É da circulação e sobreposição de temas, de práticas e de modos de pensamento entre correntes políticas distintas que surge a essência do fascismo. Por Passa Palavra
«Vimos a boca e as guelras pendendo sobre a espuma enfurecida,
tingindo o negro abismo com raios de sangue,
avançando para nós com toda a fúria de uma existência espiritual».
William Blake
«O capital financeiro partilha hoje voluntariamente com o imperialismo a exploração do nosso povo, torna-se um instrumento da dominação crescente de Portugal pelo imperialismo estrangeiro».
Álvaro Cunhal, Rumo à Vitória
«Reconhecer de maneira suficientemente clara a diferença entre este puro capital, enquanto resultado final do trabalho produtivo, e um capital cuja existência e cuja essência decorrem unicamente da especulação».
Hitler, Mein Kampf
«Sempre que os protestos contra a hegemonia do capital bancário permeiam os movimentos populares, temos o indício mais claro da aproximação do fascismo».
Franz Neumann, Behemoth: The Structure and Practice of National Socialism
Conforme temos vindo a defender aqui no Passa Palavra, se o nacionalismo é acima de tudo uma ideologia, então teremos de o avaliar nos seus planos constitutivos: na mensagem que veicula e onde cada palavra pesa; e nos efeitos práticos a que se propõe. Para isso iremos abordar nesta primeira parte alguns textos teóricos que se batem por uma postura que procura colocar o conflito contemporâneo num ilusório antagonismo entre finança e economia produtiva. Deste antagonismo surgiria a necessidade de agregar numa aliança social os mais justos representantes do interesse nacional – os trabalhadores e os pequenos e médios empresários produtivos. Os textos retratados têm colhido larga difusão na esquerda portuguesa, o que, por si só, justifica a sua análise. De modo complementar, também neste primeiro artigo daremos conta de um caso específico de concepção de uma aliança social e política entre trabalhadores e pequenos empresários em defesa da economia nacional. Na segunda parte, a ser publicada na próxima semana, analisaremos as similitudes dos discursos e objectivos programáticos de um sector da esquerda portuguesa – o Partido Comunista Português (PCP) – com as características fundamentais de um conceito de nacionalismo. Em suma, nesse artigo veremos como as ambiguidades que permeiam as propostas políticas desse partido concorrem para fortalecer os perigos de formação de uma aliança nacional operário-empresarial, potencialmente captável para projectos políticos de recorte fascista.
1. O Leviatã financeiro
Num artigo com larga repercussão nos movimentos de Indignados em Espanha e com posterior divulgação em Portugal (veja aqui), um intelectual de esquerda de nome Juan José Millás defende a tese da oposição entre capital financeiro e capital produtivo. Utilizando um estilo que oscila entre o coloquial e o calão [gíria], Millás monta um artigo que se sustenta num pretenso antagonismo entre o juro e a produção de bens. Procedendo a uma comparação histórica mecânica [1] e que só na aparência se ancora na luta e na conflitualidade de classes como motor histórico, este nosso primeiro interlocutor utiliza a forma dessa dinâmica de classes e insere-lhe um novo desdobramento. À conflitualidade entre trabalho e capital, acrescentar-se-ia a conflitualidade entre estes e o inimigo comum da finança. «A economia financeira é o inimigo da classe da economia real».
À primeira vista este fenómeno pode parecer uma mera discussão táctica sobre alianças da classe trabalhadora. Puro engano. De facto, a criação de um campo político entre trabalhadores e capitalistas “produtivos” articula dois princípios inseparáveis: a crítica ao financeiro agiota e a transferência dos mecanismos da exploração económica para o âmbito do saque. Para estes defensores de uma nação popular adversária da finança, a forma como ocorre a produção de riqueza pouco lhes parece importar. Millás defende mesmo que «essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos cofres» (idem). Podem assim os capitalistas ficar descansados enquanto estes interlocutores desviarem as atenções para a transferência de riqueza por intermédio do saque. A isto soma-se a definição das transferências económicas no âmbito da colonização de um país – a Alemanha – sobre as populações dos países periféricos. Por isso é que a crítica ao agiota se articula intimamente com a equivalência da vida económica capitalista a um processo de saque. O descaramento deste nosso interlocutor é tal que menospreza completamente a apropriação da mais-valia – motor e coração do capitalismo – em detrimento da finança ávida de sangue e de dinheiro. Como a mais-valia é produzida e de onde provém o dinheiro pouco parece incomodar Millás, pois isso seria irrelevante face ao terrorismo dos agiotas apoiados no poder alemão e das instituições europeias.
