Por Vavá Filho

Lisboa e Salvador, outrora ligadas pelos laços do colonialismo e da exploração mercantilista, espelham hoje insatisfação popular contra governantes e partidos políticos. Enquanto uma luta pela manutenção de direitos conquistados e contra a proletarização em massa, a outra se bate pela distribuição da riqueza através da universalização de direitos sociais. A antiga metrópole resiste contra a revogação do Estado de Bem Estar Social e Salvador recupera o sonho do Estado provedor em pleno século XXI. Lisboa e Salvador miram-se em pontos opostos nas duas margens da modernidade.

Em pontos opostos, a modernidade que as separa é a mesma que as une. É sempre moderno o referencial assumido por elas. O Estado não (mais) satisfaz as necessidades básicas à sobrevivência e o desenvolvimento individual? A instauração (ou restauração) do Estado provedor é a solução. O governo atual foi incapaz de reformar o Estado e geri-lo em benefício dos trabalhadores? O (novo) governo é a solução. Mesmo quando se constata que os partidos não representam (mais) o anseio de mudança dos trabalhadores, a solução ainda está no horizonte emancipatório da modernidade: defende-se a criação de um novo partido. Este, sim, fiel às bandeiras históricas da classe trabalhadora. No limite da insatisfação, apostam no apartidarismo conjugado à democracia participativa – uma solução não menos moderna.

Apontei essas considerações ao atravessar o Atlântico, de Salvador a Lisboa, na noite de 5 de Julho. Seriam trabalhadas para serem a introdução de uma análise da organização popular nas duas cidades. Pois bem, seriam. O que aconteceu em Lisboa não me permitiu seguir em frente e o que deixou de acontecer restará no porvir, assim como a análise planejada.

Ficaria dois dias em Lisboa, onde colheria informações, e no dia 6 de Julho participaria do ato pela demissão do governo liderado pelo primeiro-ministro Passos Coelho. Governo em crise após a demissão do ministro das Finanças e do dos Negócios Estrangeiros [1] – ambos indispensáveis à execução do plano de austeridade e à coalizão partidária que sustentava o governo. Diante da ausência dos dois pilares, ou a casa ruía ou o primeiro e subsequentes ministros saíam bem rápido para preservar as suas carreiras. Preferiram ficar. O Presidente da República, responsável pela manutenção ou demissão do governo, preferiu o silêncio. O povo tomaria a decisão necessária.

“Demissão Já!” era o mote da convocatória no Facebook. E por que não “Fora todos!”, isto é, fora todo e qualquer governo? “A proposta da autogestão é também moderna!” – eu ensaiava um modo de tranquilizar os portugueses.

Enfim, cheguei em Lisboa às 10 da manhã e, após ser parado por todas as autoridades de imigração, que insistiam em não acreditar no brasileiro que vinha de Salvador, mas estava só de passagem rumo à Guiné-Bissau, consegui entrar na estação de metrô. Antes de chegar ao albergue no centro da cidade, tive a sensação de estar em um dia festivo ou às vésperas de um longo fim-de-semana no Brasil. Quase todos vestidos com roupas de praia e a carregar bagagens. Pensei que talvez fosse muito cedo, (em torno de meio-dia) para ver o metrô pleno de manifestantes que se dirigiriam àquela que era esperada como a maior das manifestações desde 15 de Setembro de 2012 [2]. A manifestação estava marcada para às 15:00h, em Belém, próximo à residência oficial do Presidente da República.

Já de saída do albergue, desci a Avenida da Liberdade, em direção ao Rossio, completamente vazia. Um senhor conversava amigavelmente com um policial e o monumento em homenagem aos soldados que lutaram na primeira guerra mundial expressava o mesmo drama anacrônico e nada mais. Pensei mais uma vez no “Estado provedor” português que desaparecia e segui a placa que dizia “Restauradores”.

Cheguei ao Rossio, eram já 14:30 e a manifestação teria início dali a “metadi di ora”, como dizem os guineenses. Naquela metade de hora, lembrei cada vez mais da África Ocidental em pleno centro cosmopolita de Lisboa. As ruas vazias do continente negro àquela hora se explicam pelo calor sufocante, a areia tórrida que cobre nossos corpos e o comércio fechado, mas em Lisboa, além do calor de 40°C, me faltava outra explicação. Às 14:50, no meio do caminho, uma placa convocava todos à festa “Avante!” – organizada anualmente pelo Partido Comunista Português, o PCP. A placa e o senhor ao lado dela ensejavam o mesmo entusiasmo com o qual os trabalhadores viveriam se o PCP conseguisse implementar o seu plano de saída da zona do euro. Mas isto já é outra conversa.Eram 15:15 e eu continuava a pé em direção à Praça da Figueira, onde pegaria o bonde n° 15 até Belém. Lá, em meio à multidão, participaria do ato massivo que expulsaria o primeiro-ministro Passos Coelho e o seu séquito da austeridade, pensava eu.

