Por João Valente Aguiar

No blog Ladrões de Bicicletas (leia aqui) o economista João Rodrigues apresentou uma crítica à primeira parte do meu artigo “A minhoca e a maçã. A esquerda nacionalista e o euro”. Na realidade, fiquei com a impressão de que João Rodrigues (JR) só terá lido os excertos que coloquei no blog 5 dias, na medida em que praticamente se centrou num parágrafo meu sobre um texto de Octávio Teixeira.

Muito mais importante do que saber ao certo se uma saída do euro acarretará uma desvalorização de 20 ou 30% é discutir se essa política de desvalorização faz ou não algum sentido. Do meu ponto de vista não faz, e por duas razões fundamentais.

Por um lado, assumir que uma saída do euro acarretaria uma inflação da ordem dos 8 a 9% e uma queda salarial dessa ordem, como Octávio Teixeira fez num artigo do Avante (e que JR corroborou), é, goste-se ou não, assumir que quem vai ter de pagar o pretenso subsequente aumento do fluxo de exportações e de substituição de importações serão os trabalhadores. Bem pode JR brincar com piadas sobre caramelos que não fica explicado como os bens de consumo corrente que não são fabricados em Portugal poderiam manter os preços actuais. E quem diz os bens de consumo corrente pode acrescentar combustíveis, matérias-primas, maquinaria, etc. Já enunciei este problema no meu artigo e o Passa Palavra já o apresentou, tal como se segue (confira aqui):

«[…] na mesma medida em que a adopção de uma moeda depreciada tornaria mais baratas as exportações, encareceria as importações, o que por si só implicaria o agravamento do saldo negativo.

A situação seria tanto mais grave quanto o aumento do preço das importações se repercutiria de imediato sobre a produtividade das empresas, diminuindo a sua capacidade de adopção de tecnologias mais modernas. De acordo com o referido Relatório do Banco de Portugal, se adicionarmos os seguintes grupos de produtos — combustíveis minerais, químicos, plásticos e borracha, pasta celulósica e papel, matérias têxteis, minerais e minérios, metais comuns, máquinas e aparelhos, veículos e outro material de transporte e óptica e precisão — atingimos 76,8% das importações totais de bens efectuadas em 2010. Só as máquinas e aparelhos e os veículos e outro material de transporte somaram 30,5%. O encarecimento das importações teria, portanto, um efeito negativo não só no volume da produção como igualmente na qualidade dessa produção, o que, por sua vez, afectaria negativamente a capacidade concorrencial das exportações portuguesas.

Mas o aumento do preço das importações repercutir-se-ia igualmente sobre o consumo popular, pois uma grande parte dos artigos de alimentação e vestuário é importada. Sempre segundo o mesmo Relatório do Banco de Portugal, se adicionarmos os seguintes grupos de produtos — agrícolas, alimentares, vestuário e calçado — alcançamos 17,5% das importações totais de bens realizadas em 2010. Assim, ao mesmo tempo que a situação dos trabalhadores se deterioraria em consequência do descalabro da actividade económica, aumentando o desemprego e paradoxalmente reduzindo-se os salários, o seu nível real de vida ficaria ainda pior, já que aumentariam muito os preços da componente importada dos bens de consumo».

A transcrição é longa, mas parece-me muito significativa para assentar os pés no chão relativamente ao que na verdade está em causa numa saída do euro. Por isso mesmo é que no meu artigo mencionei diversos dados relativos ao saldo acumulado negativo da balança corrente. Ora, bem pode JR chamar a Islândia e a Argentina à colação que nada disso tem alguma coisa a ver com o caso português. Para chegar à crítica a esta questão farei um brevíssimo desvio.

Na segunda parte do meu artigo critiquei os que, à esquerda, continuam a ver a unidade nacional como espaço privilegiado e central de análise — e isto é que é nacionalismo, caro João Rodrigues. «Onde a esquerda pensa que a relação económica de Portugal (ou da Grécia) com a Alemanha se encontra no mesmo patamar de integração da efectuada com a China ou com a Argélia, a linha actualmente hegemónica nos capitalistas europeus tem pensado a zona euro como a sua unidade de análise e de actuação política». O pensamento que enunciei para criticar quem acha que se mudariam as exportações portuguesas para os países emergentes do pé para a mão é um pensamento análogo ao dos que acham que desvalorizar a moeda na passagem do euro para o escudo seria basicamente o mesmo que desvalorizar a coroa islandesa… Equiparar uma desvalorização cambial com a saída de uma zona económica e monetária — ou o que Agostinho Lopes, por quem JR se embeveceu, chama de «dissolução da união económica e monetária» (leia aqui) —  parece-me um exercício condenado ao fracasso e que só alimenta erros. Quanto mais não seja porque é significativo o facto de as classes dominantes continuarem a ver uma Grexit (ou uma saída portuguesa do euro) como um perigo para o conjunto da economia europeia e não apenas para a economia grega (vd. ponto 1 da segunda parte do meu artigo).

