Por Zeev Sternhell
Leia a 1ª parte deste artigo.
No começo do século XX, o socialismo da Europa ocidental (incluindo, claro, a Alemanha a leste do Elba), confrontava-se com dois fenômenos de grande importância. Estava evidente, em primeiro lugar, que as grandes profecias do marxismo não tinham sido realizadas. Ninguém naquela época poderia argumentar que a polarização social e a pauperização – duas condições sine qua non para a futura revolução – tinham vindo para ficar. Ao contrário. Já por volta do último terço do século XIX, o padrão de vida da classe trabalhadora tinha subido e o seu poder de compra aumentado, e se as diferenças sociais ainda permaneciam as mesmas, as condições de vida das camadas mais baixas tinham melhorado consideravelmente. Essa evolução resultou numa situação econômica e política sem precedentes na Europa. É preciso mencionar também a grande revolução tecnológica e científica no fim do século XIX e início do século XX que afetou as formas de produção e consumo, alterando o ritmo de vida e oferecendo novas perspectivas de progresso e bem-estar. A revolução tecnológica indubitavelmente garantiu o triunfo da burguesia, mas não sem afetar profundamente a relação entre as classes. Meio século depois do Manifesto Comunista, um quarto de século após a Comuna de 1871, já se estava muito longe, na Europa ocidental, do inferno industrial de Manchester ou da “Semana Sangrenta” de Paris.
As relações sociais tinham se tornado menos brutais, porque era do interesse de todos evitar confrontos que pudessem se transformar em batalhas campais. Desde o fim da Guerra Franco-Prussiana, a situação internacional também tinha se estabilizado e o continente desfrutava de uma calma até então desconhecida. Todos estes fatores, aos quais se poderia acrescentar o surto demográfico como reflexo da melhoria das condições de vida, levaram, no fim do século XIX, a um período de expansão e prosperidade sem precedentes. Esta nova prosperidade, que parecia vir para ficar, criou um ambiente no qual os fenômenos políticos e econômicos eram muito diferentes daqueles que Marx teve a oportunidade de observar. Consequentemente, o pensamento socialista teve de se confrontar com uma série de novos problemas difíceis de explicar segundo a ortodoxia da análise marxista. É com esta nova situação que começa a célebre “crise do marxismo”.
Às mudanças econômicas foram acrescentadas duas outras transformações, que também reduziram a relevância da análise tradicional marxista: a democratização da vida política e o aumento da consciência nacional entre as massas. O liberalismo foi um sistema político inventado pela elite para governar a sociedade, no qual a participação política era limitada. A adaptação do sistema representativo ao sufrágio universal, a adaptação do liberalismo à democracia e às massas, não aconteceram sem solavancos. Foi com tremenda dificuldade que o liberalismo, adotando o princípio da igualdade política, se desenvolveu e transformou na democracia liberal. Este foi um dos principais aspectos tanto das crises da virada do século quanto das do período entreguerras.
As novas massas urbanas resultantes da concentração industrial ganharam então acesso, ainda que parcialmente, aos mecanismos decisórios. Num regime de sufrágio universal é difícil perpetuar um governo que vá contra os interesses da maioria. O marxismo não previu um cenário em que o proletariado, organizado em sindicatos, partidos socialistas e grupos de pressão locais, chegaria um dia à conclusão de que a democracia burguesa também poderia atender aos seus interesses. O sufrágio universal – mesmo onde, como na Alemanha do início do século XX, não era acompanhado de liberdade política – revelou-se uma verdadeira força de integração. A isso se poderia acrescentar a contínua expansão econômica e o inquestionável progresso social ao qual ela conduziu. Os pais fundadores do socialismo não previram a jornada de trabalho de oito horas, o descanso semanal, a seguridade social, muito menos um sistema educacional compulsório e universal.
Parecia, além do mais, que a democratização da vida política, assim como o progresso social, não favoreciam o socialismo. Ao contrário, a modernização do continente europeu e a participação política e a mobilização das massas provocaram o aumento da consciência nacional nessas mesmas massas. Logo ficou claro que a educação compulsória, o aumento da literacia no campo e a lenta mas contínua aquisição cultural pela classe trabalhadora encorajaram não a consciência de classe do proletariado, mas sim uma maior sensibilidade à identidade nacional. A criação de novos estratos de assalariados e o desenvolvimento de novas atividades terciárias provaram que a modernização, contra todas as expectativas, trabalhou contra o socialismo. O famoso processo de polarização não aconteceu e, no campo político, o movimento nacionalista em França, Itália e Alemanha colheu os benefícios deste desenvolvimento. O movimento nacionalista, populista e revolucionário foi o que mais lucrou com a revolução intelectual do fim do século XIX. Afinal, nem o darwinismo social nem o antipositivismo nem as novas ciências sociais como a psicologia e a sociologia (que, com Pareto, Simmel, Durkheim e Max Weber representaram a resposta do establishment universitário europeu ao marxismo) eram favoráveis ao socialismo. A nova realidade e o novo clima intelectual que nela se desenvolveu conduziram à revisão do marxismo.
