são preguiçosos, lambedores de feridas, gostam de se lamentar”. São justamente os herdeiros, filhos de advogados, filhos de executivos, filhos de professores universitários, gente que herdou casa, comida, capital cultural, tempo livre que sai com estas. Parecem a classe média escravocrata acusando os pobres de serem culpados por não saírem da pobreza. Ora, se os populares não possuem dada formação deve ser culpa deles mesmos, dizem.
Eu poderia ir mais adiante sobre divisão interna entre militantes herdeiros e os vindos da pobreza, talvez escreva um texto um dia. Poderia recordar como se criam duas redes distintas de coleguismo, de trocas culturais, de reminiscências e outros…Afinal, as determinações são mais fortes do que as pessoas pensam e, parafraseando Mano Brow, você sai da elite mas a elite nunca sai de você.
Pedro escreve bem, parece ter feito bons anos de universidade.
O povo não.
O ressentimento tem sempre um efeito destrutivo. Destrutivo do próprio e de tudo aquilo que o rodeia. Observe-se a sequência de comentários deste artigo. A partir do momento em que “Pedro” — chamemos-lhe assim — expressou o seu ressentimento, a discussão deixou de se focar num problema importante, o nacional-bolchevismo, e passou a centrar-se numa questão irrelevante, as autojustificações de “Pedro”. Talvez a discussão ainda retome o rumo.
Retomando o debate sobre o que interessa…
João,
Fiz uma pesquisa rápida mas as datas não estão precisas. Mas me parece que o momento em que narras o envolvimento do KAPD com uma política nacional-bolchevique foi justamente aquele situado entre abril e agosto, ou seja da fundação até a expulsão dos nacional-bolcheviques de suas fiieras.
Se for correta tal períodização, será correto afirmar que o KAPD experimentou esta orientação na prática e a rechaçou. Ou seja, rompeu-se o entrecruzammento de uma posição comunista com uma fascista. A julgar pela perseguição que o KAPD sofreu de bolcheviques, nazistas e social-democratas desde então, podemos afirmar ainda que tratou-se de uma prática eliminada em seu interior e que lhe custou a extinção.
Zé,
O meu objectivo em tudo o que escrevi, não só sobre o fascismo e a história contemporânea mas sobre qualquer época histórica, é o de mostrar cruzamentos, indefinições, circulações entre campos opostos. Por algum motivo dou tanta importância ao conceito de ambiguidade na luta de classes e me esforcei por analisar essa ambiguidade inclusivamente no plano do vocabulário. Pelo mesmo motivo considero a obra de Jean Pierre Faye sobre a formação do pensamento de extrema-direita na Alemanha como uma das três obras-primas da historiografia.
É nesta perspectiva que considero importante saber quais as posições de Laufenberg e de Wolffheim, ou mais amplamente do grupo de Hamburgo, porque não se tratava só daqueles dois. E que considero importante saber que a formação do KAPD pôde ocorrer parcialmente naquele meio. Repito: parcialmente. O KAPD rompeu com a tentação nacional-bolchevista e com os conluios com os oficiais da Reichswehr tal como outros romperam também. Paul Levi fez o mesmo, isso custou-lhe a expulsão da direcção do Partido Comunista e depois do próprio Partido, indo animar uma facção de esquerda no Partido Social-Democrata. Hoje esse brilhante teórico é praticamente esquecido, e quando o mencionam é como advogado da Rosa Luxemburg. Levi está esquecido e o KAPD foi condenado à irrelevância política. Assim como estão esquecidos e não obtiveram relevo Franz Pfemfert e o jornal Die Aktion. Ora, tudo isto só pode ser entendido se em vez de a análise se centrar em grupos e figuras tomar como objectivo as redes, os percursos e as circulações. Não os nós, mas o tecido.
Como poderei exprimir-me mais claramente? A não ser que alguém se feche em casa e nunca saia à rua, se participar nos confrontos políticos da sua época uma pessoa escolhe os inimigos e, dentro de certos limites, escolhe os companheiros, mas nunca consegue escolher os aliados. Estes são-lhe impostos pela pressão das circunstâncias, pelas tais redes e cruzamentos que mencionei, formados num plano muito mais profundo. Vou dar-lhe um exemplo. Imagine um sujeito que seja firmemente contrário aos movimentos ecológicos, que os considere como uma das expressões de um pós-fascismo que não diz o nome. Apesar desse sujeito barafustar contra os movimentos ecológicos, os criticar na teoria e os denunciar na prática, você pensa que ele consegue participar em alguma acção de certo vulto onde os ecológicos não estejam presentes? O problema é exactamente o mesmo com os cruzamentos e sobreposições entre marxismo e nacionalismo.
Em suma, toda a nossa compreensão dos problemas muda se em vez de nos limitarmos às peças nos concentrarmos no jogo.
È João… durante anos atuei aliado a trotskistas, mas nunca me confundi com eles, percebia que jamais me tornaria um deles, e tampouco tinha dúvidas de que nossos caminhos se separariam. Hoje tenho encontrado um espaço de aliança com o anarquismo especificista, mas mesmo esse setor (que para mim é disparadamente o mais lúcido do campo anarquista) ainda apresenta certas ambiguidades na relação entre exploração e opressão que deixa uma fresta por onde pode passar uma afinidade com o liberalismo. Saber lidar com as ambiguidades continua sendo o desafio maior a vencer. E é justamente por não termos encontrado a forma de enfrentá-las que os gestores se afirmam no panorama da luta de classes com uma notável capacidade de lidar com a mobilidade social introduzida pelo capitalismo.
No mais, concordo contigo quanto à lembrança de Paul Levi, e do excelente trabalho de Franz Pfemfert com seu jornal. Acrescentaria outro esquecido: Otto Rühle. Um pedagogo que escreveu desde a introjeção do princípio da autoridade na mais tenra idade, passando pela superação das formas tradicionais de organização (partidos e sindicatos), até pensar a superação do capitalismo em sociedades industrializadas (algo atual para o Brasil imperialista).
Revisitá-los sem descuidar das ambiguidades, certamente ajudaria a não cometer erros velhos.
Zé,
Você fala-me em trotskistas e anarquistas. Mas as lutas sociais não se fazem com microscópio. No Brasil os trotskistas representam alguma coisa não directamente mas só pela sua capacidade de acção através das burocracias sindicais. Quanto aos anarquistas, quando não se disfarçam com o boné de um Movimento, constituem uma quantidade negativa, se é que este conceito pode existir no âmbito social. Falemos de tendências importantes, de grandes correntes de opinião.
