Por Passa Palavra

1.

O maior problema político-ideológico com que a esquerda se confronta nos dias de hoje é o facto de ela se considerar como portuguesa… Ou, para colocar as coisas noutros termos, a generalidade da esquerda portuguesa é politicamente inconsequente e ideologicamente débil porque mistura o moralismo e a demagogia com um difuso, mas persistente sentimento de que ela seria a mais autêntica defensora do interesse nacional. Para uma esquerda que se diz seguidora da tradição marxista não deixa de ser um tanto ou quanto bizarra a sua postura persistentemente nacionalista.

Mas, como todas as ideologias, o nacionalismo expressa-se de variadas maneiras e não está presente da mesma forma. Nesse sentido, o nacionalismo tanto pode ir da postura acirradamente contrária a tudo o que seja institucionalmente supranacional como pode expressar-se no plano da avaliação política concreta, onde as variáveis nacionais (geralmente políticas e identitárias) assumem primazia sobre as internacionais (económicas).

No Passa Palavra temos tido a preocupação de chamar a atenção para o desenvolvimento larvar do nacionalismo na esquerda. Essa preocupação tem-se manifestado sobretudo na crítica às manifestações nacionalistas mais marcantes e mais perigosas, onde o caso do Partido Comunista é o expoente máximo da defesa de um capitalismo de Estado repressor, arcaico e dinamizador de uma expansão dos mecanismos da mais-valia absoluta (Os artigos podem ser lidos aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Todavia, importa também aferir algumas das ambiguidades políticas relativamente ao desenvolvimento da questão europeia presentes no Bloco de Esquerda.

2.

Na última reunião magna do Bloco de Esquerda (VIII Convenção Nacional) a articulação de correntes que tem liderado este partido político continuou a ser hegemónica na condução dos seus destinos. Do outro lado, a ala que girou mediaticamente em torno do jornalista Daniel Oliveira acabou por ser derrotada, apesar de ter recolhido cerca de 20% dos votos dos delegados à sua Convenção Nacional. A discussão que se fez nesse encontro do BE girou sobretudo em torno da putativa aliança desse partido político com outras organizações partidárias situadas à esquerda, com particular incidência no Partido Socialista. Resumindo esta questão, enquanto a ala minoritária defendia o estabelecimento o mais rápido possível de uma aliança com o PS, a ala maioritária propunha que uma aliança com o PS só será possível se este partido rejeitar o Memorando de Entendimento assinado entre o Estado português e a troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia).

Mas as diferenças entre as duas alas não se expressam apenas ao nível eleitoral, apesar de esse ser o plano mais presente nos discursos dos membros e dos dirigentes do BE. Muito mais relevantes do que o plano imediatista das eleições e da política parlamentar são as concepções políticas estruturais. E neste campo a visão sobre a União Europeia e sobre o euro é um aspecto por demais importante.

A este propósito vale a pena lembrar que as posições da ala maioritária da direcção do BE parecem ir no sentido de rejeitar uma saída portuguesa do euro e da União Europeia. Francisco Louçã, ex-líder deste partido entre 1999 e 2012 e sua principal figura, sempre defendeu a inexequibilidade da via nacionalista. Num livro publicado há um ano atrás, Louçã disse muito taxativamente que “no contexto actual, a saída do euro é a pior de todas as soluções” (Louçã e Mortágua, 2012, p.28). Já em finais de 2011, numa conferência sobre a crise económica e social em Portugal, Louçã defendeu que a saída do euro seria um “projecto macabro”, pois ela virar-se-ia para a “desvalorização dos salários, para a desvalorização cambial, para criar uma nova moeda”. Em suma, “os cálculos dizem que o escudo teria de ser desvalorizado em 50 por cento, fazendo com que os bens importados custassem cinquenta por cento mais caro e o salário e as pensões passassem a valer metade do que valiam antes”. Portanto, Francisco Louçã lembra o óbvio que aqui no Passa Palavra também temos apontado sobre os riscos económicos e sociais de uma saída do euro. Aliás, o dirigente do BE chega a dizer algo bem contrário ao que a esquerda nacionalista representada pelo PCP preconiza com a defesa da saída do euro: “a esquerda não pode dizer que a solução para a austeridade é uma austeridade mais brutal, curativa, muito rápida”. No fundo, Louçã, como qualquer economista competente, sabe que uma saída portuguesa do euro não será mais do que o aprofundamento dos mecanismos da mais-valia absoluta.

