Por Pablo Polese

 

Marx considerou o “grande segredo” da forma política criada pela Comuna o fato de que ela foi uma forma de autogoverno dos produtores, no qual as funções públicas – militares, administrativas, políticas – tornaram-se “funções de trabalhadores reais, ao invés de atributos de uma casta treinada” (Marx). Essa forma inicial foi implementada através de uma série de medidas sócio-políticas decididas de forma realmente democrática pelos comunardos. R. Silva as resume esquematicamente em seis itens:

1) a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo armamento do povo auto-organizado em milícias populares; 2) a retirada das atribuições políticas da polícia e sua transformação em um agente responsável e, a qualquer momento revogável, da Comuna; 3) a generalização dos princípios de elegibilidade e revogabilidade a todos os agentes responsáveis por funções políticas e administrativas; 4) o estabelecimento do “mandato imperativo”, que obriga esses agentes a executarem as decisões tomadas pelos trabalhadores que os elegeram; 5) o fim dos privilégios pecuniários desses agentes, que devem exercer suas funções [em troca de] um salário operário; 6) a supressão da separação dos poderes legislativo e executivo com a transformação da Comuna em um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo. (SILVA, 2007: 49)

É ainda Silva quem faz em seguida um comentário muito pertinente:

As duas primeiras medidas são imediatamente compreensíveis. Trata-se de amputar os órgãos meramente repressivos da velha maquinaria estatal, o exército permanente e a polícia independente, e de tornar os “trabalhadores reais” os únicos detentores dos meios organizados de violência, impedindo que as armas que os devem defender sejam utilizadas contra eles. Já as outras medidas da Comuna têm por objetivo quebrar o despotismo burocrático, que subordina os trabalhadores ao mais simples funcionário, e este, dentro da estrutura hierárquica verticalizada do Estado, ao seu superior. (idem, ibid: 50)

Desse modo, a Comuna institui uma nova forma de responsabilidade dos funcionários administrativos, uma responsabilidade não mais hierárquica, mas funcional, fundamentada na responsabilidade direta dos funcionários da Comuna perante os trabalhadores que os elegeram para tal ou qual atividade e podem, a qualquer momento, destituí-los, caso estes não cumpram de forma satisfatória as funções específicas para que foram incumbidos. Dessa forma, como observa Marx,

O sufrágio universal, que fora até então abusado – seja servindo para a sanção parlamentar do Sagrado Poder Estatal, seja como joguete nas mãos das classes dominantes, tendo sido exercido pelo povo apenas uma vez em muitos anos a fim de sancionar o (para escolher os instrumentos do) domínio parlamentar de classe – é adaptado aos seus propósitos reais: escolher, mediante as Comunas, seus próprios funcionários para a administração e legislação. Cai a ilusão de que a administração e o governo político seriam mistérios, funções transcendentes a serem confiadas apenas a uma casta de iniciados – parasitas estatais, sicofantas ricamente remunerados e sinecuristas ocupando altos postos, absorvendo a inteligência das massas e voltando-as contra si mesmas nos estratos mais baixos da hierarquia. (MARX, 2011:130)

Ao assim proceder, a Comuna acaba com a antiga “independência” dos agentes estatais em relação às massas, eliminando a hierarquia estatal de cima a baixo e substituindo “os arrogantes senhores do povo por servidores sempre removíveis, uma responsabilidade de mentira por uma responsabilidade real, uma vez que eles passam a agir continuamente sob supervisão pública” (ibid: op.cit). Dessa forma, a Comuna transforma as funções públicas (administrativas, militares e políticas) em funções dos trabalhadores, superando o costumeiro aspecto mítico sob o qual tais funções aparecem quando realizadas pela “casta treinada” da burocracia estatal.

O caráter, segundo Marx, de necessária simultaneidade da abolição de alguns órgãos estatais e início do fenecimento do Estado “em si mesmo” fica bastante evidente no trecho já citado de A guerra civil na França, onde Marx afirma que enquanto os órgãos meramente repressivos do velho poder governamental seriam amputados, suas funções legítimas seriam arrancadas de uma “autoridade que usurpava a preeminência sobre a própria sociedade” e “restituídas aos agentes responsáveis da sociedade”. (MARX, 2008c: 404). De modo que, como bem sintetiza Rafael Silva: “da usurpação estatal à restituição às massas populares dos poderes sociais alienados ao Estado: eis o sentido de todas essas medidas da Comuna”.

