Por Dale T. McKinley

 

De cada vez que se entra num período de negociações salariais, como é o caso agora, os representantes do capital desencadeiam um tsunami de propaganda sobre as exigências salariais “elevadas e incomportáveis” dos trabalhadores. Avisos alarmantes de conflitos e perturbações sociais destrutivas, subida das taxas de inflação, fraca competitividade e uma generalizada devastação económica brotam abundantes dessas línguas aguçadas. A mensagem que lhes subjaz não é subtil nem sequer sanguinária: as exigências salariais dos trabalhadores são as culpadas de praticamente tudo o que de mau está a acontecer na nossa sociedade.

Claro que a propaganda é uma coisa e a realidade é outra, o que sempre foi compreendido até pelos mais ferrenhos defensores do capitalismo. Adam Smith, autor do que se pode considerar como a “bíblia” do capitalismo de mercado livre (A riqueza das nações, publicado em 1776) sublinhava que, embora «os empresários ingleses se queixem frequentemente do nível dos salários» e argumentem que «é por isso que não podem vender os seus produtos a preços competitivos noutros países… quase nada dizem acerca dos seus elevados lucros».

Esse silêncio [sobre os lucros], notava Smith, era um modo consciente de esconder o facto de «em muitos casos, os lucros elevados feitos pelo capital são muito mais responsáveis pelas subidas dos preços do que os salários exorbitantes». Nesta matéria muito pouco mudou nos últimos 237 anos. De facto, se há alguma constante essencial no modo de produção capitalista ela será, como o próprio Smith confirmou, que «o trabalho é a verdadeira medida do valor».

Nas palavras do historiador e cientista político belga Eric Toussaint, os capitalistas «esqueceram também (ou nem sequer se preocuparam em compreender) que os trabalhadores não são livres de vender a sua força de trabalho». No fim de contas, a força de trabalho dos trabalhadores é a única coisa que eles têm para vender, numa economia capitalista, para sobreviverem. Os trabalhadores não têm outra maneira de aceder aos meios de produção, que é o que realmente define a posição e o domínio de classe no capitalismo.

Os capitalistas dos nossos dias, na África do Sul como no resto do mundo, vêm tentando dar novas cores à sua própria história capitalista. Querem que ingenuamente acreditemos que a sociedade só pode progredir com a afirmação da sua “liberdade” para intensificar e expandir a exploração da força de trabalho; e que a sua busca do lucro, incessante e “por quaisquer meios necessários”, é o que induz – e não o que destrói – o trabalho social e economicamente produtivo. É esta uma das razões principais por que o estudo do capitalismo por Karl Marx se mantém totalmente relevante nos nossos dias. Como aponta Toussaint, isso acontece precisamente porque a realidade contemporânea do sistema capitalista «continua a ser a de uma luta entre os esforços do capital para crescer e os esforços da classe trabalhadora para resistir ao crescimento da taxa de lucro».

Se aplicarmos isto à trajectória de desenvolvimento da África do Sul pós-1994, não nos surpreende que haja uma relação inversa entre os lucros do capital e os salários dos trabalhadores. Segundo o economista Asghar Adelzadeh, a taxa de lucro na economia entre 1994 e 2012 aumentou quase 250%, enquanto a Agência de Estatísticas da África do Sul mostra que, entre 1994 e 2010, a parte do salário real no PIB sul-africano desceu cerca de 7%.

Um tal fosso, cujo único significado é uma maciça transferência de riqueza da maioria dos já pobres para uma minoria de cada vez mais ricos, só se tornou possível com uma política macro-económica consistentemente pró-capitalista e anti-trabalhador. Um conjunto coerente de políticas, que inclui o actual Plano Nacional de Desenvolvimento, e que o capital tem acolhido selectivamente, provocou reduções dos salários reais dando a prioridade a uma economia orientada para a exportação baseada na diminuição dos salários dos trabalhadores. Por sua vez, isso facilitou iniciativas consistentes dos empregadores capitalistas para eliminar, nos acordos laborais, as cláusulas importantes de garantia do nível de vida e, para precarizar o trabalho historicamente entendido como “salário social”, a segurança do emprego foi atirada para o caixote do lixo do desenvolvimento.