Há pouco tempo, neste mesmo site, um autor que se pretende de esquerda publicou uma crítica a três autores de direita. E leio nessa crítica que «o senso de superioridade ocidental é sempre abalado quando vemos que uma mulher adulta pode optar conscientemente por usar um véu que lhe cubra todo o corpo caminhando pelas cidades da civilização da liberdade e do esclarecimento». Não me vou preocupar agora com a noção de consciência que está implícita nessa passagem e que é do mesmo tipo da que supõe que um consumidor opta «conscientemente» entre os produtos expostos na prateleira de um supermercado. A questão aqui fundamental é que o multiculturalismo permite a alguém ser feminista no Brasil e partidário da opressão das mulheres no outro lado do mundo, com o pretexto de uma rejeição do eurocentrismo. Gostava que me explicassem o motivo por que isto ( http://i.telegraph.co.uk/multimedia/archive/01686/burkas_1686268c.jpg ) é meritório e anti-eurocêntrico e isto ( http://www.guitarflame.com/wp-content/uploads/2008/01/gothrp2201_468x665.jpg ) é reacccionário. Ou será que isto é meritório também? Sob um verniz modernizador perpetua-se o velho nacional-bolchevismo. Numa época em que o capital está transnacionalizado e os Estados nacionais em boa medida ultrapassados, o multiculturalismo permite que o internacionalismo desapareça sob o peso de uma conjugação de tradições étnicas. Esta completa desistência de um ímpeto libertador que se estenda a todo o mundo e rompa todas as tradições constitui o maior fracasso da esquerda contemporânea, a sua rendição ao conservadorismo, pior: aos conservadorismos.
E aqui estou eu escrevendo no Passa Palavra, num site onde cabem artigos que apresentam o véu islâmico como uma atitude consciente e meritória de negação do eurocentrismo. Se daqui a cem anos ainda restasse memória do Passa Palavra, imagino o que os Joões Bernardos do século XXII me chamariam por eu partilhar um mesmo espaço com o multiculturalismo…
Eu concordo com Pedro.
Não vejo justificações da parte dele. Pelo contrário, vejo infelizmente aqui nos comentários, como ele bem apontou, o discurso individualista do liberalismo que culpa os pobres pela pobreza em que vivem: “Viva o esforço individual para mudar o mundo, já que não existem determinações sociais!”
Acompanhando de longe a discussão, além do texto bem elucidativo, sinto que algumas “falas” também são capazes de captar questões fundamentais… algumas das falas do Ricardo Nogueira, como aquela sobre os “fracassos” que abrem margem a (re)valorização do pensamento mítico como “vento fresco de novidade”, ou ainda, a fala sobre algumas leituras da idéia de cultura (formulações essencialistas que valorizam a homogeneidade, a tradição, o misticismo) como reformulação/suavização do elemento racial são certamente bem oportunas e nos alertam sobre alguns perigos.
Agora para constar: os bravejos de Pedro sobre a questão da linguagem (das linguas estrangeiras e tals) é também bem oportuno, afinal, a realidade cá de baixo é dura mesmo!
À propósito… marxismo trágico… rsrsrsrs….
Parabenizo o autor pelas boas explicações que produziu neste artigo. Concordo contigo em vários aspectos, baseando naquilo que até hoje acerca das variadas vertentes fascistas, inclusive com o nacional-bolchevismo duguiniano.
Aliás, coloco-te uma questão, que me ocorreu desde que passei a pesquisar o nacional-bolchevismo de Duguin: Qual o tipo de relação que se poderia traçar, de continuidade existente, de ideias populistas russas do fim do XIX e início do XX, ligadas a tese do “socialismo eslavo” e o pensamento que busca a tradição no povo russo, de Duguin?
Abraço.
Júlio Bueno,
Concordo com a perspectiva que você indica, e acho que é em Solzhenitsyn que encontramos a ponte entre o velho populismo russo e o actual nacional-bolchevismo. Será interessante reler à luz dos problemas contemporâneos as críticas feitas por Plekhanov aos populistas. Acho que isso talvez ajude a abrir horizontes novos.
Mas surge aqui uma dificuldade, porque o fascismo russo costuma ficar excluído dos estudos comparativos — eu próprio, no meu livro sobre o assunto, o releguei para duas ou três notas de rodapé — pela simples razão de que o profundo antieslavismo dos nacionais-socialistas impediu que os fascistas russos se juntassem aos seus congéneres europeus. E como uma boa parte da extrema-direita russa se havia refugiado na Manchúria depois da guerra civil, os fascistas russos acabaram por ficar sob a protecção, nem sempre entusiástica, dos militares fascistas japoneses.
Sobre o fascismo russo no período entre 1917 e 1945 sugiro três estudos: C. Andreyev, «Soviet Exiles at War», em I. C. B. Dear e M. R. D. Foot (orgs.) The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995; Maurice Bardèche, François Duprat, François Solchaga, Henri Guiraud e Lyder L. Unstad, «Les Fascismes Inconnus», Défense de l’Occident, 1969, XVII, nº 81; Erwin Oberländer, «Il Partito Fascista Panrusso», Dialoghi del XX, 1967, nº 1.
Houve um livro que me ajudou a compreender muito do que se passa hoje na antiga esfera soviética: Valdimir Tismaneanu, Fantasies of Salvation. Democracy, Nationalism, and Myth in Post-Communist Europe, Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1998.
Quanto ao caso específico de Dugin, vi que os discípulos de Julius Evola estiveram activos no acolhimento que lhe foi dado no Brasil, o que nos impede de esquecer a dimensão religiosa do problema.
A título de curiosidade, e à luz dos recentes eventos na Ucrânia e de sua repercussão, o ultra-conservador Olavo de Carvalho e seu círculo de adeptos têm produzido análises críticas em tom de denúncia sobre Dugin e sua influência na esquerda. (Procurar o artigo “O duguinismo no Brasil” e outros a respeito, no site Mídia Sem Máscara)
A partir dessas fontes, pode-se comprovar o apoio de setores do PT a Dugin (Ver o grupo https://www.facebook.com/groups/amigosdugin/, mas sobretudo o que parece ser um de seus líderes mais ativos, um petista que se define como “patriota… mas sem perder o caráter internacionalista”, e que não tem pejo em publicar uma série de artigos de Dugin, ao mesmo tempo que parece se definir como marxista-leninistahttps://www.facebook.com/fgaebler ).
Achei esse post perdido pelo Facebook e, falando ainda sobre a união PT e direita nacionalista (a de verdade, não PSDB e outros tecnocratas), posto aqui mais um texto.
“Essas são coisas que passam desapercebidas pelas discussões demenciais entre gente que se acha de esquerda e de direita no ambiente eleitoral, mas que precisam ser apontadas e discutidas: aqui temos um artigo do Adriano Benayon que, em suma, argumenta que Dilma é a “menos pior” das candidaturas (lembrando que esse texto foi escrito antes do fim do primeiro turno).