Em suma, a desvalorização cambial de 30% teria imensas possibilidades de se aproximar de uma queda real dos salários da mesma ordem, precisamente porque o défice da balança corrente portuguesa a isso obrigaria. A não ser, claro está, que quem propõe a saída do euro defenda o subconsumo [1] e uma nova política industrial sem a importação de maquinaria moderna. Como salientei na primeira parte do meu artigo, «Portugal importa anualmente mais de 50% de produtos com alta e média-alta intensidade tecnológica e […] as suas exportações se focam fundamentalmente em produtos com baixa e média-baixa intensidade tecnológica (mais de 60%)». Se assim for, então o que a saída do euro oferece aos trabalhadores a viver em Portugal não será um melhoramento da sua condição mas uma aposta nos mecanismos da mais-valia absoluta.

Ora, isto leva-me para o segundo e mais importante ponto da minha crítica às teses que defendem uma saída do euro. E que foi, aliás, o centro da minha crítica ao artigo de Octávio Teixeira, o que JR deixou completamente à margem no seu texto. A saída do euro não representaria o fim da austeridade mas o seu aprofundamento, precisamente porque uma industrialização fora do euro implicaria o reforço dos mecanismos da mais-valia absoluta. E isto por duas razões fundamentais. E aqui repito o que já tinha dito na primeira parte do meu artigo e que JR passou completamente por cima:

«Uma reindustrialização na base da mais-valia relativa seria impossível nestas condições, por duas grandes ordens de razões:

Por um lado, o financiamento externo em euros ou dólares para a compra de maquinaria de alta intensidade tecnológica, de matérias-primas e mesmo de alimentos e produtos de consumo corrente seria muito mais caro, fruto da desvalorização cambial do escudo. A isto somar-se-iam taxas de juro elevadíssimas nos mercados de dívida. Se a economia portuguesa na actual situação já tem pouca credibilidade internacional junto dos investidores, sem o euro como a segunda moeda de reserva mundial e sem o Banco Central Europeu como entidade de garantia de última instância, a situação seria ainda pior do que já é hoje. No entanto, a via preferida pela esquerda nacionalista não seria esta, mas a da emissão nacional e “soberana” de moeda nacional. Com efeito, a via da emissão de moeda para compensar essa ausência de crédito externo elevaria a já mencionada taxa de inflação de 8-9% a níveis estratosféricos, o que só contribuiria para desacelerar ainda mais a actividade económica. OT fala numa inflação de 8 a 9% no caso de uma saída do euro e tomando como base a emissão de moeda nacional para cobrir os actuais gastos do Estado e actuais necessidades de financiamento da economia. Na realidade, isto não bate certo com a sua proposta de reindustrialização fora do euro. Se o país se reindustrializasse fora do euro e sem acesso aos mercados de dívida pública, a verdade é que, por exemplo, a necessidade de incrementar a compra de maquinaria de alta e de média-alta intensidade tecnológica e a reestruturação do parque industrial português exigiriam somas imensas de emissão de moeda. [Acrescento agora que o crescimento da emissão de moeda seria muito superior aos ganhos de produtividade, na medida em que esta não se poderia desenvolver fortemente num quadro de saída do euro]. O que, por seu turno, se reflectiria numa inflação muito superior aos tais 8 a 9% de que fala OT. Portanto, não só o acesso aos mercados financeiros seria inviável como a emissão maciça de moeda nacional não poderia corresponder a uma alternativa economicamente sustentável.

Como esta reindustrialização numa base de incremento da produtividade do trabalho se tornaria impossível, a saída só poderia ser uma: o aprofundamento do actual empobrecimento dos trabalhadores por via da redução da massa salarial e numa escala muito superior, pois só assim se elevaria o excedente económico passível de financiar uma política de reindustrialização. Por isso, a saída do euro não representaria o fim da austeridade mas o seu aprofundamento».