Por meio delas, a Comuna configura-se como a “negação concreta” do Estado existente e, portanto, como o início do processo de supressão do Estado. Por que apenas o início? A resposta não é simples. A supressão do Estado só pode realizar-se como a reabsorção, pela sociedade, de energias próprias despidas da forma política. A supressão do Estado só é alcançada quando a sociedade, uma vez eliminadas as classes e todas as estruturas da alienação, se torna capaz de auto-regulação puramente social de todos os processos societários. Tal configuração só é possível no comunismo, onde emerge uma sociedade sem classes e onde, como se lê nas notas de Marx ao livro Estatismo e anarquia de Bakunin, “as funções deixam de ser políticas”, de tal modo que “não existe qualquer função de governo” e “a distribuição das funções gerais torna-se função administrativa (Geschäftssache) que não implica domínio algum”.  (SILVA, 2007: 50)

Ora, conviria pensar a defesa de Marx do “centralismo” tendo como pano de fundo que “as funções deixam de ser políticas”, de tal modo que “não existe qualquer função de governo” e “a distribuição das funções gerais torna-se função administrativa que não implica domínio algum”. Tratar-se-ia, portanto, de um centralismo funcional, não-hierárquico.

Enquanto Estado-que-já-não-é-propriamente-Estado, enquanto Estado transitório ou “Ditadura do proletariado”, a Comuna não é ainda capaz de operar a reapropriação de todas as forças sociais alienadas. É por isso que Marx a chama de forma política da emancipação social.

Na mesma linha do raciocínio de Marx sobre o “Estado atual”, expresso em sua Crítica ao Programa de Gotha, Engels diz em uma carta enviada a Bebel em 1875 – onde tecia suas críticas ao Programa:

O Estado popular livre converteu-se no Estado livre. Gramaticalmente falando, Estado livre é um Estado que é livre com relação aos seus cidadãos, isto é, um Estado com um governo despótico. Devia-se ter abandonado todo esse charlatanismo acerca do Estado, sobretudo depois da Comuna, que já não era um Estado no verdadeiro sentido da palavra. Os anarquistas nos lançaram repetidamente à face essa coisa de “Estado popular”, apesar de que já a obra de Marx contra Proudhon, e em seguida o Manifesto Comunista dizem claramente que, com a implantação do regime social socialista, o Estado se dissolverá por si mesmo e desaparecerá. Sendo o Estado uma Instituição meramente transitória, que é utilizada na luta, na revolução, para submeter os adversários pela violência, é um absurdo falar de Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda necessitar do Estado, não o necessitará no interesse da liberdade, mas para submeter os seus adversários, e tão logo for possível falar-se de liberdade, o Estado como tal deixará de existir. Por isso, nós proporíamos que fosse dita sempre, em vez da palavra Estado, a palavra “Comunidade” (Gemeinwesen), uma boa e antiga palavra alemã que equivale à palavra francesa “Commune”. (ENGELS in MARX & ENGELS, s/d: 230 – grifo meu)

Dessa forma, se tivermos em mente a realização dos revolucionamentos orgânicos do sociometabolismo num sentido que supere os fundamentos da alienação, ou seja, se a forma política da Comuna efetua o primeiro passo da restituição social das forças políticas usurpadas e dá início à reestruturação econômica da sociedade, então a Comuna deixa de ser uma nova forma política e passa a ser uma nova forma de ser da sociabilidade liberta do capital. Mas enquanto limitada a nova forma política, a Comuna é capaz de reabsorver totalmente apenas o poder político estatal: não é por si mesma capaz de superar o que Mészáros chama “sistema de mediações de segunda ordem”, justamente por seu caráter essencialmente político, ou seja, predominantemente negativo, embora, como vimos, a Comuna tenha de fato conseguido (e apesar de todas as dificuldades postas a uma tentativa localizada sequer num país, mas apenas em parte de uma cidade [!]) iniciar uma série de ações construtivas (positivas) simultâneas à destruição das instituições da velha ordem.

Ao manter os fundamentos materiais do capital, a Comuna de Paris e qualquer outra forma política de transição que se mantenha nesses limites, por mais que consiga por em prática um início de superação positiva da política, é obrigada a manter em atividade uma série de funções sócio-políticas que inevitavelmente a tornam uma forma defensiva de governo “nacional” e, enquanto tal, uma forma de dominação política parcial que precisa se impor ao mesmo tempo em que sofre, por um lado, agressões militares do capital externo e, por outro, limitações materiais do capital interno, que inevitavelmente (dado o longo período necessário para a consolidação da transição) se mantém atuante nos interstícios econômicos da Comuna.

Em síntese: por maior vitalidade política revolucionária que uma Comuna isolada tenha, por mais que inicie revolucionamentos orgânicos na estrutura econômica da sociedade (promulgação da generalização do “salário operário”, eliminação do exército permanente, etc.) e mesmo efetuando aí uma superação positiva da política através da reabsorção social das forças políticas antes usurpadas pelo aparato estatal, enfim, por mais que seja operante e ativa numa série de aspectos imprescindíveis à superação do Capital, ao não superar os profundos fundamentos materiais do capital (seu sistema de mediações de segunda ordem) mesmo esses inquestionáveis avanços acabam condenados ao processo de reposição das antigas bases alienadas inerentes ao status quo ante. É possível mesmo generalizar esse aspecto da experiência da Comuna a toda e qualquer experiência transicional: está condenada à regressão qualquer forma política comunal de transição para além do capital que se mantenha isolada num só país e, portanto, na defensiva.