Benayon, pra quem não se recorda, foi membro do PRONA (que tinha um “DNA” nacionalista de direita dificilmente discutível) e é louvado em sites como o “Inacreditável” (aquele espaço virtual que esteve no meio da polêmica envolvendo a tese de Antônio Caleari pela Faculdade de Direito, a Sanfran)
Que situação, hein? Um nacionalista de direita, desses com trajetória em partidos e tudo mais, cerrando fileira com o PT.
http://limpinhoecheiroso.com/…/adriano-benayon-eleicoes-e-…/”
Posteriormente, o mesmo Adriano Benayon chegou a chamar abertamente o voto em Dilma, durante o acirramento contra o PSDB: http://www.desenvolvimentistas.com.br/blog/benayon/2014/10/25/o-entreguismo-insaciavel-da-grande-midia/
Sempre gosto de ouvir o que o João Bernardo tem a dizer sobre a convergência entre “esquerda” e “direita” através da questão nacional. Espero os comentários do mestre.
Esbarrei por acaso no artigo e me retornou a curiosidade sobre Nino Daniele. Achei o seguinte:
“Nino Daniele é realmente um caso curioso. Tendo chegado ao Brasil na metade dos anos 20, deu início a uma colaboração jornalística aos periódicos fascistas ‘Il Piccolo’ e ‘Fanfulla’. Logo abandonou, porém, esses jornais e iniciou uma militância antifascista que se corporificou na sua participação (na maioria das vezes junto com anarquistas como Alessandro Cerchiai, Carlo Battaglia e Ugo de Rosa) na criação e manutenção de jornais antifascistas como ‘Il Becco Giallo’ (1929), ‘La Vittoria’ (1930), ‘Lo Spaghetto’ (1931) e ‘I Quaderni della Libertà’ (1932-1936?). Ele foi sempre um crítico da ‘Concentrazione’ e de Piccarolo mas, mesmo sendo antifascista e perseguido pelos fascistas, manteve uma contínua admiração por D’Annunzio (pois havia sido legionário em Fiume) e uma curiosa amizade pelo mais fascista dos cônsules italianos de São Paulo, Serafino Mazzolini, a qual era baseada justamente na experiência de ambos como legionários de D’Annunzio. Era um antifascista, pois, de ideias bastante singulares, cuja recuperação e análise são bastante difíceis.” (BERTONHA, Joao Fabio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de Sao Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. So Paulo: FAPESP/Annablume, 1999, pp. 143-144)
Além disso, há um verbete na Wikipedia sobre ele: http://it.wikipedia.org/wiki/Nino_Daniele
Existe uma diferença basica entre a terceira via latino americana,no caso Gétulio vargas,e a terceira via europeia,A parte economica parece a mesma,um estado forte e com forte apelo a justiça social,mas a diferença que Gétulio não invadiu nenhum pais,diferente da italia,alemanha e portugal durante o seu periodo fascista. abraços
Curioso caso o de Fabrício, em que tantas semelhanças (exatamente as definidoras de um Estado) importam mais que uma única diferença (a capacidade de este Estado tornar-se ou não expansionista).
Dugin fez escola por Pindorama. Fundaram até um ‘partido’.
http://novaresistencia.org/sobre/
Caro João Bernardo,
Lá se vão quase seis anos deste artigo e eu ia dizer que quase nada mudou… mas, pensando melhor, acho que muita coisa mudou… a ascensão dos movimentos identitários (ainda que mais no plano teórico – ou formal, do ponto de vista institucional – do que propriamente no campo prático, especialmente no campo político) e sua luta por “empoderamentos” não veio desacompanhada de uma ampliação da precarização do trabalho e da concentração cada vez maior da riqueza (estas sim, práticas reais e cotidianas)… Esta “aparente” estranheza parece revelar que eles “ainda não sabem que são fascistas…”
Na verdade gostaria, se for possível e se eu não estiver sendo inoportuno, indicações bibliográficas sobre dois pontos específicos deste seu artigo, especialmente o segundo:
“Com efeito, a circulação ideológica entre a esquerda e o fascismo é tão profunda no Brasil que quase se pode dizer que está inscrita no código genético daquelas correntes políticas. Tudo remonta ao tenentismo, e Luís Carlos Prestes foi um tão legítimo continuador do tenentismo como o foi Getúlio Vargas”
“A influência do Estado Novo português sobre o Estado Novo brasileiro fazia parte das aulas de Direito Constitucional na Universidade de Lisboa”
Já li Joseph Love, a Construção do Terceiro Mundo e os dois volumes do Mário Pedrosa (A Opção Brasileira e a Opção Imperialista). Também li o Boris Koval (História do Proletariado Brasileiro 1857 a 1967). Mas na questão jurídica, especialmente no Direito Constitucional, não localizei muita coisa… Seria de grande valia para mim indicações tuas, se você as tiver.
Desde já grato pela atenção!
Gilberto Rodrigues
De Dugins em Dugins, os fascismos vão ressurgindo…
Os tempos são de fato sombrios…
Ontem no Estadão, um dos arautos da extrema-direita, Willian Waack (o famoso porta voz das elites do “tinha que ser preto https://www.youtube.com/watch?v=N7r6lotUHSg), escreveu: “Arrisco-me a dizer que aos olhos de grande parte da população o juiz Sérgio Moro, o paladino “solitário” na luta contra a corrupção, e a mãe PM Katia Sastre, enfrentando sozinha o bandidão armado, formam uma dupla de heróis que resolvem pelo empenho e coragem pessoais aquilo que hierarquias, burocracias, aparatos, instituições – governos, partidos e os políticos – não são capazes ou nem querem enfrentar”. (http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,dois-herois,70002312036 ou https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/william-waack-considera-moro-que-tirou-foto-com-doria-heroi-com-a-pm-de-suzano-em-coluna/).
Se mitos, cultos à personalidade, e violência política são algumas das premissas fascistas, somados às ideologias identitárias e multiculturalistas, as coisas parecem caminhar muito mal…
Um poema se Céline:
O Presidente Vincent Auriol
Hey, veja o Presidente
Este é um destino muito trágico
Ele é bem pago, ele vive no Palácio do Presidente
Ele começou sua Carreira numa campanha feroz
Contra a Pena de Morte.
Ele era um Anarquista
E agora ele é Presidente
Nenhum Presidente assinou tantos perdões.
Há fantasmas que rondam o Palácio, lhe asseguro
Arrastando seus postos de Execução
E a retórica do Presidente.
Imaginem acabar assim!
Ele não pode fazer nada sobre isso, é assim que é…
Este é o Destino
Esses são os desafios
Ele é um homem corajoso
Ele deve assinar
Ou morrer.