«A economia financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico», escreve Millás, «precisa também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do sequestrado» (idem). O calão não nos incomoda nem seria nocivo se o autor não o preferisse à crítica económica. Com efeito, importa perceber como os críticos da economia de casino perspectivam o funcionamento dos mercados financeiros. Para um economista professor na Universidade de Madrid (veja aqui) o saque financeiro decorreria de um acto de puro desejo de controlo sobre a sociedade. «É assim que os bancos criam dinheiro a partir do nada quando dão um empréstimo. O banco cria dinheiro na medida em que cria dívida, mas o certo é que esta também se cria a partir do nada».
Não só não estamos longe da “vontade de poder” nietzschieana (que como se sabe, Heidegger considerava como derivada das concepções do Super-Homem), como o próprio juro seria uma categoria emanada desse mesmo desejo de controlo sobre a população. Claro que os críticos da economia agiota rapidamente dirão que não defendem esta proposição, mas que ela está implícita no poder da banca. Ao não adoptarem para si mesmos uma determinada concepção isso não significa que a concepção que imputam a outros não seja menos nociva. Quando um intelectual marxista com larga audiência internacional como James Petras perora contra o que chama de «paraíso para parasitas» (veja aqui) e quando reduz a City londrina a um mero centro de conluio internacional de rapina e de pilhagem, facilmente se constata que Petras e o seu largo público rasgaram a noção do capitalismo como sistema económico e o substituíram por um conluio obscuro do crime organizado. «A crise económica global é uma bênção para as empresas imobiliárias de alta gama, quando milionários e multimilionários do ultramar, fulanos que fogem aos impostos, assaltantes políticos do erário público, abandonam as economias saqueadas e despejam milhares de milhões em mansões e prédios de apartamentos. O crime compensa» (idem).
Neste processo de transformação ideológica do capitalismo num sistema de saque torna-se inevitável o recurso a designações anacrónicas para dar conta da realidade contemporânea. «O rendimento nacional é desviado para pagar serviço de dívida, provocando a contracção do consumo e da produção, pois bancos e instituições financeiras agora desempenham o papel que os senhores da terra exerciam em tempos feudais e pós-feudais» (veja aqui). Curiosa esta inserção (e omissão) dos mecanismos económicos capitalistas num quadro feudal. Não sabemos se o tom e o enfoque medievalista da palestra de Michael Hudson se deve ao facto de ter ocorrido numa instituição criada pela Companhia de Jesus – Sankt Georgen Graduate School of Philosophy and Theology, em Frankfurt – ou se decorre de outra qualquer motivação pessoal do autor. O que sabemos é que o recurso a um modelo de pensamento deste tipo comporta perigos gravíssimos na análise da sociedade capitalista e na luta política que importa empreender. Repare-se no modo como Hudson prossegue uma perspectiva simultaneamente belicista e de antagonização entre a finança e a economia.
«A guerra do sector financeiro contra a sociedade como um todo levou a uma dívida pública tão profunda quanto o fazia a guerra militar em tempos passados. A táctica rentista é obrigar governos a tomarem emprestado aos ricos a juros em vez de tributá-los, enquanto endividam populações, imobiliário e indústria impondo-lhes tributo na forma de juros e comissões. Para coroar tudo isso, a banca exige subsídios e salvamentos de modo a que não sofra quando dívidas e poupanças se expandirem para além da capacidade de pagar e tiverem portanto de ser liquidadas. O truque do sector financeiro é manter a economia refém, ameaçando cessar a circulação de pagamentos se não obtiverem o que querem» (idem). O que o autor chama de «guerra do sector financeiro contra a sociedade como um todo» é mais uma confirmação do que acima veiculámos sobre a articulação entre a culpabilização da finança e a necessidade de contrapor a esta uma unificação entre trabalhadores e empresários produtivos.