Ainda muito recentemente, o jornal “i” noticiava declarações da direcção do BE, onde aspectos divergentes com a linha nacionalista do PCP seriam particularmente notórios. “A diferença entre o Bloco e o PCP é realçada pelas exigências de combate à troika. Em primeiro lugar, o Bloco empenha-se em políticas e convergências unitárias, abertas e criadoras. Recusa ambiguidades soberanistas que sugerem de forma sempre envergonhada a alternativa da saída do euro e apresentam uma visão nostálgica da autarcia económica e, ao mesmo tempo, prometem o milagre de uma economia dependente do sector exportador”.

Portanto, nesta questão específica a existência de uma perspectiva contrária à saída do euro é politicamente positiva. Contudo, ela será em si suficiente? Se uma saída do euro é abertamente reconhecida pelo BE como uma via ruinosa, então uma interrogação fundamental se levanta. Por que o BE procura com os nacionalistas do PCP “criar uma alternativa” e por que está “aberto à formação de um Governo de esquerda com o PS e o PCP”? Nem sequer vamos desenvolver o tópico de que nenhum governo de esquerda representa qualquer tipo de saída possível para além do capitalismo. Nem tão-pouco o paradigma “Estado vs mercado” = socialismo. Estes assuntos já dariam pano para mangas e, por si só, explicam muito do comportamento político do BE. Mas aqui queremos ficar apenas na avaliação da maior ou menor coerência das concepções políticas ao nível europeu e as correspondentes propostas práticas que o BE apresenta. E a esse nível o desajuste está longe de ser pequeno. Como é possível conciliar as propostas europeístas da linha hegemónica da direcção do BE com as propostas nacionalistas do PCP? Como é possível o BE proceder a uma crítica justa às teses da autarcia económica do PCP e, quando se trata de apresentar a alternativa ao actual projecto de austeridade, o BE esperar apenas uma “disponibilidade unitária” do PCP para formarem um governo de esquerda que se propõe rasgar o Memorando da troika? Como é possível sequer existir um governo de esquerda como o BE a querer romper com as políticas da troika com Portugal dentro da zona euro e o PCP, no gabinete ministerial ao lado e nas ruas mobilizando o seu exército sindical da CGTP, a defender a saída da zona euro? Apetece perguntar: para que serve a crítica às teses da saída do euro se a disponibilidade para criar um elenco ministerial com o PCP se resume apenas ao abandono da atitude de sectarismo deste último, que lhe permita trabalhar harmoniosamente com o BE? Para que serve a crítica ao nacionalismo económico do PCP se ela não tem aplicabilidade prática nas relações com este partido?