Portanto, não é por acaso que a primeira parte do meu artigo parte da produtividade e não da questão da desvalorização, como Octávio Teixeira e JR fizeram. Enquanto a desvalorização cambial recairá sobre os salários dos trabalhadores e apenas ajudará o sector exportador da burguesia, a abordagem desta questão a partir da produtividade coloca o problema do desenvolvimento do capitalismo no quadro da mais-valia relativa. Ao mesmo tempo, a abordagem da mais-valia relativa não é de todo irrelevante, pois foi no quadro desta (e contra ela) que as mais importantes lutas operárias dos últimos 50 anos se desenvolveram. Foi contra o fordismo plenamente desenvolvido e altamente produtivo para as condicionantes da época que no Maio de 68 ou no Outono Quente italiano se desenvolveram e se colocaram as lutas sociais num plano novo de rejeição da produção capitalista.

Sobre as consequências de uma saída do euro gostaria de citar Francisco Louçã (leia aqui), um economista com o qual não concordo em variadíssimas questões, mas que neste assunto me parece colocar de um modo muito límpido os limites que os defensores de uma saída do euro não conseguiram justificar até hoje.

«Suponhamos que o governo decidiu sair do euro e ressuscitar o escudo. Mandou por isso imprimir em segredo as notas de escudo e prepara-se para anunciar a novidade, numa sexta à noite, à hora do telejornal, quando os bancos já estão fechados (ou decreta um feriado bancário durante vários dias). Nesse fim-de-semana, todos os bancos fazem horas extraordinárias para distribuir as notas por todos os multibancos, para que a nova moeda possa entrar imediatamente em circulação.

O que vai acontecer é que toda a gente vai descobrir que se prepara a nova moeda. Esta operação de lançamento do escudo envolve milhares de pessoas, que transportam e distribuem as notas, e eles vão contar às suas famílias. E, de qualquer modo, toda a gente assistiu nas semanas anteriores a declarações dos ministros a explicar que isto vai muito mal e precisamos de decisões muito corajosas para salvar a Pátria em perigo. Em resumo, toda a gente percebeu o que vai acontecer.

O que farão então as pessoas? Não é preciso adivinhar: vão a correr aos bancos levantar todas as suas contas e guardar as notas de euros. Se não o fizerem, todas as suas poupanças vão ser transformadas em escudos, a um valor nominal que cairá com a forte desvalorização que, afinal, é o objectivo desta operação. Os trabalhadores que depositaram salários e poupanças vão ser as primeiras vítimas da nova política. E por isso vão tentar salvar o que puderem.

Ora, os bancos não querem nem podem pagar aos clientes todos os seus depósitos, simplesmente não têm o dinheiro para isso – nem há notas suficientes para cobrir toda a massa monetária líquida que existe em Portugal (a massa monetária é a soma das notas e moedas em circulação com os depósitos nos bancos, e os bancos não guardam todo esse dinheiro, porque emprestam grande parte dele). Os bancos vão por isso fechar as portas quando se generalizar o alarme, e o governo vai chamar o exército para guardar os edifícios. Foi assim na Argentina ou na Rússia, foi assim em todos os casos em que se anunciaram grandes desvalorizações (e nem se tratava de sair de uma moeda e criar outra, o que nunca aconteceu na história da União Europeia).

Os nacionalistas, que propuseram a saída do euro, começam agora a ter a primeira dificuldade. É que vão defender o exército e os bancos contra a população. E vão ter de fazer a sua primeira vítima, os depositantes nos bancos. A conta é fácil: se a desvalorização for de 50%, as poupanças e depósitos vão perder metade do seu valor.

Passou assim o primeiro choque. Mas vem aí mais, e pior. O escudo desvalorizou-se então 50% em relação ao euro. O governo aposta nessa desvalorização para recuperar a economia e espera que o efeito benéfico seja o seguinte: as exportações aumentam porque se tornam mais baratas em euros e dólares, enquanto as importações diminuem porque se tornam mais caras em escudos. Assim, haverá uma deslocação de capital para as indústrias e serviços exportadores e uma redução do consumo e das importações. Tudo isto melhora substancialmente a balança de pagamentos. A regra é esta: se a vida melhorar para Américo Amorim, o dono da maior multinacional industrial portuguesa, ou para outras empresas exportadoras, melhorará também para toda a economia.

Parece conveniente, mas é um problema. É que, com a desvalorização, o preço dos produtos importados aumenta no mesmo dia. O combustível passou a custar uma vez e meia o seu preço anterior (e todo o sistema de transportes também), e o mesmo acontece com os alimentos importados ou com os medicamentos, entre tantos bens de primeira necessidade.