Reproduzimos o trecho em que Marx afirma ser a Comuna “essencialmente um governo da classe trabalhadora”, “o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora”, “a forma política, finalmente descoberta”, para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho, ou seja, diferentemente do que podemos interpretar pela tradução alternativa “com a qual se realiza”, a Comuna não realiza a emancipação do trabalho, mas é apenas a forma política que serve de mediação para se alcançar tal fim. E reside justamente nessa questão o limite fatal percebido por Marx, que torna a experiência da Comuna insuficiente para uma adequada construção da teoria da transição, em especial no que tange aos problemas relacionados ao papel do Estado e seu fenecimento na transição.

R. Silva afirma que todas as medidas revolucionárias da Comuna “circunscrevem-se à reorganização puramente política da sociedade, criam apenas as condições políticas para a emancipação econômica do trabalho, mas não constituem a realização desse objetivo”. De fato, as medidas tomadas pela Comuna não concretizam a emancipação econômica do trabalho; entretanto, achamos que há um exagero por parte de Silva ao afirmar que as medidas da Comuna “circunscrevem-se à reorganização puramente política da sociedade”. Marx observa em seus escritos sobre a Comuna inúmeras medidas efetivadas pelos comunardos de caráter essencialmente econômico, que davam início a uma “reforma econômica” da sociedade, como por exemplo, as experiências de autogestão operária de algumas fábricas abandonadas por seus proprietários (fugitivos temerosos da Comuna, alguns dos quais seriam indenizados pelos próprios comunardos, antes do massacre [!] pela apropriação de suas fábricas), e mesmo a instituição dos salários proletários, uma medida posta de forma política, através de decreto, mas que de forma alguma poderia ser interpretada como uma medida “puramente política”, dado o aspecto econômico diretamente envolvido. Mas, a despeito de tais aspectos, Marx não nutriu ilusões acerca dos limites da experiência da Comuna, como podemos notar, entre outras, na extraordinária passagem a seguir:

Assim como a máquina e o parlamentarismo estatal não são a vida real das classes dominantes, mas apenas órgãos gerais organizados de sua dominação – as garantias, formas e expressões políticas da velha ordem de coisas –, assim também a Comuna não consiste no movimento social da classe trabalhadora e, portanto, no movimento de uma regeneração geral do gênero humano, mas sim nos meios organizados de ação. A Comuna não elimina a luta de classes, através da qual as classes trabalhadoras realizam a abolição de todas as classes e, portanto, de toda dominação de classe (porque ela não representa um interesse particular, mas a liberação do “trabalho”, isto é, a condição fundamental e natural da vida individual e social que apenas mediante usurpação, fraude e controles artificiais pode ser exercida por poucos sobre a maioria), mas ela fornece o meio racional em que essa luta de classe pode percorrer suas diferentes fases da maneira mais racional e humana possível. Ela pode provocar violentas reações e revoluções igualmente violentas. Ela inaugura a emancipação do trabalho – seu grande objetivo –, por um lado, ao remover a obra improdutiva e danosa dos parasitas estatais, cortando a fonte que sacrifica uma imensa porção da produção nacional para alimentar o monstro estatal, e, por outro lado, ao realizar o verdadeiro trabalho de administração, local e nacional, por salários de operários. Ela dá início, portanto, a uma imensa economia, a uma reforma econômica, assim como a uma transformação política. (MARX, 2011: 131).

Ora, ao se configurarem como medidas fortemente políticas, as medidas da Comuna tinham um limite objetivo muito forte.

Referências

ENGELS, F. Carta de Engels a Bebel, de 18/28 de março de 1875. in: Marx & Engels, Obras escolhidas, vol.2. SP: Alfa-Ômega.
MARX. K. (2008c). A guerra civil na França. In: A Revolução antes da revolução. SP: Expressão Popular.
____. (2011). A guerra civil na França. SP: Boitempo.
SILVA, R. (2007). Dilemas da transição: um estudo crítico da obra de Lênin de 1917-1923. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Unicamp-SP.

Esta série inclui os seguintes artigos:

1) superação do Estado, o problema
2) Engels e a posse dos meios de produção previamente centralizados no Estado
3) a ditadura do proletariado como “Estado” transicional
4) o grande segredo da Comuna de Paris
5) socialismo passo a passo
6) Marx, a negatividade da política e o aspecto multidimensional e de longo prazo da transição
7) os limites do legado político de Marx
8) superar o Estado, só pela autogestão

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