Assim como Gramsci, o PT se encantaria com a poesia de Céline?
Caro Gilberto Rodrigues, respondo-lhe com atraso porque nos últimos dias andei por outros lugares, e aliás a minha resposta irá ser-lhe pouco útil.
Quanto à primeira questão, tudo o que li sobre o tenentismo e o começo do regime de Vargas me levou a essa conclusão, sem que eu tivesse encontrado qualquer obra específica sobre o tema.
Mas a questão é mais geral, e eu enquadrá-la-ia no que poderia chamar um nacional-bolchevismo latino-americano. Se eu fosse agora estudar o tema, tomaria como alvo a Bolívia e começaria pela Guerra do Chaco, com tudo aquilo a que deu origem, e depois prosseguiria pelo período de Paz Estenssoro. A Bolívia foi um fenomenal laboratório. O peronismo também, mas com o inconveniente de a Argentina ser o mais europeu dos países latino-americanos. Assim, eu diria que conjugando a Argentina, de um lado, com, do outro lado, a Bolívia, poder-se-ia desenhar o quadro de todos os possíveis fascismos latino-americanos.
E, já agora, ninguém perderia nada se lesse um romance admirável, Yo, El Supremo, do paraguaio Roa Bastos. Os nexos entre o liberalismo de Rousseau e o fascismo e entre Rousseau e o terceiro-mundismo latino-americano desenham a teia em que esse romance se desenvolve. Mas ali, como em toda a arte, é a forma que constitui o conteúdo principal. Foi um escritor de génio, esse Roa Bastos.
Quanto à segunda questão, ela resulta da minha experiência pessoal. Antes de ter sido aluno de História, de onde fui rapidamente expulso, eu frequentei o primeiro ano da Faculdade de Direito de Lisboa, onde tive Marcello Caetano na cadeira de Direito Constitucional. Por isso certamente você poderá encontrar as raízes daquela minha afirmação em obras de Marcello Caetano. No entanto, como Marcello foi sobretudo um especialista de direito administrativo, é possível que outros constitucionalistas portugueses da época do salazarismo tivessem abordado mais amplamente a questão da influência do Estado Novo português sobre o Estado Novo brasileiro.
Caro João Bernardo,
Sua resposta foi-me útil sim. A primeira coisa que fiz foi dar um “google” em “Marcello Caetano” e o primeiro resultado foi da wikipédia (o que já é bastante revelador), que, apesar dar informações sobre a relação dele com Salazar e o Estado Novo, nada menciona sobre o fascismo…
Aqui no Brasil a névoa que envolve o fascismo parece ser muito mais densa. Por exemplo, o grande e respeitado Josué de Castro, que além de ter ocupado diversos cargos no governo Getúlio Vargas, tendo sido, inclusive médico de sua família, também teve uma interessante passagem por universidades italianas em 1939, muito embora o mesmo Josué de Castro tenha tido publicações em jornais da ANL (o que evidencia esta circulação em campos opostos de certas figuras) … Em um trabalho de graduação em que sugeri este trânsito de nosso herói pelo fascismo só faltou arrancarem-me o couro…
Pior. Se há alguma aceitação do fascismo da Era Vargas é somente por parte da direita, especialmente no campo do direito (mais especificamente do direito trabalhista). Se você tentar explicar que o fascismos persistem por outros meios, inclusive após o varguismo, como no caso da CEPAL (aliás, nosso grande Josué de Castro teve importante papel na FAO) então se arrancam certos órgãos fora…
Na verdade, meu interesse de estudo é na área do tempo livre. Sigo sua ideia de que o tempo livre, no modo de produção capitalista, se tornou uma extensão do tempo de trabalho (resumidamente falando..). Só que ao contrário de que a chamada sociologia do lazer costuma pregar, acredito que esta apropriação se incia primeiramente nos países de capitalismo de estado e nos países fascistas, e não nos países de capitalismo de mercado e liberais. Os fascismos italiano e alemão e o nacional-bolchevismo russo foram pioneiros nesta empreitada. A Opera Nazionale Dopolavoro (OND – Obra Nacional depois do Trabalho”) e Kraft durch Freude (KdF – Força pela Alegria), são exemplos deste objetivo, sendo que na Espanha e em Portugal tiverem instituições similares. No Brasil, os sindicatos e o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) tiveram funções semelhantes (este departamento cuidava também do lazer e turismo no Brasil). O português António Ferro do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) parece ter exercido alguma influência no DIP.
Meu caro João Bernardo, caso você tenha alguma informação sobre esse tema e puder compartilhar, seria muito enriquecedor.
Fico verdadeiramente muito agradecido por sua atenção e por suas informações.
Abraços,
Gilberto.
PS: O “Colosso de Prora” é uma interessante obra nazista. Foi a maior colônia de férias já construída…(https://pt.wikipedia.org/wiki/Prora)
Caro Gilberto,
Começando pelo tema que mais lhe interessa, o do controle exercido pelo capitalismo sobre o tempo de lazer ou, mais exactamente, sobre o período exterior à jornada de trabalho, creio que o processo começou na área do capitalismo privado e durante o capitalismo liberal. Refiro-me aos sistemas paternalistas de administração de empresa em que o patrão mandava edificar um conjunto de residências higiénicas e de boa qualidade para alojar os trabalhadores. Frequentemente, além disso mandava construir um lugar de encontro ou salão de baile ou assembleia, teatro ou qualquer coisa do género. Ao mesmo tempo, este conjunto habitacional e de lazer era regido por normas rigorosas, nomeadamente a proibição da embriaguez e a proibição da violência doméstica. Estes conjuntos urbanos formavam geralmente um U, com a residência do patrão e eventualmente de engenheiros ou outros gestores na parte menor, central, e as duas alas preenchidas pelas residências dos operários, em dois pisos. Em algumas cidades do Brasil ainda se podem encontrar traços desses conjuntos, assimilados de uma ou outra maneira pela urbanização circundante. Sob o ponto de vista estritamente económico, este sistema tinha para o patrão duas vantagens imediatas: fixava à empresa uma força de trabalho qualificada, visto que este sistema só era empregue com força de trabalho relativamente qualificada; e qualquer forma de fixação dos trabalhadores implica uma tendência à redução do nível salarial, relativamente ao que sucederia se eles tivessem mobilidade. Mas a importância deste sistema paternalista de gestão foi sobretudo social e inclui-se naquilo que eu denomino Estado Amplo, ou seja, o exercício de soberania pelas empresas.
Posteriormente, os fascismos inseriram esta forma paternalista de gestão no âmbito das instituições oficiais, tanto governativas como partidárias. Foi o que sucedeu na Itália com o Dopolavoro, em Portugal com a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), no Terceiro Reich com a Kraft durch Freude, etc.