Já na Praça da Figueira, Dom João I, metalizado, se defendia de agressões estéticas e eu de cabeça baixa, protegida, procurava no submundo lisboeta uma resposta àquele silêncio. Não encontrei.

15:29 e já estou no bonde – dito elétrico. O calor aumentava, 42°C, e um clima de suspeição entre os passageiros sem razão de ser. Seria o medo dos famosos batedores de carteira dos bondes de Lisboa? Por que tanto desconforto quando a maquinista informou a mudança de trajeto do elétrico devido às manifestações? Estariam os poucos passageiros preocupados em como chegar à manifestação? Ou em como manterem seus trajetos sem ser importunados? A confirmação veio da boca de um rapaz, em forma de discurso alto e solene, para o regozijo da maioria em silêncio. “Enquanto houver manifestações, a imagem do nosso país continuará na lixeira e os trajetos alterados” – foi mais ou menos essa a frase de arremate. Excelente discurso, certamente o elemento necessário à equação daquele dia estranho. Modernidade conservadora + sábado + 42°C + desemprego + alteração do percurso do bonde = 0 (ruas vazias). Perguntava-me se os 50 anos de fascismo também não estavam ainda ali latentes, naquele dia estranho e no discurso do gajo.

O bonde seguiu cambaleante até chegar a minha vez de agir. Desci no melhor ponto para pegar um ônibus que me levaria a Belém, bem ao lado do Mosteiro dos Jerônimos, onde está o túmulo vazio de Luis Vaz de Camões e onde morreria mais um governo, se o trajeto político também fosse alterado.

Cheguei em Belém. Busquei a multidão, vi um senhor. Busquei faixas e cartazes, vi o mesmo senhor. Resolvi fotografá-lo. Busquei palavras de ordem, havia o mesmo silêncio. Religuei a máquina fotográfica e tentei ler, através do visor, na foto capturada, o cartaz que o senhor carregava. “Bandidos”, “Eleições”, “Gatunos”, “Prisão”, “Cortes”, “Pensões”, “Inconstitucional”. O plano de austeridade provavelmente diminuiu a sua aposentadoria, pensei. Mas por que ele estava sozinho?

Adentrei um pouco mais o parque em frente ao Mosteiro e pude suspirar de alívio. Os corpos de cerca de trezentas pessoas relaxadas sobre a grama e as bandeiras enroladas indicavam que o ato ainda iria começar. Eram 15:58 e o atraso de quase uma hora em relação à previsão oficial era natural. Mas, e aquelas pessoas que estão indo embora com suas bandeiras? E aquelas outras tantas que dormem? Tão grande é o silêncio. E o porquê da bandeira anarquista quase encoberta no chão? Resolvi perguntar: “Olá, tudo bem? A manifestação será aqui mesmo? A que horas?”

Resposta: “Acabou”.

Gostaria de ter uma bandeira naquele momento para enrolá-la e ir-me embora também. Na realidade, acabei esperando um pedido oficial de desculpas de quem quer que fosse. Fui em busca de outro senhor, com feição de anarquista, e vestindo uma camisa com um dizer insólito: “226 sequestrados da Bela Flor” [3]. O senhor só aumentou a minha frustração ao explicar: “o que era para ser uma manifestação contundente, que levaria à demissão do governo, tornou-se em uma ‘concentração’.” E depois, o que era para ser uma “concentração popular” tornou-se um evento controlado, com discursos contados e preestabelecidos, disse-me outro manifestante. Microfones restritos aos donos do ato: o PCP e a sua central sindical, a CGTP [4].

Fui em busca de mais informação e acabei conhecendo uma jornalista portuguesa, com certa vivência em terras tupiniquins, que foi logo expressando a sua indignação com a duração, o vazio e a tibieza de um ato que pretendia tanto e acabou em nada. Ela culpou o controle mortífero do ato pela CGTP, a força do verão e a desarticulação das várias organizações presentes.

