Algumas conclusões e muitas questões deixadas pelos protestos durante a posse de Peña Nieto na Cidade de México. Por Heriberto Paredes Coronel

Talvez uma nova fase na luta política de esquerda tenha se iniciado no México com os acontecimentos do 1º de dezembro passado. As coisas saíram do controle em muitos sentidos e, pouco a pouco, passados os primeiros dias de ressaca, as avaliações começam a aparecer e difundir-se. O fato concreto que gerou a indignação da população – senão de toda, de muitos setores – foi a posse ilegal de um presidente ilegítimo: Enrique Peña Nieto não só fraudou descaradamente as eleições como mostrou-se tomado pelo medo ao destacar um imenso efetivo de segurança para impedir qualquer contratempo no ato de início de seu governo.

Na véspera daquele sábado, respirava-se desrazão nas ruas, um silêncio de resignação voltava a corroer as faces das pessoas, sobretudo porque não se acreditava possível evitar o acontecimento iminente. Dias antes, o efetivo de proteção aos recintos em que pisaria aquele que diz ser presidente do México era, para dizer o mínimo, monstruoso. Vários quilômetros de cercas metálicas cortavam avenidas e ruas. Bloqueavam o caminho e incomodavam as pessoas, que eram obrigadas a se identificar a todo momento a homens do Estado Maior Presidencial. O exército estava nas ruas.

Caos – num país que volta ao domínio do Partido da Revolução Institucional (PRI)[1] –, caos porque ninguém está de acordo e porque tampouco se sabe o que fazer; porque o novo gabinete é ameaçador e também porque se tem que sobreviver dia a dia e pensar no que está por vir neste fim de ano: aumentos nos impostos, leis que não beneficiam ninguém e a grande carapaça que oculta o que há de nefasto neste velho regime. Caos é o que há neste país. Raiva e coragem estão guardadas nas profundezas, tanto que quando se expressam o fazem com tal intensidade que um protesto pode se converter em uma batalha, uma frente de guerra.

Isso aconteceu na batalha de San Lázaro, logo em frente ao Congresso da União.[2]

Mais além do relato pontual do ocorrido, o que segue é uma interpretação dos acontecimentos tomando em conta o percurso, que começa às três da manhã na Acampada Revolução (acampamento que surge com o movimento Yo Soy #132[3], mas que, com o passar dos meses, se afasta em concepção política e estratégia para consolidar uma perspectiva própria), e que continua com uma passeata pelas ruas de Tepito até chegar ao bairro de San Lázaro, onde as forças se desatam e multiplicam ao longo de mais de sete horas de combate urbano em diferentes pontos da zona central da capital.

Quem começou a batalha? Enrique Peña Nieto o fez ao fraudar as eleições, ao comprar votos através de cartões de supermercado, ao reciclar as mais obtusas forças políticas do PRI. Ele começou com a violência nos dias 3 e 4 de maio de 2006 com a operação em San Salvador Atenco[4], não só liberando a ação violenta mas também a ocultando para poder mantê-la. Ou será por acaso mentira que durante seu governo no estado do México o feminicídio cresceu descomunalmente? Se trata-se de encontrar responsáveis, podemos começar por esta personagem.

Mas também é responsável pela violência Marcelo Ebrard, chefe de governo do distrito federal, um político formado nas escolas do PRIismo, especificamente sob a tutela de Manuel Camacho Solís e Carlos Salinas de Gortari; é ele quem tem mantido a política de tolerância zero nas ruas desta cidade, quem tem expropriado as casas de famílias inteiras acusando-as de ser traficantes, quem se gaba de ter uma cidade de vanguarda quando constrói o transporte público impondo primeiro a força pública e depois as migalhas. Marcelo Ebrard é também violento quando empodera mais empresários do que se pode imaginar ou quando faz o trabalho sujo de Enrique Peña Nieto na briga da troca de governo.