Num texto publicado neste nosso espaço (veja aqui) um autor deu conta de algumas citações de líderes fascistas que utilizavam os mesmos argumentos a que a esquerda nacionalista recorre nos nossos dias contra o capital financeiro. Repescamos desse texto duas citações de Salazar, para ilustrar o paralelismo estrutural entre o que parecem ser pólos políticos opostos mas que, por via da partilha de ambiguidades no plano da análise do capitalismo, acabam por se encontrar. Até bem mais perto do que se possa pensar…
«Na vertigem do dinheiro, dos preços e dos câmbios, o espírito de especulação e de risco suplantou a preocupação do negócio bem estudado e bem desenvolvido, a usura desenfreada substituiu a remuneração legítima e comedida do capital, muitos parasitismos substituíram os ganhos lícitos na criação das riquezas. Desordem: a desordem económica».
Salazar escreveu ainda:
«Quando no País a economia for confiada aos que trabalham e se fizer claramente a distinção entre trabalho e especulação; quando, acerca dos interesses da produção, discutirem lado a lado os grandes e os pequenos produtores e a massa operária organizada puder fazer ouvir a sua voz, então, veremos que já não haverá lugar para o plutocrata nem para os seus negócios […]. A organização, nos seus diferentes aspectos, terá libertado o trabalho do despotismo do dinheiro e terá levado o dinheiro a servir modestamente o trabalho».
Agora comparem-se estes excertos com as declarações dos dois últimos secretários-gerais do PCP. Num texto muito recente (veja aqui), Carlos Carvalhas brada contra a política do actual governo, reduzindo-a a um acto de saque e de rapina ao serviço da banca e da especulação: «Isto é uma vergonha e não há outro qualificativo: um roubo ao povo para resolver o problema das dívidas e do financiamento da Banca!! Depois admiram-se da revolta dos cidadãos perante este escândalo da insolente riqueza transferida para os especuladores e o sistema financeiro!». Com menos pontos de exclamação mas com um sinal político convergente, o actual líder do PCP, Jerónimo de Sousa, considera que «são os povos que estão a pagar a factura dos desmandos, da especulação e dos privilégios de uma oligarquia cada vez mais parasitária». Parasitismo da banca que conviveria com a «sujeição do país às imposições da especulação financeira e da rapina dos recursos nacionais» (veja aqui). Contra a agiotagem e a política de saque, o PCP defende «o apoio à produção nacional e a defesa efectiva do aparelho produtivo» – onde ocorre a exploração do trabalho sobre a qual esse partido não profere uma palavra – procurando promover «o avanço para a tributação efectiva dos lucros do grande capital, do património de luxo e da especulação financeira» (idem), privilegiando por isso uma abordagem de combate ao sector financeiro que assenta o seu poder na cobrança de «juros agiotas e especulativos» (veja aqui).
Comparem-se estas transcrições provenientes de diferentes espaços do espectro político e retirem-se as devidas conclusões sobre os perigos que comportam estas teses de transformação da exploração numa pura questão de saque. Como um outro autor lembrou num artigo no nosso site: «o fascismo não foi uma corrente política e ideológica com as margens bem demarcadas, como sucede com o conservadorismo, o liberalismo ou o marxismo, mas caracterizou-se por operar cruzamentos entre opostos» (veja aqui). É desta circulação e sobreposição de temas, de práticas e de modos de pensamento entre correntes políticas distintas que surge a essência do fascismo. Enquanto a esquerda não compreender este processo de circulação e enquanto não perspectivar a luta política e ideológica como a necessidade de superar as ambiguidades que redundaram na eclosão de tragédias (dos fascismos aos capitalismos de Estado “socialistas”), persistirão as condições para que o fascismo possa reformular o capitalismo a partir das lutas sociais.
