Marilene, entrevistada por Passa Palavra

 

Durante quase quatro anos Marilene de Souza (33 anos) permaneceu presa em um dos presídios no Estado do Rio de Janeiro. Motivo? Assalto a mão armada. Mas talvez com este relato pudéssemos pensar para além do imediato e conjecturar sobre as condições e perspectivas de vida que a levaram por este caminho de isolamento social. Por outro lado também nos parece possível pensar as questões próprias ao sistema carcerário: sua função na sociedade de classes, sua forma de funcionamento enquanto expressão desta função, além das semelhanças e diferenças entre o tratamento que recebem mulheres e homens, tanto no interior deste espaço, quanto na atenção que recebem de pessoas que estão do outro lado das grades.

Nesta entrevista concedida ao Passa Palavra, Marilene relata as situações diversas que viveu neste período, o sofrimento e a humilhação. O caso de Marilene não é único, mas é um exemplo de como o sistema prisional está longe de cumprir o papel de ressocializar aqueles que quebraram alguma regra do convívio social e deveria nos levar a refletir sobre estratégias que se posicionam a favor de perspectivas punitivistas. De fato, parece ser possível observar através da experiência de Marilene que o sistema prisional funciona como um poder punitivo à serviço da manutenção do status quo na sociedade de classes.

Passa Palavra: Você é aqui mesmo do estado do Rio de Janeiro?
Marilene: Sou sim. Minha família é de Pernambuco, minha mãe faleceu um ano antes da minha prisão.

PP: Quanto tempo e por que foi presa? Passou por muitos lugares neste período?
M: Cumpri uma pena de 3 anos e 8 meses no regime fechado numa sentença de 9 anos por assalto a mão armada, artigo 157. Num total de transferências, uns 4 lugares.

PP: E por que assaltar?
M: Falta de sabedoria, eu era muito imatura, estava revoltada com a morte da minha mãe, com os problemas familiares e resolvi descarregar minha raiva no crime.

PP: O que mais passava por sua cabeça enquanto você esteve detida?
M: O quanto fui tola e inconsequente, pois o tempo que estava lá era o tempo de uma faculdade ou ter alcançado algum objetivo na minha vida.

PP: Houve alguma rebelião ou tumulto no período em que você esteve presa?
M: Quando eu fiquei na delegacia do Grajaú 20ª DP. Houve uma rebelião e quase morri nela, intoxicada com a fumaça de colchões queimados. Motivo da rebelião: a falta de água! Foi por semanas! Todas sem banho, apenas água pra beber e um gole racionado. Com esta rebelião desativamos a 20ª DP e fomos transferidas para [a penitenciária de] Bangu 6. Lá, mais descaso, horríveis lembranças…

PP: O que diziam sobre essa falta d’agua?
M: A justificativa era que se os civis estavam sem água nós, criminosos, teríamos que suportar (resposta sempre dada ironicamente).

PP: O que mais te incomodou em todo este tempo em que esteve presa? Ocorreu algum problema que fez você ficar detida mais tempo que o necessário?
M: O descaso público. Não, eu era uma presa de bom comportamento, queria estreitar meus dias naquele lugar, mas se eu tivesse [acesso a] recurso, como eu era réu primária, teria ficado somente o suficiente. Eu era réu primária, mas isso não impediu do Estado me deixar mofando por longos e árduos anos.

PP: Então você acredita que houve falta de assistência jurídica no seu caso?
M: Sim e muita.

PP: Acha que essa falta de assistência jurídica se relaciona com a falta de atenção da sociedade com a questão das mulheres presas?
M: Bem, o fato de ser tratado como mercadoria do governo isso é um fator tanto do presídio feminino e masculino. Mas as mulheres são muito mais esquecidas.

PP: E como eram as condições na prisão (alimentação, celas, banheiros)? E a revista?
M: Se eu falar pra você que já comi comida com bicho, você vai achar mentira minha, e arroz azedo! Eu não tinha visita, apenas uma alimentação por dia, uma quentinha fria e sem sabor. [A revista era] Humilhante, eu não tinha visitas, mas lembro das minhas amigas de cela, o que elas passavam com suas mães e filhos…

PP: Você pode nos contar mais detalhes sobre isso?
M: Sim. O fato de eles pegarem as alimentações que as famílias traziam no dia da visitas, era esculachada, eles misturavam tudo. Diziam procurar por drogas. Senhoras de idade sendo expostas a humilhação. Era horrendo.

PP: Você recebia visitas?
M: Não, não tinha. Como disse, a minha família é de Pernambuco, minha mãe havia falecido e meus irmãos eram adolescentes.

PP: A carceragem era de ambos os sexos? Como era a relação com carcereiros e carcereiras?
M: Não, a carceragem era feminina e as agentes arrogantes. Nem todas. Eu sabia fazer o ambiente.

PP: O que exatamente você quer dizer com arrogante?
M: O fato de serem DESIPEs [Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro], o poder que exerciam sobre nós.

PP: Tinha contato com o mundo exterior à prisão?
M: Meu contato era apenas por TV, tinha uma na cela de uma amiga.

PP: Presenciou ou viveu alguma violência contra as detentas?
M: Nunca, sempre fui respeitada, costumo dizer que eu era a queridinha de Deus. Mas senti dores horríveis de dente. Fiquei traumatizada com o dentista. Fui humilhada no hospital que me levaram fora do presídio para tratar os dentes; chegando lá fui muito humilhada, o dentista mandou eu suportar a dor da agulha na boca, pois, já que eu era bandida, era pra suportar calada.

PP: Gostaria de nos contar qualquer outra coisa que não foi aqui contemplada?
M: Depois que saí, venci, montei um estúdio de beleza. Hoje sou MEI (Microempreendedor Individual). Recentemente [ocorreu uma situação com] uma cliente minha, que tinha o filho dela preso em Bangu. Ele saiu da cela (relatos dela…) foi ao hospital penitenciário para uma consulta, deram 6 injeções. Não se sabe ainda do que, [mas] ele veio a óbito no dia do aniversário dele. Um dia depois chegou alvará de soltura. Fui ao enterro do Leandro, com o coração na mão, pois se ele que recebia visita fizeram isso, imagina [o que poderiam fazer] comigo? Sou ou não sou queridinha de Deus? Um forte abraço fique com Deus e até mais.

Ilustrações: obras de Ana Maria Pacheco

1 COMENTÁRIO

  1. Com as manifestações massivas nos meses de Junho e a repressão estatal típica choveram relatos de militantes presos descrevendo a violência a que foram submetidos (ameaças, agressões,etc). Tais relatos têm sua importância no sentido de denunciar que o Estado é quem mais descumpre as leis, principalmente o que se conhece por “direitos humanos”, mas ao mesmo tempo muitas vezes esqueçem de dizer que o sistema repressivo (polícia, justiça, presídios) cotidianamente fere os “direitos humanos”, fundamentalmente dos negros e pobres, sendo um sistema racista e classista… permanentemente… como evidencia o artigo!

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