Esta realidade torna-se tanto mais tangível para a maioria quanto o aumento relevante do nível dos preços (a inflação) é considerado na equação, lembrando-nos que a taxa geral de inflação (sendo a mais recente de 5,4%) é um taxa média e que os próprios serviços estatísticos da África do Sul calculam a taxa de inflação separadamente para cinco diferentes grupos de consumidores. Quanto a isto, o Labour Research Service (LRS) mostra que, desde meados de 2012, as taxas de inflação dos grupos “muito baixo” e “baixo” de consumidores (isto é, os desempregados e os trabalhadores) têm sido 2% mais altas do que as do grupo “muito alto” (isto é, os capitalistas). Quando aplicado aos itens que constam do cabaz de compras em que os pobres e os trabalhadores gastam a maior parte dos seus rendimentos, o aumento médio dos preços dos transportes públicos chega aos 16,1%, enquanto que os preços da alimentação, da habitação [moradia] e da água e electricidade estão muito acima da taxa geral de inflação.

Os dados específicos referentes aos salários (para 2012) compilados pelo LRS só vêm sublinhar o quadro geral dickensiano das desigualdades salariais. Enquanto o salário médio dos trabalhadores era de 3.200 rands mensais [267 euros, 695 reais] em nove sectores sociais e de 3.000 rands mensais [250 euros, 652 reais] em todos os conselhos de negociação [salarial], o salário médio dos executivos das 80 maiores empresas cotadas em bolsa era de 483.000 rands por mês [40.300 euros, 104.950 reais] e, para os presidentes de Conselho de Administração, de 758.000 rands por mês [63.250 euros, 164.700 reais] (este número não inclui os prémios e os Incentivos a Longo Prazo – ILPs -, tais como os direitos de participação accionista). Durante os dois últimos anos, o salário médio dos trabalhadores situou-se nos 114 rands por dia [9,50 euros, 24,77 reais], enquanto os ganhos médios (incluindo prémios e ILPs) dos gestores ascenderam a 32.204 rands por dia [2.687 euros, 6.998 reais].

Olhando mais de perto para a relação entre salários e lucros no caso de uma empresa específica – a Anglo American Platinum, Amplats -, aparece um padrão consistente de manipulação que vem provar a “regra” geral. Uma investigação do economista Dick Forslund mostra que, no fim de 2009, a Amplats despediu 12.000 trabalhadores e anunciou uma baixa de 99% dos dividendos brutos por acção (indicador geral de rentabilidade das empresas). Apesar disso, seis meses depois proclamava orgulhosamente uma subida de 532% desses dividendos brutos.

Um ano mais tarde (em 2011), um relatório referia 1,3 mil milhões de rands de lucros; porém, após um ano “difícil” de 2012, a Amplats anunciou a retenção de 562 dos 1.365 cêntimos de lucro por acção do exercício 2010-2011. E então, precisamente na semana passada, revelaram planos para suprimir mais 6.000 postos de trabalho com o fim de “restabelecer os lucros”, iniciativa esta que um analista da Goldman Sachs considerou ser insuficiente para “implementar medidas correctivas em proveito dos accionistas”.

Se ainda houvesse alguma simpatia pelo “pobre” capital que se debate nestas dificuldades, ela seria certamente varrida pelo facto de a parte do rendimento que cabe aos trabalhadores na indústria da platina ter caído dos 60% em 1998 para apenas 27% em 2010, período durante o qual os lucros distribuídos aos accionistas bateram recordes e os prémios e ILPs distribuídos aos gestores dispararam.

Não custa nada perceber que o que realmente está em causa para a Amplats (e para outros capitalistas de grandes empresas) é uma “restauração” e, quando possível, uma ultrapassagem dos anteriores níveis de lucro – o que é mais do que a simples manutenção do lucro. Os despedimentos massivos de trabalhadores fazem disparar os preços com o corte (temporário) na produção, o qual, por sua vez, assegura maiores lucros aos accionistas. Os salários e o consequente nível de vida dos trabalhadores são questões periféricas; a intensificação da exploração do seu trabalho é que é fundamental.

Não são os trabalhadores que provocam a crise de salários e de emprego na África do Sul, eles são apenas a forragem. É sempre o capital que se vai alimentando deles.

Dale T. McKinley é escritor, investigador e universitário independente e também activista político.

Artigo originalmente publicado (em inglês) aqui, e também aqui. Tradução do Passa Palavra.

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