Depois de 1945, e a partir dos Estados Unidos, difundiu-se uma nova forma de inclusão dos lazeres no poder central, mediante a televisão. Os festivais e desfiles fascistas mobilizavam as massas inserindo-as num mesmo espaço geográfico. Ora, as democracias posteriores à segunda guerra mundial conseguiram este resultado através da televisão, fazendo as massas obedecerem aos mesmos estímulos a partir de um centro único ou de poucos centros, mas permitindo que elas se mantivessem geograficamente dispersas, cada pessoa na sua casa. A crítica que Marcuse, Adorno e outros marxistas frankfurtianos fizeram à televisão só pode ser plenamente entendida nesta perspectiva.
Agora, porém, acrescentou-se um novo factor, porque pela primeira vez na história da humanidade o instrumento de trabalho, o computador, tornou-se simultaneamente instrumento de vigilância e instrumento de lazer. Assim, todos os lazeres passados nos computadores contribuem para adestrar a força de trabalho, para a tornar mais qualificada no uso de novas técnicas. O lazer passou a constituir uma forma de preparação e de qualificação da força de trabalho. Ao mesmo tempo, como o lazer se exerce nos computadores e como estes são instrumentos de vigilância, as preferências manifestadas nos lazeres são automaticamente conhecidas pelos capitalistas, implicando a selecção de publicidades que cada trabalhador recebe. E são automaticamente conhecidas pelas polícias e outros órgãos repressivos.
Nos últimos anos a fusão do lazer com o tempo de trabalho estreitou-se mais ainda, já que a uberização torna impossível a demarcação de limites rígidos entre essas duas áreas.
Passando rapidamente pelas outras questões que você evocou, a experiência que me relata quanto à reacção das pessoas à classificação do regime de Getúlio como um fascismo corresponde àquela que eu próprio senti aí durante muitos anos. Como a esquerda brasileira herdou muito do Estado Novo, ela não quer, evidentemente, reconhecer esse cordão umbilical.
O livro de Josué de Castro, Geopolítica da Fome, era uma leitura obrigatória da esquerda comunista durante a minha juventude. Aprendi muito com ele. Josué de Castro foi mais uma daquelas figuras a ligar o fascismo ao terceiro-mundismo.
Quanto a Marcello Caetano, além de administrativista e constitucionalista ele tem obras muito interessantes sobre o direito colonial. Basta ver a passagem dele que eu cito no meu livro Democracia Totalitária, que creio que se encontra disponível na internet.
António Ferro foi uma figura importante da cultura portuguesa, nomeadamente enquanto editor do Orpheu, a revista onde colaborou, entre outros, Fernando Pessoa. À frente do SPN e, depois da guerra, do SNI, ele teve uma actividade marcante e marcou decisivamente as orientações estéticas do Estado Novo.
Para mais elucidações, remeto-o para a terceira versão, e definitivamente última, do meu livro Labirintos do Fascismo que, tanto sei, se encontra na internet em apenas dois lugares. Aqui:
https://vosstanie.blogspot.pt/2018/02/labirintos-do-fascismo-3-versao-joao.html
e aqui:
http://humanaesfera.blogspot.pt/2018/02/labirintos-do-fascismo-de-joao-bernardo.html
Caro João Bernardo,
Mais uma vez grato por suas valiosas e proveitosas orientações!
Abraços,
Gilberto.
João, não sei se ficou claro para mim, mas você está indicando o Josué de Castro como um autor do campo fascista? Já imagino a resposta, em virtude da velha pauta da soberania alimentar, mas se você puder esclarecer um pouco mais eu agradeço.
Abraço
Vi que o Gilberto acima já trouxe alguns elementos, mas se houver mais…
Caro Irado,
Na verdade eu tenho muito mais perguntas do que respostas sobre esse tema. Na verdade acho que o João Bernardo não quis dizer que o Josué de Castro estaria como autor especificamente do campo fascista, assim como Gramsci. Se não entendi errado, creio que os fascismos, por transitarem no campo teórico tanto “às esquerdas” como “às direitas”, no campo prático, seus sujeitos acabam também tendo esse trânsito.
Josué de Castro teve marcante e intensa passagem no governo de Getúlio Vargas:
“Colaborando como técnico com o Estado Novo, instaurado por Getúlio Vargas em novembro de 1937, Josué de Castro foi um dos organizadores e o primeiro diretor do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), criado pelo Decreto-Lei nº 2.478, de 5 de agosto de 1940, como organismo subordinado ao Ministério do Trabalho. No SAPS exerceu também o cargo de diretor dos cursos técnicos para a formação de nutrólogos, nutricionistas e auxiliares de alimentação. Ainda em 1940, fundou e passou a presidir na cidade do Rio de Janeiro a Sociedade Brasileira de Alimentação, cuja finalidade era “coordenar estudos e incentivar pesquisas e trabalhos sobre a alimentação”.
Em outubro de 1942, foi criado o Serviço Técnico de Alimentação Nacional (STAN), órgão da Coordenação da Mobilização Econômica, entidade destinada a articular os vários setores da economia nacional ante a situação criada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Nomeado chefe do novo serviço, Josué de Castro foi incumbido de levar a efeito a coordenação econômica no setor da alimentação. Nessa época editou-se a revista Arquivos Brasileiros de Nutrologia, publicação oficial do STAN e a primeira do país nessa área.” (http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/josue-de-castro)”
Por outro lado, a mesma página da internet informa:
“Por essa época, embora não fosse filiado à Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente ampla contra o fascismo que, após ter sido fechada pelo governo de Getúlio Vargas em julho de 1935, passou a atuar na clandestinidade, Josué de Castro teve vários artigos seus publicados em jornais ligados a essa organização. Por outro lado, com a revolta comunista promovida pela ANL em novembro desse ano, foi extinta a Universidade do Distrito Federal, pois o prefeito Pedro Ernesto e alguns de seus auxiliares — entre eles Anísio Teixeira — sofreram acusação de envolvimento com a ANL.”
Esse trânsito entre esquerda e direita é que me chama a atenção…
Veja, Getúlio Vargas não foi nenhum democrata… quando ele impõe e implanta o Estado Novo através da Carta Constitucional de 1937, ficam evidentes suas políticas fascistizantes:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL ,
ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente a gravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em LUTA DE CLASSES (destaque nosso), e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil;
ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente;
ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo;”
E na redação original do artigo 140:
“Art 140 – A economia da população será organizada em CORPORAÇÕES (destaque nosso), e estas, como entidades representativas das forças do trabalho nacional, colocadas sob a assistência e a proteção do Estado, são órgãos destes e exercem funções delegadas de Poder Público.” (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm)
Ora, é representando um governo organizado em CORPORAÇÕES que Josué de Castro “Em 1939 realizou, como professor visitante nas universidades de Roma e de Nápoles, uma série de conferências sobre “Os problemas da alimentação humana nos trópicos” (http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/josue-de-castro).