Como dois terços do rendimento dos portugueses é para o consumo corrente, imagina-se o efeito imediato destes aumentos de preços no salário. Quanto às exportações, sim, vão aumentar, desde que os compradores no estrangeiro queiram comprar mais em função da redução do preço (e desde que não haja recessão no estrangeiro, e que os produtos portugueses correspondam a mercados com procura crescente, e que as suas características acompanhem as exigências dos consumidores estrangeiros, etc.). Talvez aumentem. Se aumentarem, será em todo o caso devagar: as receitas das vendas só entram quando se fizerem as vendas, e é preciso esperar o tempo da produção – e é preciso ter dinheiro para investir. Depois, o que Portugal exporta inclui o custo da matéria-prima e outros produtos que são importados, que são mais de metade do valor das exportações, e que ficaram mais caros. Por isso, as receitas das exportações aumentam pouco, devagar e mais tarde.

Chega depois o segundo choque. Metade das famílias portuguesas tem uma longa dívida ao banco, que lhe emprestou dinheiro para comprar a casa. Emprestou em euros e deve em euros aos bancos estrangeiros, mas vai receber em escudos dos devedores em Portugal.

O banco perdeu assim metade do valor dos seus créditos. O banco vai por isso à falência. É por isso que os defensores da saída do euro explicam, honestamente, que será necessário nacionalizar todos os bancos, não tanto para socializar o capital financeiro, mas antes para o salvar. E salvar um banco pode custar muito caro, como já sabemos pelo caso BPN [Banco Português de Negócios]. Porque, quando se nacionaliza um banco, fica-se com as suas dívidas, que são dívidas a quem nele depositou e dívidas a quem lhe emprestou dinheiro, normalmente a banca estrangeira. Salvar os bancos tem um custo, e não é pequeno: a dívida pública portuguesa duplica imediatamente com as dívidas dos bancos, que antes eram privadas e passam a ser públicas porque foram nacionalizadas.

Chegados aqui, já sabemos o que se vai passar: os nacionalistas vão propor um aumento de impostos para pagar as dívidas da banca ao estrangeiro, isto é, para financiar a banca internacional.

Voltemos agora aos problemas que os nacionalistas estão a viver no apoio ao governo que decidiu a saída do euro. Já têm contra si quem vai pagar mais impostos, viu multiplicar as suas dívidas, paga mais pelos alimentos, transportes e medicamentos, ou perdeu parte das suas poupanças e depósitos. Com tudo isto, os trabalhadores depressa perceberão que perderam parte do seu salário (ou da sua pensão), e que o esforço orçamental não diminuiu (pelo contrário, agravou-se, pois a dívida vai ser paga em euros mas os impostos são recebidos pelo Estado em escudos, e são precisos cada vez mais escudos por cada euro), e a saúde e a educação têm novos cortes.
Por outras palavras, os nacionalistas que defendem a saída do euro meteram-se numa alhada. Os que diziam que queriam impedir a austeridade, acabam a propor um sistema de mais austeridade, toda orientada para o benefício de um sector social, a indústria exportadora, e promovem a queda dos salários e das pensões. Não resolveram nenhum problema e criaram novas dificuldades. E perdem o respeito dos trabalhadores, que estão a ser prejudicados».

Se no artigo Francisco Louçã não se referisse directamente a Vítor Bento, eu diria que esta longa citação se aplica sem tirar nem pôr à esquerda nacionalista portuguesa. Talvez não se aplicasse porque na altura a esquerda nacionalista portuguesa não via ainda a saída do euro como uma oportunidade de capitalização política e, como sempre, jogava inteligentemente na expectativa, como um bom jogador de xadrez. Com a austeridade a atingir cada vez mais duramente os trabalhadores, a esquerda, representada fundamentalmente pelo Partido Comunista Português (PCP) e pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), tentará capitalizar esse legítimo e correcto descontentamento para o seu projecto de um capitalismo de Estado. Ora, passadas tantas e tantas experiências estatistas um pouco por todo o mundo, alguém ainda é ingénuo o suficiente para pensar que as nacionalizações que o PCP preconiza são para entregar as empresas à gestão democrática e colectiva dos trabalhadores e sem interferências externas privadas ou estatais?