Houve sim uma resposta contundente por parte das pessoas que atacaram o cerco que rodeava o Congresso da União. Parecia necessário passar de uma luta de resistência a uma luta ofensiva que pudesse catalisar a ira e a insatisfação com décadas e décadas de afrontas. Ainda que não se trate de fazer apologia da violência pela violência mesma, tampouco se pode condenar sem reservas o que sucedeu na manhã daquele sábado. Quem lá esteve, como nós, documentando, pôde observar que havia, entre a Polícia Federal e o grupo de jovens que lutavam, uma evidente distância, sobretudo no que diz respeito à capacidade de combate e às armas que possuíam. Enquanto a polícia contava com capacetes, escudos, lança-granadas de gás lacrimogênio, armas que disparavam balas de borracha (ou outros projéteis, dos quais mostramos uma ampla gama mais abaixo) e as próprios cercas de metal, os jovens tinham pedras e paus, bombas caseiras e o que encontravam em seu caminho. E os feridos graves foram, entretanto, os civis, pessoas que não estavam envolvidas no conflito – para isso há os vídeos. A quem deve caber a prudência senão às forças da ordem? Por que disparavam diretamente contra as pessoas? Por que não simplesmente dispersar os manifestantes se essa era sua tarefa? Por que disparar e disparar sem controle? Porque sua vocação é a repressão, como afirma Lorenzo Meyer em entrevista com Jesusa Cervantes, da revista Proceso: como primeiras ações do governo, o cerco tão descomunal e a inclusão de Miguél Ángel Osorio Chong, representante do que há de mais repressivo no PRI, no gabinete, demonstram o espírito do novo regime.[5]

Também houve momentos de euforia e de franco apoio aos que protestavam, como, por exemplo, a entrada triunfal de um caminhão basculante cheio de manifestantes, que trouxe um refresco depois de várias horas de combate. Todos os que estavam naquele local se somaram com prazer a essa ação e ela, para além de ser condenável ou não, revela a grande expectativa das pessoas em derrotar Penã Nieto. Depois de muito tempo respirando gás lacrimogênio e gás pimenta, se esquivando de balas de borracha e outro projéteis, celebramos aquela aparição – imagem que lembra a entrada triunfal da guerrilha em Manágua, em 1979[6]. Ali, a história da luta social se reforçou, começou uma narrativa que mostra a perda do medo e o fim das cabeças abaixadas; enfim é possível pensar em outros cenários: o caminhão basculante se converteu em nosso Cavalo de Tróia.

Palácio de Belas Artes: o excesso como signo

A jornada continuou com a mente cheia de incerteza e as ruas do centro histórico da capital, de polícia. As pessoas não haviam ainda se recuperado da batalha perto do Congresso e já havia alguns grupos se dirigindo às proximidades do Zócalo (a praça central). Havia pouca gente na rua, salvo manifestantes e policiais da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, entre agentes do grupo de operações especiais e os antimotim de sempre. Mais tarde chegariam, vestidos de civis, agentes da extinta Polícia Judicial, hoje Política de Investigação, e elementos da Polícia Bancária – serão eles a completar o panorama de prisões arbitrárias.

Talvez a feroz batalha que se desenrolou ao longo da Avenida Juárez e que teve seu ponto alto na esplanada de Belas Artes poderia ter sido evitada, talvez não; mas o que foi de fato incompreensível foi a ação inescrupulosa dos contingentes policiais, sua atitude prepotente e violadora dos direitos humanos. Eles começaram de imediato a prender pessoas que caminhavam sem qualquer relação com os acontecimentos, como demonstra o vídeo que registramos na esquina de 5 de Maio e Filomeno Mata, bem como outros vídeos recuperados, nos quais fica evidente que os detidos não estão envolvidos nos protestos violentos.

Um dos grupos de manifestantes, que vinha de San Lázaro até o centro histórico, se tornou uma nuvem de fúria que arrasou tudo que cruzava seu caminho, e foi este grupo que protagonizou os primeiros enfrentamentos em frente ao Palácio de Belas Artes. Logo muito mais gente se somaria a eles, saindo dos edifícios em que se escondiam. Indignados com a atitude dos policiais, transeuntes começariam a freá-los e a apoiar os jornalistas agredidos, impedindo que muitas pessoas fossem levadas presas e fortalecendo a resistência nas barricadas que foram improvisadamente levantadas no caminho das tropas antimotim. Entre os abusos amplamente documentados em vídeo, fotografias e testemunhos diretos dos afetados, pode-se mencionar: detenções arbitrárias de pessoas alheias ao conflito, violência excessiva para conter os manifestantes, uso sem controle de armas de fogo e gás lacrimogênio, ataques à população que não estava relacionada com os acontecimentos, disparo direto de balas de borracha nas pessoas em geral, impedir o avanço de ambulâncias, entre outros[7].