Não localizei ainda o teor destas conferências, mas seria muito interessante saber o que foi falado por um represente do governo (organizado em corporações…) de Getúlio Vargas ao país de Mussolini (um governo também organizado em corporações…)…
Abraços a todos!
Gilberto.
Obrigado pelo material, Gilberto. Quanto ao caráter fascista do Estado Novo, isso está resolvido para mim há algum tempo, mas fica ainda mais claro nos documentos. E sim, Josué de Castro caminhou com uma facilidade suspeita por esses círculos políticos e por cargos estatais dentro dessa máquina. Se os seus estudos sobre a fome têm uma importância histórica, também é claro o nacionalismo em seus escritos. Assim como ele se tornou referência para o programa político da “soberania alimentar”, que em outros debates o João já localizou como pauta fascista por natureza. De fato, temos alguns elementos dados para formular uma hipótese neste sentido: nacionalismo, cargos estatais no varguismo, uma pauta política especifica. Não a toa ele se tornou um herói da esquerda tradicional, um estatista, nacionalista, que usou a ciência e seus cargos públicos na luta contra a fome. Além disso, foi exilado durante a ditadura e morreu no exílio. Não há dúvida que se trata de personagem histórico altamente relevante para a história brasileira. O problema é quando se transforma num mito. E mitos só tem duas funções, deturpar a história e ser destruídos. É preciso ultrapassar a carapaça mítica para enfrentar o sujeito histórico realmente existente. Mas, esta não é a maior dificuldade. O maior problema é enfrentar os vorazes guardiões dos templos sagrados onde vivem os mitos…
Caro João Bernardo,
Aproveitando o ensejo desta discussão, gostaria, se possível, de uma opinião sua.
Concordo que o varguismo é uma forma de fascismo. Mas os críticos sérios desta visão afirmam que o Estado Novo, embora similar em muitos aspectos, difere do fascismo, especialmente quanto a existência de um partido único e da militarização das milícias ou da juventude.
Em minha opinião, a necessidade de um partido único, no caso do estado novo varguista não se faria necessário, pois o “regime” seria o equivalente ao partido único, como se pode depreender da redação original do artigo 177 da carta constitucional brasileira de 1937: “Art 177 – Dentro do prazo de sessenta dias, a contar da data desta Constituição, poderão ser aposentados ou reformados de acordo com a legislação em vigor os funcionários civis e militares cujo afastamento se impuser, a juízo exclusivo do Governo, no interesse do serviço público ou por conveniência do regime”(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm). Qual seria este regime se não o fascista? Pode-se dizer, de fato, que este “regime” faria o papel de partido único no varguismo?
Todavia a questão das milícias me geram maiores dúvidas. De fato, se eu não estiver enganado, a partir do Estado Novo (1937), não existiram milícias. Os “galinhas verdes” ou os integralistas de Plínio Salgado foram colocados à margem do Estado Novo varguista, o que me faz lembrar (levemente…) a atitude de Hitler em relação às SA. Todavia, se eu não estiver enganado, Vargas não promoveu nenhuma outra milícia fascista após se distanciar dos galinhas verdes. Neste sentido, seriam os sindicatos sob a rígida tutela do Estado a fazer o papel das milícias, ainda que não militarmente?
Obrigado pela atenção!
Abraços a todos,
Gilberto
Caro Gilberto,
Tudo depende da definição que dermos de fascismo. No que me diz respeito, remeto para as págs. 44 a 208 da 3ª versão do Labirintos do Fascismo, cujos links indiquei acima, noutro comentário. No espaço delimitado pelos dois eixos que desenhei na pág. 50 (exército — Igrejas, partido e milícias — milícias e sindicatos) cabem numerosas variantes, e entre elas o Estado Novo brasileiro ocupou, junto com o Estado Novo português, a vertente mais conservadora. Mas repare, na Hungria do regente Miklós Horthy, onde eu também considero que vigorava um regime fascista, não existia partido único, e sim uma multiplicidade de partidos. Num caso oposto, no Portugal de Salazar o partido único, a União Nacional, que a ideologia do regime apresentava como um não-partido, confundia-se na prática com o aparelho de Estado, especialmente com a sua faceta administrativa, o que vai no sentido da solução que você apresentou. Quanto às milícias, na Argentina o regime de Perón usou, e aliás muito pouco, milícias alheias, que não resultaram de uma criação sua, recorrendo sobretudo aos sindicatos. No caso de Getúlio Vargas será necessário ver de que modo ele teria usado os sindicatos como mecanismo de pressão sobre a rua e de que modo teria mobilizado grupos de arruaceiros, nomeadamente através de Gregório Fortunato.
Mas, como disse, tudo depende da maneira como definirmos fascismo. Se definirmos como fascismo uma única variante, o caso italiano, então tudo o resto seria diferente, e mesmo aí qual seria o fascismo italiano, o anterior a 1943 ou o da República Social? Se recorrermos ao tipo ideal weberiano, então teremos um fascismo manta de retalhos. Eu optei pela demarcação de um campo e pelo estabelecimento aí de uma teia dinâmica de relações. É um método que eu já usara noutro trabalho, de muito maior envergadura, sobre o regime senhorial, e é esse o método que me parece mais produtivo para a análise histórica. Quanto ao fascismo, consoante a metodologia que for adoptada, a resposta à sua questão será diferente, porque o Estado Novo getulista foi um caso limite.
Já agora, aproveito para acrescentar uma coisa de que entretanto me lembrei a propósito da sua referência a Josué de Castro. Parece-me que não seria descabido evocar a esse respeito uma figura como François Perroux. Seria interessante que alguém fizesse sobre Perroux uma obra equivalente à de Joseph Love sobre Manoilescu.
Caro João Bernardo,
Mais uma vez muito obrigado por sua atenção!
Abraços a todos!
Gilberto.
Caro João Bernardo,
Sobre um outro pensador contemporâneo, Peter Sloterdijk. Vi que em seu livro Labirintos do Fascismo, na bibliografia, tu tens como leitura a “Crítica a Razão Cínica” do Sloterdijk. Sei que Sloterdijk tem como referências, Nietzsche e Heidegger, ele poderia ser encaixado na tradição revolucionária conservadora? Escreveu um livro sobre Derrida, pós estruturalista de esquerda, que incorporou a doutrina da desconstrução do Heidegger, que para J.P. Faye, essa doutrina, é a introdução do nazismo na filosofia. Qual a sua opinião a respeito do Sloterdijk? E qual livro do Sloterdijk, João, vc me recomendaria para entender o seu pensamento?