2. O Behemoth da esquerda nacionalista: pequenos empresários e trabalhadores juntos pela “Economia Nacional”
Na secção anterior deste artigo abordamos a partilha de um campo comum movediço de ambiguidades, que permite a oscilação de temas de um pólo para outro do cenário político. Consequentemente, apresentamos um dos eixos em que a esquerda nacionalista tem apostado apesar da sua menor visibilidade: a tentativa de mobilização de pequenos e médios empresários em prol de uma aliança social com os trabalhadores. Neste plano a esquerda marxista-leninista não tem contemplado uma postura que procure colocar em causa, nos discursos e nas acções, as dinâmicas próprias do capitalismo. Para além do esvaziamento das lutas no interior das empresas (veja aqui), a esquerda leninista também parece ir apostando larvarmente numa organização de pequenos e médios capitalistas. E assim se vão desenvolvendo os elementos constitutivos de uma «nação em cólera», de uma coligação nacional para a remodelação fascizante do capitalismo, que não está de todo ausente no caso de uma saída portuguesa da zona euro.
Pergunta o leitor: mas como poderá o fascismo reformular o capitalismo se em Portugal as organizações de extrema-direita são dispersas e com pouquíssima expressão política e eleitoral? Não temos quaisquer dotes de adivinhação, mas o passado pode iluminar um pouco o nosso actual campo de acção. Por economia de espaço não iremos desenvolver este aspecto no detalhe que merece. Para isso remetemos os interessados para um conjunto de investigações que o Passa Palavra publicou há mais de três anos atrás [2]. Se tivermos em consideração esse e outros estudos, o fascismo é possível no quadro de uma eventual saída portuguesa da zona euro (veja aqui) e tanto pode ser fomentado pelo actual discurso nacionalista de organizações de esquerda como o PCP ou a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), como esse processo político de formação de uma «nação em cólera» (veja aqui) pode ser apropriado por organizações ou caudilhos provenientes da extrema-direita, capazes de unificar os vários eixos que neste momento ainda estão dispersos. É da abordagem de uma situação concreta portuguesa, portadora de propriedades de formação de uma possível «nação em cólera», que se podem visualizar melhor os contornos de todo este processo.
Um caso expressivo de coligação entre patrões “produtivos” e trabalhadores é visível nos materiais relacionados com a convocatória da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME) para uma vigília em frente ao Ministério da Economia no passado dia 29 de Outubro. Esta organização reclama ter 15 mil associados, o que representa uma pequena parte do tecido de pequenas e médias empresas em Portugal [3]. Mas agregar 15 mil empresas associadas não é um número despiciendo e, por essa razão, este caso concreto merece atenção. E merece atenção em dois níveis principais: no cartaz de convocatória para a vigília e no respectivo comunicado público.
No primeiro documento, a CPPME centraliza atenções em slogans simultaneamente produtivistas e nacionalistas: «Pelo crescimento económico!», «Pela produção e mercado nacionais», «Contra a destruição do País!» e «Por Portugal». A junção de um primado evidente pelas dinâmicas económicas nacionais com uma defesa do país (contra o que se depreende inevitavelmente ser uma ofensiva proveniente do estrangeiro) é expressão directa de uma concepção nacionalista da economia. E estando as PMEs portuguesas situadas esmagadoramente nos sectores não-financeiros, ganha pertinência a tese de que uma reprovação política dos agiotas financeiros se relaciona com um primado nacional-desenvolvimentista.