Por isso é que eu e vários outros autores temos falado dos riscos económicos e também políticos de uma saída do euro. E aqueles que dizem que o fascismo está na zona euro estão a confundir empobrecimento com aquele fenómeno político. Na verdade, o fascismo é muito mais do que um regime repressor e autoritário. Se assim fosse, todos os regimes da modernidade seriam, em maior ou menor grau, fascistas… Para a tipologia política, os critérios da repressão e do empobrecimento são muito escassos. O fascismo é, para simplificar a minha abordagem, a utilização de um movimento de massas desarticulado e sem um grau mínimo de auto-organização, em prol de uma reorganização do capitalismo sobre novas bases. Geralmente o fascismo constitui-se a partir de uma aliança dos trabalhadores com os capitalistas “produtivos” contra a finança, para regenerar a nação. E é este ponto que a esquerda, representada pelo PCP em Portugal, e a extrema-direita um pouco por toda a Europa parecem estar apostadas em concretizar: devolver a soberania nacional às forças vivas e produtivas da sociedade portuguesa (italiana, grega, etc.) contra os ocupantes alemães e os seus feitores. Não estou com isto a pretender que o PCP é fascista. Estou a dizer que a partilha de elementos comuns entre as forças políticas declaradamente fascistas e a esquerda herdeira do Cominform deveria ser objecto de reflexão. É daí que surgem os fascismos. Fascismos que podem perfeitamente depois engolir as forças que à esquerda ajudaram a defender a nação contra a Europa.

E aqui termino com a questão mais de perto relacionada com o nacionalismo. «O nacionalismo não vive apenas de aspectos mais directamente conotados com a vivência histórica nacional tais como D. Afonso Henriques, Aljubarrota, as quinas ou a comemoração do Primeiro de Dezembro», algo que as correntes mais à direita gostam de utilizar para definir o seu nacionalismo. «De facto, o nacionalismo expressa-se no modo de pensar a realidade, tomando os países como realidades económicas unas, transcendendo assim os antagonismos de classe. Ou, noutro sentido, equivalendo a burguesia e os gestores ao conjunto dos países ricos do norte da Europa e equivalendo o conjunto dos trabalhadores às nações periféricas» (confira aqui). É isto o nacionalismo: a elisão dos antagonismos de classe na sociedade e a aposta num trabalho ideológico e político de harmonização da classe trabalhadora com sectores das classes dominantes. Se JR fizer questão de empregar o termo nacionalismo é lá com ele. Há muito quem se considere patriota e não nacionalista. Também há quem benza a cadeira, a baptize de poltrona e pense que está sentado mais confortavelmente.

Longe vão os tempos em que a esquerda internacionalista apostava na derrota das suas próprias nações, como na Primeira Guerra Mundial, para que o proletariado se organizasse internacionalmente e por cima das fronteiras nacionais. Essa esquerda reivindicava-se de antipatriótica e, apesar de minoritária, era expressiva. Alguns chegaram mesmo a reunir-se em Zimmerwald, alguém se lembra dos nomes? E se recuarmos mais ainda, ainda mais distantes estão os tempos em que a esquerda internacionalista defendia o livre-cambismo contra o proteccionismo nacionalista. Houve mesmo um alemão que escreveu um livro nesse sentido, alguém se lembra do nome?

Não tenho qualquer nostalgia por aqueles tempos. Procuro apenas enquadrar historicamente as discussões que hoje a esquerda tem lançadas em cima da mesa. Num mundo capitalista completamente globalizado e transnacionalizado, apostar na nação como resposta de esquerda só pode representar um retrocesso político e ideológico profundíssimo, sendo uma garantia maior para que os capitalistas e os gestores continuem a controlar a vida social a seu bel-prazer.

As crises económicas não equivalem a crises de dominação das classes capitalistas. Pelo contrário, é nas crises económicas que os trabalhadores naturalmente se agarram ao pouco que têm, com receio de que as coisas piorem ainda mais. É nas crises económicas que as propostas autoritárias e fascizantes mais possibilidades têm de se desenvolver. Por isso, é nas crises económicas que devem ser lucidamente equacionadas pela esquerda as vias que melhor poderão relançar lutas sociais de grande envergadura. Uma crise de dominação da burguesia e dos gestores é directamente proporcional ao grau crescente de organização e de consciencialização dos trabalhadores em torno da necessidade de tomar para si o controlo da vida social, económica e política. Ora, uma saída do euro representará uma presença ainda mais arreigada do nacionalismo na classe trabalhadora. E mais longe e mais difíceis ficarão as perspectivas de emancipação social.

Nota

[1] «Em Atenas e outras cidades surgiram hortas improvisadas onde são cultivados legumes numa agricultura familiar de subsistência» (leia aqui).

2 COMENTÁRIOS

  1. Eu julgo que o alemão é Friedrich List e o livro é “O Sistema Nacional de Economia Politica”.

  2. Marx criticava o nacionalismo económico do List e não o contrário…

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