Eu ainda fico com o discurso do gajo do elétrico. No fundo, os portugueses talvez tenham mais receio de perder a estabilidade das instituições que a modernidade legou do que os direitos conquistados. Não que um novo governo represente a solução para as demandas dos que trabalham, mas onde estavam os outros aposentados sem aposentadoria? Os trabalhadores sem trabalho? O povo sem direitos? A ausência deles me pareceu, antes de tudo, como sinal da normalização da austeridade.Não conseguia me dar por satisfeito. Não era possível que estivesse tudo acabado e que todos tivessem batido em retirada rumo a… casa! De tanto procurar, encontrei um grupo que, deitado sobre a grama, criticava o ato e a polícia. Anarquistas, talvez. Diante da possibilidade de saber a fundo o que tinha se passado, deitei-me sobre a grama próximo a eles e… dormi! Cochilei por alguns minutos e quando acordei não havia mais ninguém. Levantei-me e iniciei de novo a busca. Encontrei os mesmos suspeitos anarquistas reunidos, mas, dessa vez, mais próximos ao rio Tejo e em um grupo maior de cerca de 25 pessoas.

Sentei-me junto a eles, resisti ao sono e utilizei uma estratégia da época em que morava em Portugal. Prestei atenção ao português falado pelos membros do grupo e apresentei-me a quem falava português com características brasileiras [5]. Desse modo, conheci integrantes do MAS (Movimento Alternativa Socialista), uma corrente trotskista gêmea do PSTU brasileiro, que atravessou o atlântico e está em vias de legalização como partido apto a disputar eleições no velho continente. Nas falas, a defesa de uma pauta menos abstrata e referência aos “20 centavos” indicavam que as lutas no Brasil ecoavam por ali de alguma forma.

Pelo que apreendi, aquela reunião era um reflexo da forma como os movimentos sociais e partidos de esquerda estavam organizados em Portugal (em tempos de crise). Todos juntos em plataformas ou agrupamentos específicos com suas pautas de reivindicação concentradas – ainda que os partidos, por exemplo, apresentem programas distintos. O Bloco de Esquerda (BE) e o PCP se uniam a coletivos e movimentos sociais em “frentes amplas” como a “Plataforma 15 de Outubro” e a “Que se lixe a troika!”. Bastante lógico, mas antes de ser reflexo, tudo ali parecia refluxo.

E, se estavam todos juntos, por que apenas a CGTP (PCP) discursou naquele sábado e encerrou unilateralmente o ato? Seria a CGTP uma expressão do medo português em extinguir, ou ao menos submeter, os governos ao povo e fazer valer os versos gastos de Zeca Afonso [6]? Ou seria a continuação histórica da tática comunista de preservação do Estado e seus governos, mesmo que para isto fosse necessário reprimir a luta dos trabalhadores? Na Grécia atual, por exemplo, o partido comunista (PAME) engrossa as fileiras policiais para reprimir quem se aproxima do parlamento durante as manifestações [7]. Os comunistas que literalmente invertem as suas bandeiras para dar com o pau na cabeça de trabalhadores, na Grécia, me parecem ser da mesma linhagem daqueles que, em Portugal, se valem do aparato sindical e do nacionalismo para assimilar a luta social a favor do Estado. Uma tática muito mais eficaz para derrotar, antes mesmo de ser criada, qualquer organização popular não burocrática, anticapitalista, livre do cabresto dos comunistas-gestores da CGTP/PCP.

Mas por onde andaria Passos Coelho àquela altura? Demitido? Meus novos amigos luso-brasileiros me informaram que integrantes da plataforma 15 de Outubro estavam já a caminho do Hotel Tivoli, onde surpreenderiam o primeiro-ministro após o seu pronunciamento, e na mesma Avenida da Liberdade onde comecei aquele dia estranho. Também corremos para lá. Passos Coelho anunciou as pazes feitas com o ministro dos Negócios Estrangeiros, que por sua vez, após a chantagem da renúncia, passava agora a ser vice-primeiro-ministro e coordenador econômico do governo.

Em frente ao hotel, cerca 40 pessoas se esforçavam para bloquear a saída dos dois. Duas faixas foram estendidas – “Fora Passos, Fora Portas!” e “Obviamente, estão todos demitidos”. Mal conseguiram nos ver – os que tentaram. Finalmente, às 20:25, alguém desenrolou a bandeira anarquista. Talvez, já um pouco tarde demais. Sem renúncia nem demissão, Portugal manteve o governo. Em Lisboa, o povo sequer foi às ruas.

Notas

[1] Este último corresponde, no Brasil, ao ministro das Relações Exteriores.

[2] Nesse dia, a manifestação “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!” reuniu cerca de um milhão de pessoas em mais de 30 cidades portuguesas – a maior ação popular desde o 1º de Maio de 1974, ano da Revolução dos Cravos. Uma nova taxa pública, fruto do plano de austeridade, foi cancelada.

