Apesar do apelo da presidenta Dilma para que se procure dar maior visibilidade à Rede de Educação Cidadã (para que isso se reverta mais facilmente em votos em 2014) a RECID ainda é estranha para muitos lutadores do nosso povo. Principalmente para aqueles mais comprometidos com a luta pela transformação radical da sociedade. Por isso, pra explicar os motivos da nossa saída, esse documento precisou contar em que contexto se deu o nosso ingresso na Rede, e mostrar o que há na sua organicidade e no seu projeto político de tão contraditório com nossos princípios que justifique a nossa ruptura com ela.

Ao contrário da maioria das cartas de rompimento, esta não se queixa de um possível desvio estratégico da articulação com a qual se rompe. Pelo contrário. Se pode-se falar de “desvio” aqui nesse caso, ele foi por parte do grupo que assina a carta.

Pretendemos aqui, além de escurecer os motivos da nossa saída, provocar uma reflexão sobre o verdadeiro papel que a Rede cumpre na luta de classes no nosso país.

Caindo na Rede.

Por intermédio de um de nossos militantes, contratado em 2005, o Coletivo de Hip-Hop Lutarmada veio atuando na RECID desde o ano seguinte.

A RECID surgiu nos primórdios do governo Lula, inicialmente para atuar junto às famílias atendidas pelo programa Fome Zero. Depois ampliou seu campo de atuação, assumindo “solidariamente a missão de realizar um processo sistemático de sensibilização, mobilização e educação popular da população brasileira e principalmente de grupos vulneráveis econômica e socialmente (indígenas, negros, jovens, LGBT, mulheres, etc), promovendo o diálogo e a participação ativa na superação da miséria”. Tínhamos certa desconfiança sobre as boas intenções do governo ao investir num projeto como esse. Porém, acreditávamos, isso sim, em quem estava nas bases tocando os trabalhos.

Mesmo estranhando o fato de movimentos populares receberem recursos do Estado burguês para combater a burguesia, resolvemos pagar pra ver, aceitar o desafio e ver onde isso tudo ia dar. O importante para nós era manter a integridade na luta e coerência com os nossos princípios. E enquanto isso fosse possível dentro desse quadro, continuaríamos na Rede, sem problemas.

Mas quais eram os princípios que orientavam a luta de um grupo tão novo, tão politicamente imaturo? Éramos um grupo fundado menos de dois anos antes, por jovens indignados com a situação de exploração e opressão vivida pela nossa classe, mas com muito pouco acúmulo teórico que nos permitisse enxergar, tanto as raízes dessas mazelas, quanto os caminhos que nos levariam a superá-las, como quem poderiam ser nossos parceiros nessa caminhada. Nossa ingenuidade se somava ao deslumbramento de estar atuando em rede com os maiores e mais importantes movimentos sociais do e no país inteiro. Nossas certezas eram vagas impressões impregnadas de elementos do senso comum, principalmente os de esquerda.

Nossa ingenuidade e nosso deslumbramento nos impediram de enxergar com nitidez aspectos importantes do projeto com o qual estávamos envolvidos na sua construção e implementação.

A gênese.

Nascido principalmente das lutas operárias na virada dos anos 70 pros 80 do século passado, com um objetivo estratégico socialista, o PT, com aproximadamente uma década de existência passa a priorizar a luta institucional em detrimento das lutas das massas. A chegada à presidência aos poucos vai perdendo o caráter de tática e adquirindo contornos de estratégia. Muitos ajustes à ordem burguesa foram necessários para que a classe dominante permitisse ao Partido dos Trabalhadores alcançar a instância máxima daquilo que Marx chamou de comitê executivo dos interesses da burguesia, o Estado.