Caro Zaratustra,
Nas referências da 3ª versão do Labirintos do Fascismo estão, se não me engano, mais de novecentos títulos. Quando estudo um assunto todos os livros me interessam desde que: 1) constituam matéria-prima desse assunto; 2) forneçam indicações úteis; 3) coloquem questões que me ajudem a reflectir. Nada disto implica que eu esteja de acordo ou em desacordo com essas obras. Fazendo uma busca, verifiquei que cito o livro do Sloterdijk apenas uma vez, na n. 46 do Capítulo 3 da última Parte, pág. 1362. Porém, lembro-me de que o livro me interessou bastante quando o li. Fui buscar o livro (aquela mesma edição em língua inglesa que mencionei nas referências do Labirintos) e vi que, além dos muitos sublinhados, escrevi várias anotações à margem. Como talvez o possam ajudar, aqui vão, mas por favor lembre-se de que estas anotações se destinavam a ser lidas só por mim, por isso são indicações muito breves, que se arriscam a tornar-se confusas para outros leitores. De qualquer modo, ei-las:
Pág. 10: Tudo, menos a revolução dos conselhos, sem cuja derrota Weimar é incompreensível!!
Pág. 53: O que sucede é que é este mesmo «medo da liberdade» que precipita as pessoas, ao primeiro obstáculo, para o divã do psicanalista.
Pág. 75, n. 11: [Trata-se de uma correcção minha]: É Sartre acerca de Flaubert.
Pág. 91: Seria bom se os outros assassinos tivessem defesas tão ideológico-críticas…
Pág. 95: O problema é se o «middle ground» existe.
Pág. 122: Banalidades e superficialidades, e não há nunca uma palavra para os factos que enfermam o modelo. No caso da guerra de 1914-18 isto é especialmente patente.
Pág. 125: Quando se especula sem prestar a mínima atenção aos factos, quando se rebela contra os «hard facts» não resta mais aos autores do que uma introspecção dissimulada. Quando falam dos outros estão só a falar do seu próprio íntimo. Daí a celebridade que alcançam entre os seus pares, tudo um jogo de espelhos. Indigência ideológica e futilidade.
Pág. 151: Este é mais um exemplo — mas são tantos! — do à vontade com que o autor, e todos os especulativos com ele, passa por cima de tudo o que possa pôr em causa as suas afirmações.
Pág. 162: Diógenes e Jesus estão mais unidos do que o autor diz. Nos Evangelhos, o personagem de Jesus é do mesmo tipo do de Diógenes, e igualmente escandaloso.
Pág. 164: [A meio da página, a propósito a propósito da primeira citação de Diogenes Laertius]: Esta é uma afirmação de pura marginalidade, porque nessa época não havia estruturas globais. É uma afirmação que significa: «eu não estou inserido em nada».
Pág. 166: Eu nunca apelidaria de «serenidade» o comportamento de Diógenes.
Pág. 188: Parece que o autor não leu o resto do livro [refiro-me ao Irmãos Karamazov]. Para Dostoievsky o Demónio é precisamente o cinismo, assimilado à indiferença.
Pág. 191: Pelo contrário, a parábola do Grande Inquisidor é uma crítica da Ortodoxia ao Catolicismo.
Pág. 209: Mas esta esquerda que não é esquerda, e que tem em Heidegger um precursor, não será a reposição do nacional-socialismo que não era socialismo?
Pág. 222: Os abismos de futilidade em que este autor consegue cair!
Pág. 225: Note-se que todas estas páginas de banalidades se referem apenas às guerras, não às revoluções. Nem ao terrorismo.
Pág. 226, 4ª linha a partir do fim: É esta «familiaridade» que falta ao autor.
Pág. 236: Esta pretensão a traçar visões históricas amplas baseadas em lugares-comuns antiquados!
Pág. 244: É este o Trotsky da guerra civil?!
Pág. 247: Ele julga realmente que foi o Lenin quem fez a revolução russa?
Pág. 312: Cronologias destas só são possíveis — uma vez mais — no plano da superficialidade. De costas viradas para os factos torna-se mais fácil proceder a sínteses históricas.
Pág. 316: O problema é que o dinheiro se tornou, de uma medida, numa linguagem genérica.
Pág. 319: Como habitualmente, confunde Marx com Lassalle.
Pág. 389: O curioso na noção de Cultura é que ela pressupõe uma homogeneidade. Em Weimar, e sobretudo em Weimar, ocorreu um choque permanente entre culturas distintas ou opostas.
Pág. 402: E o autor ousa escrever estas linhas a propósito de algo que se passava precisamente em 1921! É a apologia da cobardia enquanto sistema, durante uma guerra civil.
Pág. 425: O autor raciocina como se não tivesse existido o USPD. E como se não existisse uma guerra civil em 1918-19.
Pág. 425, 3ª-4ª linhas a partir do fim: «Experiments» é a revolução de 1918-1919!
§ das págs. 462-463: Nesta passagem acerca de Jünger o autor caracteriza-se a si mesmo.
Pág. 464: Nada disto. Em termos darwinianos, e fascistas, a biologia significa a luta pela sobrevivência, a vitória do mais apto, e é neste plano comum que história e biologia se unificaram.
Pág. 525: Como se pode ter uma tão grande ignorância acerca da história da esquerda em Weimar?!
Caro João Bernardo,
Fico muito agradecido por sua atenção. Meu interesse em conhecer o Sloterdijk, tem a ver com Heidegger e sua herança filosófica. A influência da filosofia, ou anti-filosofia, heideggeriana tem um leque muito grande, do fundamentalismo islâmico aos ecologistas, da atual extrema direita européia ao bolivarianismo chavista, do feminismo pós moderno a Foucault, Derrida, Deleuze. Vejo que em suas anotações do Livro de Sloterdijk, questionas uma certa “esquerda que não é esquerda” que através de Heidegger pode ser repositória do nacional-socialismo. O que vc acha dessa esquerda desconstruída, que tem uma visão de mundo e métodos de análises da extrema direita e uma ética de esquerda? Mais uma vez, muito obrigado pela atenção. Foi muito gentil da sua parte compartilhar as suas anotações. Um grande abraço!
Caro Zaratustra,
No meu livro Labirintos do Fascismo, o último capítulo, «O fascismo pós-fascista», págs. 1349-1421 ( https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n1347/mode/2up ), destina-se precisamente a responder a essa sua interrogação. Mas a filiação não procede apenas de Heidegger e vem de mais longe, tal como Heidegger veio de mais longe também. Confira, por exemplo, as referências que nesse livro faço a Adam Müller.