Por isso vale a pena avançarmos para o comunicado desta associação de pequenos e médios empresários. De acordo com esse comunicado (veja aqui), ou o governo atenderia as reivindicações do sector de maior facilidade de crédito e de redução da carga fiscal, «ou então a economia afunda-se cada vez mais e os micro, pequenos e médios empresários, as suas famílias e trabalhadores vêem o futuro cada vez mais negro». As dificuldades de financiamento invocadas colocam a tónica das reivindicações no acesso mais facilitado ao crédito bancário, aspecto que estaria a ser condicionado pelo governo. Governo que apenas estaria ao serviço da banca e dos grupos financeiros e que, nesse sentido, colocaria obstáculos ao desenvolvimento da economia produtiva, tal como se pode ler num comunicado enviado à imprensa acerca do mais recente Orçamento de Estado (OE): «uma proposta de OE sem qualquer preocupação com a economia real do País. É um Orçamento que continua a apostar na contracção do mercado interno, penalizando brutalmente as micro e pequenas empresas, os salários e reformas e, em geral, a actividade produtiva virada para o mercado nacional» (veja aqui). Promove-se, assim, uma cisão entre a finança e a economia.
Entretanto, estes empresários tão preocupados com a produção nacional pouco abordam a baixíssima produtividade das suas empresas. Para capitalistas que pretendem remodelar e relançar a economia portuguesa desprezando o papel motriz dos mecanismos do aumento da produtividade do trabalho, só a substituição do racionalismo económico por uma motivação ideológica nacionalista pode explicar o seu comportamento. No próximo artigo desta série voltaremos à temática da produtividade nas pequenas e médias empresas.
Neste processo de redesenho do Behemoth da esquerda nacionalista os trabalhadores são igualmente chamados à colação. Não apenas no sentido capitalista mais comum, onde o desenvolvimento económico dependeria quase sempre dos esforços dos patrões, mas por intermédio dos objectivos políticos de unidade entre empresários do sector produtivo com os trabalhadores. Como é sublinhado no comunicado anterior, «nesta hora difícil para todos, mesmo considerando as naturais diferenças entre empregadores e empregados, seria incompreensível não saber ultrapassar possíveis preconceitos e dar as mãos em nome da Economia Nacional e das suas Vidas» (idem). O antagonismo de classe que estrutura o capitalismo é, assim, transformado numa perspectiva organicista da sociedade com trabalhadores e empresários a desempenharem distintas – mas não necessariamente antagónicas – funções económicas, às quais a comunhão de interesses pela defesa da «Economia Nacional» se sobreporia. Igualmente elucidativo da defesa de uma unidade entre trabalhadores e pequenos patrões produtivos – os mais justos representantes da produção e do mercado nacionais – é a assunção de que a contestação a essa possível unificação política num mesmo campo de interesses estaria eivada de preconceitos. Seria difícil ser-se mais directo nos objectivos e na antecipação de críticas a esta proposta.
E não tenhamos dúvidas de que estas concepções se encontram próximas da formação de uma «nação em cólera». Quando se defende que a «participação de todos: empresários, famílias, trabalhadores e fornecedores» tem de «levar o nosso descontentamento e indignação à Rua!», parece-nos muito difícil negar a existência de germes e de potencialidades de desenvolvimento de uma «nação em cólera». Independentemente de quais poderiam ser as organizações portadoras de um projecto político com estas características, já só falta ampliar a base de massas deste projecto e encabeçá-lo por uma personalidade carismática, aparentemente apolítica e capaz de conciliar os vários eixos de um campo nacional proletário-empresarial dos produtivos contra os agiotas. Intensificados no actual contexto de crise económica na zona euro, os condimentos para a sua concretização estão vivos. Organizações de pequenos empresários, partidos e sindicatos estão genuinamente preocupados com a «Economia Nacional», ameaçada que esta estaria pela colonização agiota pró-alemã [4].
Notas
[1] «Se percebemos bem – e não é fácil, porque somos um bocado tontos -, a economia financeira é a economia real do senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole sobre a colónia, do capitalista manchesteriano sobre o trabalhador explorado» (idem).
[2] Referimo-nos aqui a uma série de quatro artigos em torno do tema “Marxismo e nacionalismo” da autoria de João Bernardo: I – O antieslavismo de Engels e de Marx; II – Os comunistas russos e a questão nacional; III – O Partido Comunista alemão e a extrema-direita nacionalista; IV – Comunismo e terceiro-mundismo.