Por conseguinte, se o hiato entre as teses europeístas do BE e a sua prática concreta é considerável, o PCP prima pela coerência óptima entre o nacionalismo ideológico e a prática nacionalista. Em política e numa situação de tensão são sempre os coerentes que arrastam os titubeantes. Equivocam-se os que no BE acham candidamente que o PCP mais não seria do que um partido herdeiro da luta democrática antifascista e que, no contexto actual, apenas estaria empenhado no fortalecimento da “democracia de Abril”. Equivocam-se os que pensam que o PCP teria um comportamento de parceiro numa aliança governativa à esquerda como o que o PCF registou no governo de Lionel Jospin ou como o PCdoB no caso dos governos de Lula e de Dilma. São casos distintos por duas grandes ordens de razões. Em primeiro lugar, o PCP é muito mais estatista do que o PCF da década de 90. Tal facto estaria presente na defesa permanente e muito mais profunda de uma estatização de empresas e que, no plano político, resultaria num correspondente avanço na burocratização das organizações sindicais e dos poucos movimentos sociais existentes em Portugal. Em segundo lugar, apesar de diferentes entre si, os contextos francês e brasileiro, onde Partidos Comunistas participaram entusiasticamente em “governos de esquerda”, não têm nada a ver com a actual crise económica na zona euro. Uma participação do PCP num governo na actual conjuntura seria uma oportunidade única para que este partido fizesse campanha – com meios próprios e com meios do Estado – para que Portugal saísse do euro. Escudando-se nos discursos da “defesa do interesse nacional” e da inflexibilidade política perante o invasor alemão e europeu, o PCP contaria com uma participação num governo de esquerda para alimentar a demagogia anti-europeia e nacionalista. Em tal contexto, o Partido Comunista sabe para onde quer ir e conta com: i) um aparelho sindical preparado, verticalizado e organicamente estruturado; ii) ligações importantes a associações da polícia e das forças armadas; iii) e dezenas de milhares de militantes obedientes e decididos a seguir as orientações da sua direcção política. Assim, a precipitação de uma crise governativa e a continuação da crise económica jogariam sempre a seu favor, o que só poderia resultar na transformação do PCP numa força muito mais polarizadora no cenário político do que é hoje. Em possível aliança com sectores das forças armadas e com o movimento sindical como força de rua, o PCP afirmar-se-ia como uma alternativa política. Nessas circunstâncias, um capitalismo de Estado não andaria muito longe.

Por tudo isto é que as forças politicamente coerentes arrastam as que comportam ambiguidades internas sobre um assunto absolutamente relevante como a saída do euro. Enganam-se os que vêem a actuação do PCP no actual contexto como a mimetização de comportamentos eleitoralistas recorrentes nos Partidos Comunistas que participam ou participaram em governos de coligação nos regimes democráticos liberais. Ao contrário dos partidos políticos que à esquerda procuram disputar lugares no aparelho de Estado, o eleitoralismo actual do PCP é um meio não um fim.

Em política, a visão dos outros a partir do que queremos que sejam, e não a partir do que eles realmente são, paga-se caro.

Referência

Louçã, Francisco e Mortágua, Mariana (2012) – A Dívida(dura) – Portugal na crise do Euro. Lisboa: Bertrand

7 COMENTÁRIOS

  1. Sou militante de uma tendência trotsquista e gostaria de parabenizar o passapalavra pelo texto, pelas análises e pelos anexos. Vocês se mostraram muito firmes e resolutos no internacionalismo, no rechaço aos perigos de um governo autoritário e nem um pouco titubeantes, como o próprio MAS português tem se mostrado(por medo de aparecer como “divisionista”), falando sobre socialização do poder político em um momento e nacionalização no outro, mas com receio de afirmar essa posição,juntando os dois, que deveria ser mais clara : um verdadeiro socialismo só existe se tem por horizonte estratégico, e consequente tática com o fim de : autogestão da economia (socialização dos meios de produção)e autogestão da política (socialização do poder estatal). O vosso papel anti-burocrático e democrático deve servir de exemplo tanto para alguns anarquistas desorientados, quanto para os ainda inseguros trotsquistas e para parte da base do PCP que aspira com um mundo socialista democrático. A situação em Portugal, me parece, pelos textos tanto dos comunistas do resistir.info, quanto do passapalavra e dos trotsquistas,bastante tensa; porém, daqui do Brasil, espero que a auto-organização popular, internacionalista e anti-burocrática dos trabalhadores portugueses só aumente.
    Saudações e até a vitória!

  2. Devo dizer que Carlos Alberto coloca bem a questão fundamental e que qualquer organização ou pessoa socialista deveria defender: «um verdadeiro socialismo só existe se tem por horizonte estratégico, e consequente tática com o fim de : autogestão da economia (socialização dos meios de produção)e autogestão da política (socialização do poder estatal)».