Por ser oriundo da classe operária, ao contrário dos anteriores, o governo PT conhece a fundo o proletariado. Seus vícios, virtudes, alcances, limites e fragilidades, são todos intimamente conhecidos por esse partido agora integrado à ordem que um dia combateu. E com um terrível agravante de, por ainda carregar a aura de um partido de trabalhadores, até nos dias de hoje dirigir muitos setores do proletariado, inclusive importantes sindicatos.

Financiamento público como ouro de tolo.

A classe trabalhadora organizada e mobilizada pela manutenção da ordem. Se esse era esse o papel que as elites esperavam do governo PT, ele tinha que mostrar a que veio. Já no primeiro ano de Lula na presidência nasce a RECID, que rapidamente aglutinou importantes organizações das lutas populares como MST, MTD, MPA, o próprio PT e Consulta Popular – que nasceu da crítica ao desvio estratégico do Partido dos Trabalhadores – entre outros. O projeto social Rede de Educação Cidadã é contemplado com alguns milhões de reais a cada convênio. E todos esses reais, de acordo com cada convênio, têm que dar conta de um certo número de Encontros Micro-Regionais (estaduais), Encontros Macro-Regionais (por região), Encontro Nacional, centenas de oficinas e a contratação de dezenas de educadores por todo o país, para estarem liberados para a organização e execução dessas oficinas. Existe uma equipe chamada Talher Nacional, que é uma equipe de governo, portanto, cargos comissionados, que fazem a mediação entre educadores/movimentos sociais e governo. Já há seis anos existe uma Comissão Nacional cuja atribuição ainda está sob uma longa e cansativa discussão. O entrave maior reside na formalização e efetivação de um caráter: Deliberativo, ou não. Essa Comissão se reúne periodicamente com o Talher Nacional e outros membros do governo.

Um projeto social como este é sedutor para aqueles que sempre se organizaram e empreenderam suas lutas no total sacrifício, e se sentem aliviados em passar a ser remunerados pra fazerem o que sempre fizeram gratuitamente. Mas também atrai tantos outros que já se profissionalizaram no Terceiro Setor e se especializaram em projetos assistencialistas, implementados nos limites da promoção da cidadania. Ele reúne sob sua folha de pagamento, atores sociais do extremo Sul do país, passando pelas metrópoles do Sudeste, indo pelos sertões do Nordeste, até as regiões mais afastadas da Selva Amazônica. As mesmas atividades que garantem o funcionamento dessa rede e a integração de todos esses povos, de culturas até distintas, escondem uma verdadeira armadilha subjetiva. Para além das muitas viagens pelo país, e hospedagens em hotéis (às vezes quatro estrelas) e Resorts luxuosos – como a Academia do Tênis, em Brasília – o projeto esconde um perigo maior, mas igualmente sutil. Os recursos públicos, que no começo podem ajudar a potencializar as mobilizações para as lutas, por fim acabam se transformando num freio das mesmas. No momento em que as lutas ameaçam a fonte dos recursos, a fonte de recursos passa a controlar, a ameaçar as lutas, através dos próprios recursos. As concessões que se fazem pela manutenção do acesso aos recursos viram regra. E o dinheiro, que antes era meio, passa a ser fim.

Mas não para por aí. Nas equipes de educadores há os contratados por 40 horas semanais, por 20 horas semanais, e o voluntariado. Esse tipo de hierarquização monetária faz surgir tensas disputas e conspirações entre os educadores. Como numa empresa, os educadores têm metas a cumprir, e a “produtividade” (que pode ser entendida como uma combinação entre quantidade de oficinas, com número de participantes) vem se tornando um critério cada vez mais pesado. Ultimamente a entidade âncora nacional tem estimulado sutilmente a competição entre eles, exibindo gráficos com o desempenho individual de cada educador. Enquanto ainda são educadoras, essas pessoas são pagas para construir e executar as oficinas. Só que quando algumas delas ocupam as funções de gestores estaduais ou na Comissão Nacional, as responsabilidades e compromissos nesses espaços são tão grandes e numerosos que acabam por lhes tomar um grande tempo que deveria ser dedicado aos trabalhos com as bases. Mesmo com constantes queixas desses educadores “desviados” das bases para esses espaços, são raríssimos os casos em que alguém abdica de seus cargos antes de espirar sua gestão. Mas, por quê?