[3] Segundo um boletim do Instituto Nacional de Estatística publicado em Junho de 2010, no final do ano de 2008 existiam «349 756 micro, pequenas e médias empresas (PME) em Portugal, representando 99,7% das sociedades do sector não financeiro».
[4] Referindo-se ao Tratado Orçamental proposto por Angela Merkel e destinado a avançar na unificação da política fiscal e orçamental da União Europeia, diz o comunicado do Comité Central do PCP de Julho deste ano: «As discussões e as decisões anunciadas em relação à destruição do que resta da capacidade de decisão soberana dos Estados relativamente quer à política orçamental, quer ao próprio sistema bancário, vão claramente nesta direcção e representam de facto um novo e gravíssimo passo na colonização económica de vários países da União Europeia». Como sempre acontece com algo que se refere às orientações políticas provenientes da União Europeia, o PCP centra a sua crítica primordialmente no ataque à soberania nacional do Estado português e só muito raramente se refere à dimensão especificamente capitalista dessas orientações políticas e de como estas representam propósitos de regulação transnacional do capitalismo. Por conseguinte, no mesmo comunicado lê-se que existe a «imposição de uma autêntica ditadura do grande capital que esmagará a democracia e a soberania» (idem). Mais uma vez, o carácter de classe é acessório e é apenas pretexto para se chegar ao problema central da soberania. Portanto, orientações políticas funcionais ao capitalismo são transformadas em orientações políticas atentatórias da soberania nacional. Do plano da crítica às relações de exploração passa-se à crítica política num plano geográfico e soberanista.
Os desenhos que ilustram este artigo são de Keith Thompson.
Leia a 2ª parte deste artigo.
Na vossa ânsia de ultrapassar todos os outros movimentos pela esquerda, surgem referências ao “capitalismo de estado” do socialismo real. As leis económicas alteraram-se efectivamente nesses países, a ponto de não se poder falar mais em “capitalismo”. Apesar de a planificação socialista ter sido uma enorme tragédia em termos de dinâmica, e apesar de não ser o modelo que penso que vocês defendem, escusam de se esquivar de uma maneira tão redutora.
De resto, o discurso do PCP coincide de facto com uma análise fascista do capitalismo. Não milito no PCP mas por mais de uma ocasião nele votei. Vou tentar explicar o discurso do PCP recorrendo a três breves pontos:
1 – Se concorre a eleições, é para ganhar votos. Embelezar o programa político recorrendo à teoria marxista sobre a origem da crise só serve para repelir os eleitores. Esse tipo de educação podem os eleitores conseguir, lendo e debatendo.
2 – O PCP, tal como os restantes partidos, tem de se focar nos instrumentos de que disporia de imediato caso o seu programa ganhasse eleições. E aqui ou acreditamos que o capitalismo actual é passível de combater se em vários países a esquerda ganhar eleições legislativas, ou rejeitamos essa hipótese e passamos simplesmente a hostilizar quem quer meter as mãos na massa.
3 – Evidentemente, sendo que Portugal é um dos países da OCDE onde existem mais profissionais liberais, a pequena-burguesia existe e não podemos negar o seu peso nas eleições. E já sabemos que a pequena-burguesia é o motor do fascismo. Mais uma vez (e por mais que o vosso ideal divirja do ideal do PCP, a pequena-burguesia não teria nele lugar, ou estou enganado?) o PCP não quer hostilizar este sector do eleitorado e tenta captá-lo recorrendo aos chavões de “crédito para os pequenos proprietários”.
Posto isto, o meu voto no PCP foi sempre para mim um voto “limitado”, pois sei bem que temos de ir mais além de legislativas se queremos construir uma alternativa ao capitalismo. Mas a existência de partidos políticos não acaba com a necessidade de se pensar fora deles, e bem, como é o vosso caso. Os meus parabéns pelos artigos que têm publicado.
As leis económicas alteraram-se tanto na URSS, que cada reforma sucessiva desde os anos 50 a ia aproximando mais do capitalismo ocidental até tudo ter acabado como tinha de acabar: na Perestroika e no Yeltsin.