Por que as forças da ordem que se encontravam nas imediações do Palácio de Belas Artes, ao concentrar-se em atacar os manifestantes e ver que não podia assumir o controle da situação, inicia uma onda de prisões contra a população que não estava participando da batalha? Por acaso a polícia se deu conta de que havia sido superada pelos manifestantes e decidiu cumprir sua cota de detidos com os desatentos ou com os que passavam pelo local sem estar envolvidos no conflito? A polícia teve que cumprir uma cota de detenções em sua jornada? A que tipo de justiça se pode aspirar se a polícia detém pessoas sob o lema do cumprimento de cotas por cada pessoa que seja posta à disposição do Ministério Público ou consigna em alguma prisão? Que tipo de justiça é essa que detém pessoas inocentes e as apresenta como vândalos? Tanto os vídeos como os testemunhos dos detidos afirmam o que não se diz abertamente: o governo do Distrito Federal e seu titular até agora, Marcelo Ebrard, precisavam de um número de detidos coerente com a magnitude dos acontecimentos , quer dizer, precisavam de detenções para não revelar que a polícia da capital não está suficientemente capacitada e foi superada, impedida pelos manifestantes de continuar sua tarefa de dispersar o protesto. Jesús Robles Maloof[8], em uma extraordinária e precisa análise das prisões realizada em 1º de dezembro, expõe algumas das incongruências que sustentam a aparência de verdade da versão oficial e questiona diretamente o chefe de governo: “Marcelo Ebrard: não entendo o que você está fazendo com seu futuro político em seus desastrosos últimos dias de gestão; entendo com clareza, porém, que o futuro de 69 famílias ou mais está sendo destroçado pelo vandalismo institucional da Secretaria de Segurança Pública e da Procuradoria Geral de Justiça do Distrito Federal. Uma cifra alta na conferência de imprensa não vale o calvário a que se está submetendo essas pessoas”. O governo da capital mente e o faz com toda a premeditação, resguardado por uma política de tolerância zero.

Até esse momento, os grandes consórcios de comunicação, como Televisa e TV Azteca, têm condenado injustificadamente os atos de “vandalismo” e asseguram que “grupos anarquistas” os cometeram – da mesma maneira como procedeu o governo. Com o objetivo de clarificar a situação, vários grupos que contam com a identidade anarquista, como a Cruz Negra Anarquista e a Aliança Anarquista Revolucionária, soltaram um comunicado[9] no qual explicam suas próprias atividades e fazem uma análise da atuação do governo do DF, além de apoiar a luta pela liberação dos presos políticos que até esse momento somam 69 (57 homens no Reclusorio Preventivo Varonil Norte e 12 mulheres no Reclusorio Preventivo Feminino de Santa Marta Acatitla)[10]. A Acampada Revolución, de sua parte, deu a conhecer sua postura e afirmou que “a jornada de luta do dia 1 de dezembro não foi espontânea, teve claros objetivos políticos: manifestar-nos contra a imposição e as reformas estruturais, e em defesa de nossos direitos mais elementares; foi trabalhada durante meses pelo Movimento 132, por assembleias populares, por organizações, coletivos, sindicatos, frentes e pela população em geral. Decidimos nos mobilizar unitariamente, de maneira massiva e organizada”[11]. Tudo aponta, então, para pelo menos duas conclusões:

1. Existe um descontentamento generalizado entre a população mexicana em relação à presidência de Enrique Peña Nieto e o regresso ao poder do PRI, e tal descontentamento desatou uma nova fase na luta social, que começou com os acontecimentos do 1º de dezembro passado. Pouco a pouco os cidadãos, organizados ou não, estão perdendo o medo de se manifestar e de se opor aos atos repressivos por parte das corporações policiais, locais e federais. É perceptível que a insatisfação começa a multiplicar-se em outros estados do país e, nesse sentido, o desafio é a formação de um grande movimento social que permita avançar até uma estratégia ofensiva enquanto se constroem, simultaneamente, alternativas de vida em diferentes regiões.

2. A vocação repressora do Estado, em todos os seus níveis, se tornou evidente com o que se sucedeu e configura um signo do que virá em termos de política interior. O governo de Enrique Peña Nieto representa bem esta vocação, mas o resto dos governos dos estados e municípios também se alinhou há algum tempo com esse tipo de políticas impositivas.