Voltando ao Dugin, não sei se vocês viram o posicionamento dele na eleição brasileira: http://novaresistencia.org/2018/11/01/dugin-e-necessario-criar-uma-frente-anti-bolsonaro/
Voltando ao Limonov, e se ainda não viram, veja: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/04/cultura/1559674956_724537.html
Se eu terminei este artigo afirmando que tomara a firme decisão de não o escrever, poderia agora, passados sete anos, afirmar o mesmo a respeito deste comentário. Apesar de tudo, aqui vai.
Espero que os leitores leiam, e com os olhos bem abertos, os artigos indicados por LL e por Fernando Paz. Poderão compreender — não quero ser demasiado optimista — poderão começar a compreender não ainda o que o fascismo é, mas aquilo que ele não é, e darão assim um primeiro passo para entender o que ele é. Gastei algumas dezenas de anos da minha vida a tentar explicar que o fascismo não é a direita conservadora, não é o moralismo, não é um fruto de alguma dessas categorias vagas que os psicólogos, esses bruxos da actualidade, gostam de invocar. E não desisto da explicação. Sei que os brasileiros são avessos a aprender línguas estrangeiras e que, de qualquer modo, o francês já caiu em desuso como língua internacional. Apesar disto, é fundamental lerem os diálogos de prisão de Lucien Rebatet e Pierre-Antoine Cousteau, ambos condenados à morte depois da Libertação e que beneficiaram de uma comutação da pena, ficando preso um até 1952 e o outro até ao ano seguinte. A obra — Lucien REBATET e Pierre-Antoine COUSTEAU, Dialogue de «Vaincus», Paris: Berg International, 1999 — além de se encontrar em bibliotecas, encontra-se gratuitamente na internet tanto em pdf como em livro electrónico. Procurem maneira de a ler. Rebatet e PAC, como era conhecido Pierre-Antoine Cousteau, foram duas das figuras mais extremas do Colaboracionismo francês, contando-se entre aqueles que em Paris, em Abril de 1944, nas vésperas da Libertação, convocaram o Banquete dos Condenados à Morte.
Só através de obras destas, além do cansativo estudo dos factos, poderão começar a entender o que o fascismo é. Não é por acaso, nem por qualquer má vontade minha, que insisto em mostrar que os movimentos ecológicos, o pós-modernismo e os movimentos identitários são as componentes principais de um fascismo pós-fascista.
Sendo razoavelmente otimista, me parece que, aos poucos, a ignorância acerta de Dugin e seus tentáculos por aqui está começando a diminuir.
http://elcoyote.org/vestindo-a-esquerda-de-camisas-pretas-alexander-dugin-e-a-ascensao-do-fascismo-politicamente-correto-parte-ii/
http://elcoyote.org/a-infiltracao-neofascista-no-pdt/
Sim, esses textos do El Coyote, apesar de meio mal escritos, apontam o problema com clareza. Achei especialmente alarmante o que afirmam sobre a revista Opera, seu criador André Ortega, e e seu divulgador Jones Manoel.
El Coyote está cada dia mais parecido com a seção “mundo insólito” do Sputnik. Quando a analise vira Causos nada kais a se dizer. É triste ver para onde a confusão cognitiva pode levar um site.
Caros,
A quem se interessar, vejam se conseguem fazer o download do “Dialogue de Vaincus” citado pelo João Bernardo neste link aqui:
library.bz/main/uploads/CBE780F63F27248D272A05CED173EAE6
Cliquem no botão “from the upload queue” e vejam se dá certo. Deve estar disponível no Library Genesis (http://libgen.rs/) daqui a um tempo.
Caso não, vejam se conseguem neste link aqui: https://docplayer.fr/23217633-Lucien-rebatet-pierre-antoine-cousteau-dialogue-de-vaincus.html
Um detalhe, entretanto: é preciso rolar a barra até a última página do pdf e só depois clicar no botão “Download” para baixar o arquivo.
Caros N. e Paulo, não sei se a ignorância acerca de Dugin está diminuindo, mas caso esteja, também não acho que terá muito efeito sobre boa parte da esquerda que defende a tomada do Estado, seja por uma ou por outra via. Os vaivéns entre essa esquerda e o fascismo são muito grandes. Não que todos os que se situam no campo libertário/autogestionário (o Passa Palavra, o que me parece ser a esmagadora maioria dos contribuidores do site, o autor do artigo, o Movimento Autogestionário, a Coordenação Anarquista Brasileira, eu próprio, dentre outros) estejam completamente livres dessa influência nefasta. Por exemplo, o João Bernardo citou Proudhon em seu artigo, e nesse sentido eu recomendo a leitura do artigo de Jacob Salwyn Schapiro intitulado “Pierre Joseph Proudhon, Harbinger of Fascism” (em tradução, “Pierre Joseph Proudhon, Precursor do Fascismo”) para uma análise muito competente acerca de um lado de Proudhon que frequentemente não se gosta de falar sobre, ou que simplesmente se deixa de lado como uma espécie de desvirtuação, ou algo do gênero. O artigo está aqui: https://www.jstor.org/stable/1842699?seq=1 ; e caso queiram obter acesso gratuito a ele é só colar o link no sci-hub: https://sci-hub.se/
Abraços e boa semana a todos
[…] em autores como Martin Heidegger, René Guénon e Julius Evola, Dugin formulou sua salada ideológica que mistura fascismo, algumas ideias econômicas análogas à esquerda e uma pitada de misticismo. […]
Caros, Autor e Debatedores.
Aprendi muito. O debate é útil e transformador.
Grato a todos.
Um novo caminho nos labirintos do fascismo parece se desenhar: no Rio de Janeiro, militantes autonomistas acusam o Partido da Causa Operária de terem levado à Aldeia Maracanã o “Tio Chico”, ex-membro da Accale e que já compôs grupos integralistas, e hoje participa da Nova Resistência. Os militantes (do PCO) envolvidos no caso alegam que a aproximação com a NR se dá em um contexto em que foi a única organização a se solidarizar com eles quando o PCO foi alvo de bloqueio de suas redes sociais pelo ministro Alexandre de Moraes. Até o momento, nenhuma mídia séria apurou essa informação, mas gostaria de saber o que o próprio PCO-RJ tem a dizer.
https://twitter.com/tomcamelo_/status/1551742019470610432
https://twitter.com/RdeFramengo/status/1552090829304614913
https://twitter.com/frater_z/status/1552150876109905920/photo/1
https://twitter.com/bicicreta/status/1552084526528094209/photo/2
Limonov é um nome que não para de fazer sucesso. Agora ele chega ao cinema com o filme Limonov: The Ballad of Eddie.