[3] Acredito que a camisa fazia menção à prisão de 226 manifestantes na Greve Geral http://www.publico.pt/politica/noticia/manifestantes-cortam-acesso-a-ponte-25-de-abril-1598586

[4] A Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses convocou o ato do dia 6 de Julho.

[5] “Português”, já que “brasileiro”, ao contrário do que pensam muitos portugueses, é um idioma que não existe nem para nós brasileiros.

[6] Na canção “Grândola Vila Morena”, hino da Revolução dos Cravos (ou 25 de abril), o compositor Zeca Afonso enaltece o poder popular ao cantar “O povo é quem mais ordena, dentro de ti, oh cidade”. Link para canção: http://www.youtube.com/watch?v=gaLWqy4e7ls.

[7] http://www.youtube.com/watch?v=8EOolbDDvvI.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

2 COMENTÁRIOS

  1. Um texto muito interessante. Nesse sentido, gostaria de perguntar o seguinte ao seu autor. A certa altura do texto você fala dos «Microfones restritos aos donos do ato: o PCP e a sua central sindical, a CGTP». De facto, esse é um dos problemas em Portugal: a presença de um sector stalinista bem organizado e que é hegemónico na esquerda portuguesa. Quando falo em hegemónico refiro-me ao facto duplo de que têm mais militantes do que provavelmente toda a restante esquerda portuguesa à esquerda do PS; e que conseguem ir manobrando todas as lutas sociais – inclusive as que tiveram uma maior espontaneidade no passado. A questão que deve ser colocada é porque a restante esquerda tolera essa hegemonia de sectores que controlam e enquadram as lutas sociais de molde a transformar a classe trabalhadora numa massa (conforme referi aqui: http://passapalavra.info/2013/07/80768)? Ainda recentemente como aludi aqui (http://viasfacto.blogspot.pt/2013/07/as-vanguardas-esclarecidas-atacam-de.html) e como o João Bernardo muito bem lembrou na caixa de comentários (http://passapalavra.info/2013/07/81639), houve um caso flagrante de desculpabilização da actuação do que eu chamo de cangalheiros das revoluções. Em suma, porque a restante esquerda tolera e desculpabiliza os comportamentos nocivos do eixo PCP-CGTP? Será que, afinal, grande parte dessa esquerda gostaria de estar no lugar do PC e, dessa forma, reproduzir alguns desses mesmos comportamentos? Ou será que nós na esquerda anticapitalista e internacionalista simplesmente também não queremos aprender com o passado?

  2. Caro João Valente,

    Boa pergunta. Decerto muitos presentes àquela “concentração” em Belém fizeram o mesmo questionamento, mas talvez de outra forma e provavelmente em silêncio. Relembrando algumas conversas daquele sábado, recordo a importância conferida por alguns manifestantes ao princípio da “unidade na ação”. Considerando a situação da maior parte das outras organizações que integram as “frentes amplas”, vejo a aliança com o PCP como uma espécie de “entrismo” que não visa, de imediato, disputar a base do PCP, mas a sua estrutura. Daí a subserviência diante de um ato inócuo e controlado. Isso se tornou mais evidente para mim quando soube que o MAS se aproxima do PCP também no campo econômico: ambos defendem a saída da zona do euro. No limite, acredito que sim, “grande parte dessa esquerda gostaria de estar no lugar do PCP”, ao menos dessa nova esquerda trotskista importada do Brasil.

    E no Brasil? Em Salvador, a “esquerda anticapitalista” (entenda-se, anarquistas e autonomistas) tem questionado abertamente o “aparelhismo” partidário nas assembleias e manifestações dos últimos dois meses. Nem sempre esta ação é bem sucedida, mas um fato novo e positivo é que a assimilação das lutas sociais pelos partidos nunca foi pautada de forma tão franca e aberta. O destino final do movimento, bem como a sua relação com os partidos, é ainda imprevisível. Esta crítica, nas assembleias e manifestações, tem causado não apenas o enfraquecimento dos partidos, mas o surgimento (ou reorganização) de grupos independentes que se identificam com o campo libertário.

    Mas, quando volto a pensar na sua pergunta e no contexto português, lembro-me também do que escutei de um militante de esquerda no Porto, em 2009, quando o perguntei sobre a existência de grupos anticapitalistas e antiautoritários em Portugal.
    Resposta: “Em Portugal, isso é folclore”.
    Até hoje eu não sei a causa.

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