    Nesse sentido, não deixa de ser inusitado o facto de num blog português (http://5dias.wordpress.com/2013/02/09/nao-emigrem/) uma das personalidades trotsquistas mais destacadas em Portugal não ter qualquer problema em defender a estadia dos trabalhadores no seu país de origem sob pena de se “usar o contingente de precários do sul [da Europa] para fazer descer os salários dos do norte”. Ou seja, um argumento que em nada se distingue das teses de sectores direitistas que clamam contra a imigração porque ela baixaria os salários dos trabalhadores autóctones… E eu que pensava que as migrações foram sempre um factor de desenvolvimento económico e cultural na modernidade e, tanto ou mais importante, foram um dos motores da difusão de ideais socialistas e internacionalistas…

    Até vou dar um exemplo histórico. Durante os últimos 15 anos da ditadura fascista portuguesa emigraram centenas de milhares de trabalhadores portugueses para França, Alemanha, Luxemburgo, etc. Isto não levou a qualquer baixa salarial dos trabalhadores estabelecidos em França e na Alemanha. Pelo contrário, quando os países capitalistas estão numa fase de desenvolvimento dos mecanismos da mais-valia relativa, os trabalhadores vêem o seu salário nominal e real aumentar. Diminui é a proporção entre o conjunto dos salários e dos lucros, mas para efeitos da vida quotidiana do trabalhador isso pouco lhe afecta. Claro que se pode argumentar que quando os mecanismos da mais-valia relativa estão estagnados essa possibilidade não está contemplada. Pois, mas isso não depende directamente das migrações mas da própria mecânica capitalista de extracção de mais-valia. Ora, se eu considerar que a queda salarial num sector da classe trabalhadora deriva directamente da chegada de um outro contingente de trabalhadores (especificamente, trabalhadores estrangeiros) então já se passou para outro nível de discussão: assim se transforma a crítica do capitalismo na sua própria esfera (a exploração económica) para a crítica das migrações e para a separação nacional e étnica entre os trabalhadores.

    E na maioria das vezes nem adianta discutir estes assuntos no plano analítico e racional, pois o moralismo e a reprodução do nacionalismo mais espontâneo parecem substituir-se cada vez mais… E assim vai andando a pretensa esquerda radical e anticapitalista em Portugal…

  3. Importa também lançar a seguinte interrogação: será que a revolução de 74-75 em Portugal teria tido a evolução política radical que teve sem a prévia emigração de milhares e milhares de militantes anticapitalistas (e de trabalhadores) para Paris e para outros locais da Europa?

  4. “Da mesma forma que se usaram os desempregados e os precários para descer os salários dos trabalhadores com contratos e reformados vai-se usar o contingente de precários do sul para fazer descer os salários dos do norte”.

    A resposta lógica, muito resumidamente, é afirmar que este cenário já existe, dada a globalização do capital. A resposta seria, concomitantemente, globalizar o trabalho e os movimentos sociais, a única forma de garantir a igualdade de condições dos trabalhadores pertencentes ao mesmo espaço económico.

    A questão do nacionalismo parece ser, sob este ponto de vista, inseparável da questão do eleitoralismo. Vangloria-se a nação – se calhar, acabando-se por nela acreditar – porque esse é o espaço eleitoral por excelência. Isso é mais que visível no tipo de campanhas realizados pelo MAS, o novo partido que crê na exequibilidade de slogans como «fim dos benefícios para os políticos» ou «prisão para os banqueiros corruptos». Por mais movimentista que seja a face dos trotskistas em Portugal, é no partido que pensam em 1.º, 2.º e 3.º lugar.

  5. Este últim comentário é de uma lucidez avassaladora… Então não é que em meia linha esse senhor arruma o assunto? Terá a austeridade tomado de assalto os teclados dos fiéis?

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