Pegando a coisa ao contrário, é o discurso do fascismo que se aproxima do do PCP. Esta pequena-burguesia em fúria pode dar em muita coisa. Uma delas será o fascismo, evidentemente, mas outra hipotese seria o esquerdismo latino-americano onde, não por acaso, o PCP vai buscar muita da sua inspiração.
O passa-palavra está a esquecer um ingrediente fundamental sobre o fascismo: os únicos avanços que o fascismo consegue são aqueles que os poderes instituidos lhe concedem. Sem o apoio da polícia, do exército, dos grandes capitalistas, não há fascismo, ou melhor, o fascismo não passa do estado larvar, de um grupelho entre os grupelhos. E, para que isso aconteça, é preciso que o fascismo faça falta, ou melhor, é preciso bater em alguém que está a ameaçar o sistema, usando meios fora do alcance dos aparelhos repressivos regulares do estado burguês.
AAA: o que estás a dizer é que o PCP é oportunista. Ao proceder assim, o PCP, em vez de ser uma vanguarda, torna-se numa retaguarda. Em vez de reforçar a consciência de classe dos trabalhadores, que deveriam ser os primeiros alvos do seu discurso, embota-a, ao ponto de, se os trabalhadores quiserem ter uma percepção correcta do que se está a passar, terem primeiro que fechar os ouvidos a tudo o que o PCP (e o resto da esquerda) lhes diz.
O PCP pode tentar cativar a pequena-burguesia cantando-lhe todas as serenatas que quiser, mas isso não significa que os pequeno-burgueses se esqueçam que o PCP é o PCP. É estúpido para PCP querer-se fazer passar por aquilo que não é, e é estúpido por duas razões: porque a pequena-burguesia não acredita nele e porque, ao fim e ao cabo, não será o PCP a entrar na pequena-burguesia, mas a pequena-burguesia a entrar no PCP.
minha tendência seria desacreditar na hipótese da figura apolítica e carismática que venha a arrebatar a tensão acumulada plasmando-a em fascismo. Me parece que ha de se atentar a mudanças dentro das subjetividades que tornam essa opção anacrónica, abrindo portas para outras formas desta tensão social desaguar pela direita. Certamente que temos que aprender com o passado e atentar muito às repetições, no entanto creio que a esquerda tem que se preparar para o novo, e manusear as novas tendências para evitar que a direita o faça mais habilmente.
este texto, tão grande e bem escrito e cheio de certas referências, é bem sucedido nas suas intenções: o de ilustrar a semelhança entre ideias que potenciaram o fascismo e ideias que são defendidas por grande parte da esquerda actual (e não só). certíssimo. mas e que ideias são essas? o ataque ao sistema financeiro actual, dominado por instituições privadas, e que é caracterizado como nocivo. dou de barato a existência dessa semelhança. agora o que me interessa, e que suspeito que interesse a grande parte da esquerda (e não só) aqui retratada, é se esta caracterização é correcta ou não. se um sistema financeiro alternativo (público? semi-público? fortemente regulado? configurado num outro possível modelo mais democrático? que alternativas seriam estas, é outra discussão) não seria mais benéfico, ao nível do bem estar e desenvolvimento das sociedades. e se alguns “fascismos” até acertaram nalgumas coisas? rejeitamos o fascismo porque é um modelo anti-democrático, repressivo, militarista, agressivo, onde as liberdades são limitadas e as opiniões condicionadas. não porque caracteriza os sistemas financeiros como possivelmente prejudiciais, defendendo modelos alternativos ao modelo financeiro puramente liberal e capitalista. não vamos rejeitar uma ideia simplesmente apenas porque foi defendida por regimes fascistas. nem vamos fazer a suposição que a implementação dessa ideia implica a implantação de um regime fascista. em termos estatísticos, correlação não implica causalidade.