Novos horizontes se colocam ao movimento social a partir desse divisor de águas que representa a batalha de San Lázaro: qual é o próximo passo nesse caminho de insatisfação e raiva que tomou a sociedade mexicana? De que maneiras é possível atuar sem que cada ação resulte na prisão de dezenas de pessoas? Como multiplicar forças ligadas à esquerda não partidária para conseguir a liberação das pessoas detidas e ao mesmo tempo para continuar uma estratégia de ofensiva que avance na luta contra a imposição de um governo? Ainda se podem ver as “análises” que condenam o que aconteceu e tratam aqueles que combateram como vândalos, sem consideração alguma, ou como bobos, que teriam sido infiltrados e manipulados. Ao mesmo tempo, é possível identificar a herança das batalhas em Oaxaca, nas quais o aprendizado foi grande mas o potencial de luta se congelou ao ver que não se conseguia alcançar os objetivos de então. Talvez já se esteja pensando em modificar qualitativamente as formas de luta e de protesto e se haja transitado para outra etapa da luta social. O que revelam os acontecimentos de 1º de dezembro é que não é loucura pensar que a raiva, o descontentamento, a incerteza, a desrazão e a memória das afrontas podem se converter em uma força decisiva que pouco a pouco consiga mover a balança e possibilite um golpe, agora sim definitivo, no regime priista que novamente ameaça aniquilar qualquer dissidência no país.

Notas

[1] O PRI (Partido da Revolução Institucional) governou o México durante 72 anos, de 1924 a 1996, e sua gestão foi marcada pela corrupção, violência e uso de fraudes. (N.T.)
[2] A “batalha de San Lázaro” ocorreu na manhã do dia 1º de dezembro, durante a posse presidencial de Enrique Peña Nieto. Foi um enfrentamento entre manifestantes contrários ao novo presidente e as forças policiais destacadas para contê-los. Para um relato mais esquemático: (ver esta entrevista) (N.T.)
[3] Movimento formado por assembleias estudantis alguns meses antes das eleições presidenciais de 2012 contra a candidatura do PRI e cujo estado atual é de relativa fragmentação. (N.T.)
[4] Caso de forte repressão a uma manifestação encabeçada pela Frente de Pueblo sem Defesa da Terra em San Salvador Atenco, Estado de México, durante o período em que Peña Nieto ocupava o governo estadual.(ver esta entrevista). (N.T.)
[5] Jesusa Cervantes, La vocación represora, PROCESO 1883, 3 de dezembro de 2012. (N.A)
[6] Para uma comparação das duas imagens pode-se encontrar uma foto da entrada dos sandinistas na capital da Nicarágua aqui: http://delsurnewsonline.com/wp-content/uploads/2010/07/sandinistas_in_nicaragua.jpeg
[7] Ver: http://www.sinembargo.mx/04-12-2012/449888 (N.A.)
[8] Ver: http://www.sinembargo.mx/04-12-2012/450051 (N.A.)
[9] Ver: http://abajolosmuros.jimdo.com/2012/12/04/comunicado-de-la-cruz-negra-anarquista-m%C3%A9xico-ante-las-declaraciones-del-gdf/ (N.A.)
[10] Atualmente foram indiciados e permanecem presos 13 homens e uma mulher. No México não há presunção de inocência (!) e a defesa está se esforçando para reunir provas de inocência dos detidos. (N.T.)
[11] Ver: https://www.facebook.com/notes/acampada-revoluci%C3%B3n-132/aclaraci%C3%B3n-sobre-las-declaraciones-de-un-supuesto-miembro-de-acampada-revoluci%C3%B3n/292419300879407 (N.A.)

Outras referências consultadas

1. Desinformémonos http://desinformemonos.org/2012/12/132/
2. Desinformémonos http://desinformemonos.org/2012/12/que-sigue-despues-del-1-de-diciembre-en-mexico/
3. Animal Político http://www.animalpolitico.com/2012/12/sin-pruebas-para-culpar-penalmente-a-69-consignados-por-conflictos/#axzz2E6bHs5BK

Tradução de Luiza Mandetta e Leonardo Cordeiro para o Passa Palavra

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