A Gestão Estadual e, principalmente a Comissão Nacional dão acesso mais frequente aos espaços de poder institucional, o que possibilita uma promoção pessoal. Já há casos de ex-educadores de base que hoje trabalham ou no Talher Nacional ou no Secretariado em Brasília (ou ainda no escritório da ONG que administra o projeto). E esses espaços também são alvo de muita disputa entre aqueles que deveriam estar unidos. E essas disputas vêm alcançando os mais baixos níveis de conspiração. Mas é bom destacar que pra muito além do mau caráter de quem conspira contra “companheiros”, projetos sociais que se organizam dessa forma e são financiados a partir dessas fontes, são terrenos extremamente férteis pra esse tipo de comportamento. É quase uma inevitabilidade! Fala-se sobre um tal “pé fora” do governo, mas a RECID é uma articulação cada vez mais dependente dele. Em alguns municípios governados pelo PT, a Rede faz lobby em prol da implementação da Educação Popular como política de Estado. Em Brasília isso já é uma realidade. A sustentabilidade é pauta constante nos debates em todas as esferas da Rede, mas sua autonomia financeira é uma tarefa sempre adiada ao infinito. Atualmente já se fala mais abertamente em financiamento privado, inclusive. Isso, nacionalmente, porque regionalmente já se faz parcerias até com a Vale, por exemplo.

Projeto político.

A RECID já completava seus quatro anos quando em 2007 construiu de fato o seu Projeto Político Pedagógico (PPP). E nele firmou compromisso com a construção do Projeto Popular para o Brasil (PPB). Elaboração de várias organizações e militantes de todo o país (a maioria deles ligada à Rede), é só em 2010 que esse projeto ganha corpo, em um documento construído na II Assembléia Popular Nacional, reunida em Goiás.

Se em algumas linhas do documento o PPB é tratado como “a sociedade que nós queremos construir” e “o objetivo a ser alcançado”, no decorrer do mesmo, ele se revela muito mais como um instrumento que “deverá estimular o trabalho de base, a formação militante e as ações conjuntas para a transformação de nossa sociedade”. Além disso, ponto a ponto, o documento também revela que, mesmo essa sociedade que se quer construir, se quer construir dentro da ordem. E hoje sabemos que sem uma ruptura radical com a ordem burguesa, não se chegaremos a essa “sociedade que queremos construir”.

Se despedindo.

Como dito anteriormente, não se trata de uma carta como a maioria das cartas de rompimento que expressam a insatisfação de quem viu o seu grupo político enveredar por caminhos que não condiziam com o objetivo original. Ao contrário, essa carta trata da ruptura de um grupo com uma articulação que não passou por deformações significativas. Seus princípios, métodos e projeto permanecem quase intactos na essência. Na verdade a concepção de mundo e de luta do Lutarmada Hip-Hop é que amadureceu durante esse percurso. A tal ponto que torna inviável a nossa permanência na Rede sem sermos incoerentes com nós mesmos e com tudo que acreditamos.

Não abandonaremos nossa prática na educação popular. Pelo contrário, continuaremos atuando numa formação política sempre orientada para o desencadeamento de ações efetivas no combate ao capital. O que deixamos para trás são exatamente as margens cada vez mais estreitas pra esse tipo de postura, no interior de uma rede montada com o propósito da conciliação de classes. Mas isso não significa a impossibilidade de construções com qualquer grupo ou educador que integre a Rede. Basta para isso, somente, que essas construções não firam os nossos princípios e não signifiquem retrocessos na caminhada rumo ao socialismo.

Coletivo de Hip-Hop Lutarmada.

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