migolopopopol, creio que a questão principal é 1) o recuo da pauta da esquerda, que estaria adotando uma posição praticamente e meramente liberal ou “republicana”, se formos fazer o paralelo da aliança espanhola durante sua guerra civil. E 2) o risco desta aliança quando não em guerra direta contra os fascistas, mas sim contra um inimigo comum no campo económico (ao invés de bélico, como na guerra citada), fazendo com que trabalhadores e pequena burguesia se unam para defender o sistema de produção que vem (vinha?) sendo criticado tão tradicionalmente pela tradição marxista, aquele que produz a mais-valia. Ao se unirem numa frente única trabalho e capital, estamos pisando solos nos quais os principais exemplos vividos no passado recente são os regimes fascitas (e aqui o fascismo não é necessariamente a militarização, a anti-democracia, a agressividade perversa, tão estetizada de maneira grosseira e quase burlesca, mas sim o fim da autonomia dos trabalhadores, o fim da emancipação do trabalho frente o capital, seja feito isso da forma como melhor couber aos tempos contemporâneos).
Lucas, mas e aqueles que não concordam com esse discurso nem com o problema onde “trabalhadores e pequena burguesia se unam para defender o sistema de produção que vem (vinha?) sendo criticado tão tradicionalmente pela tradição marxista, aquele que produz a mais-valia”?
Aqueles que defendem um capitalismo fortemente regulado, de tendência social democrata?
bom, a estes creio que cabe a crítica econômica, no que diz respeito à exploração da mais-valia, e a crítica social apresentada neste texto, dos riscos fascistas desta união entre trabalho e capital por uma sociedade coesa.
Para além das críticas resta apenas o campo propriamente do político, da voz, da assembléia, do cotidiano. Se aí a tendência social democrata for mais efetiva, as críticas citadas acabam ficando apenas no papel mesmo. Se, no entanto, as críticas tiverem a potência de transformarem-se em ato, então teremos esperança novamente.
Gostaria de recordar que o «capitalismo fortemente regulado, de tendência social democrata», referido por Migolopopopol, foi originariamente o modelo de capitalismo instaurado pelos regimes fascistas. A social-democracia só chegou ao poder efectivo num bom número de países europeus após a segunda guerra mundial, e teve todo o interesse em cortar o cordão umbilical que a ligava às experiências fascistas. Se houver leitores suficientemente corajosos e interessados em prosseguir esta perspectiva de análise, sugiro-lhes que pesquisem em redor dos conceitos de economia organizada e economia dirigida, que mobilizaram muitos economistas na década de 1930, e que verifiquem o percurso de alguns deles, como Marcel Déat e Henri de Man, que confluíram no fascismo, e outros que se contam entre a tecnocracia fundadora do mercado comum europeu. Henri Michel, no seu livro Les Courants de Pensée de la Résistance (Paris: Presses Universitaires de France, 1962), mostrou como durante a ocupação nazi da França alguns comités da Resistência absorveram e reelaboraram os modelos fascistas de controlo económico e os propuseram como base para a futura reconstrução da França. Vale também a pena ler o que Giuseppe Bottai, uma das principais figuras do fascismo italiano, esceveu acerca do New Deal, assim como é interessante ler o prefácio de Keynes à edição alemã da General Theory. Finalmente, Pierre Drieu la Rochelle é um nome importante das letras francesas, e do fascismo francês também. Aquando da Libertação, em 1944, escondeu-se para não ser preso e verosimilmente fuzilado, e no diário que manteve nos últimos tempos de vida ele observou numa página datada de 18 de Fevereiro de 1945, um mês antes de se suicidar, que podia surgir da Resistência um fascismo francês porque «ela é composta por pequeno-burgueses ultranacionalistas» e «querendo o socialismo, eles querem-no sem o querer; querem o socialismo liberal, o que é a fórmula primitiva de todo o estatismo fascista».
Migolopolol: se é dos que defendem um capitalismo fortemente regulado não há muitas razões para que queira comentar este post, onde o que está na mira é a política defendida pelo PCP e mesmo pelos sectores mais radicais do BE. A luta do Arrastão e do Jugular não é para aqui chamada.
Em todo o caso, aproveite para ler o que o João Bernardo tem para lhe ensinar sobre a “origem” e consequências que giram em torno do idealismo do “capitalismo fortemente regulado”.