Esta revisão da teoria marxista (na verdade, uma reinterpretação do corpo ideológico associado ao pensamento de Marx e sua adaptação às novas realidades) aconteceu na esteira do grande debate sobre o marxismo, cujos primeiros protagonistas foram dois assistentes de Engels, Eduard Bernstein e Karl Kautsky. O ataque de Bernstein, a réplica de Kautsky, a participação de todas as principais figuras do socialismo internacional e a absoluta importância da controvérsia, que durou anos, revestiram o célebre debate Bernstein de excepcional significância.
É importante assinalar que Kautsky, que tinha sido um colaborador próximo de Bernstein entre 1880 e 1895, nunca tentou separar o socialismo da democracia. Se Bernstein, que por muito tempo tinha estado sob influência dos fabianos, parecia estar próximo de chegar a termos com uma monarquia constitucional, Kautsky vislumbrava o estabelecimento de um regime republicano radical. Não havia, entretanto, desacordo entre os dois no que se referia à necessidade de trabalhar, por meios estritamente compatíveis com o sufrágio universal e a lei da maioria, pela democratização do Estado e da sociedade alemães. Para Kautsky, a “revolução” significava que o acesso ao poder do partido socialista seria necessariamente acompanhado por uma mudança total na estrutura de classes, ficando tudo o mais sob o regime da democracia.
Kautsky, é bom lembrar, foi o autor principal do Programa de Erfurt de 1891, adotado imediatamente após o fim das leis antissocialistas de Bismark. O Congresso de Erfurt consagrou tanto a adoção do marxismo pelo partido socialista alemão como a sua entrada na cena política do império. Portanto, esse documento refletiu desde o começo uma ambiguidade fundamental, que logo se tornou o primeiro exemplo das dificuldades que o marxismo ocidental enfrentaria. A ambivalência derivava de uma aparente contradição entre o caráter revolucionário, bem “luta de classes”, da parte teórica do programa e o caráter puramente democrático e “reformista” da sua parte prática e política. Em 1892, Kautsky redigiu um documento de 260 páginas, Das Erfurter Programm, no qual ele expressava o seu pensamento e que imediatamente se tornou um clássico da literatura socialista. Esta exposição foi de grande contribuição para transformar o autor no teórico oficial do partido. Alguns anos mais tarde, quando o grande debate sobre o marxismo começou, este documento tornou-se o principal alvo dos revisionistas.
Assim, o Partido Social-Democrata alemão foi dotado de uma doutrina revolucionária no preciso momento em que se comprometia a trilhar a senda da democracia e abandonar de vez a violência ou a revolução. Se Bebel e Liebknecht, os dois líderes do partido, alguma vez tinham tido pendores revolucionários, nada restou disso no momento em que o partido se tornou marxista. Para muitos socialistas estrangeiros, esta contradição aparecia cada vez mais como um oportunismo dúbio, especialmente quando o partido passou a ser visto como o autêntico repositório do pensamento de Marx e Engels. Teria Engels permanecido em contato contínuo com Kautsky até à sua morte em 1895?
Este fosso entre teoria e prática pode ser explicado pela situação existente na Alemanha, em que a intransigência doutrinária era uma característica comum a todos os partidos. Impedidos pelas estruturas políticas do império de assumir responsabilidades reais, todos os partidos alemães ficavam livres para exibir a sua pureza doutrinária. O Erfurter Programm foi escrito não apenas para satisfazer Engels, mas também para demonstrar o conteúdo intelectual específico do marxismo. Ao mesmo tempo, o partido socialista lutava pela democratização da vida política na Alemanha. Ele acreditava nas virtudes da democracia e na possibilidade de atingir os objetivos do socialismo por meios democráticos.
Logo ficou óbvio, entretanto, que a ideologia revolucionária não seria capaz de conviver com as demandas da vida política, e a contradição entre a teoria da luta de classes e a aceitação tácita da ordem existente finalmente se tornou insustentável. Deste longo debate, a maior parte do qual ocorreu entre 1895 e 1905, praticamente todo o socialismo europeu ocidental emergiu com o novo rótulo de “revisionista”. O revisionismo, além do mais, não começou em 1899 com a publicação da crítica de Bernstein ao marxismo, mas cinco anos antes, no Congresso de Frankfurt, com a controvérsia sobre trechos do Erfurter Programm a respeito do campesinato, logo após a revolta dos socialistas bávaros contra o que eles viram como um caráter excessivamente marxista do programa. Este debate intelectual dividiu todo o movimento socialista europeu ocidental em duas escolas de pensamento com pesos muito distintos. Estas duas tendências, que divergiam completamente em relação ao conteúdo do revisionismo e seus objetivos últimos, estavam de acordo em relação ao método: elas buscavam harmonizar a teoria com a prática, alterando a teoria e, quando necessário, a prática.
Não é possível comparar estas duas escolas de pensamento do ponto de vista da sua importância imediata. Uma delas abarcava quase todo o socialismo europeu ocidental. Referimo-nos ao tipo de revisionismo “reformista” – um revisionismo que era liberal e democrata no sentido aceito destes termos. Com a forma que ele assumiu nos textos de Bernstein, Turati e Jaurès e no comportamento político dos partidos socialistas da Alemanha, Itália e França – onde a unificação do partido socialista em 1905 resultou num partido reformista muito similar ao Partido Social-Democrata Alemão – este revisionismo aceitou tanto a legitimidade dos valores liberais e democráticos quanto os mandamentos da democracia liberal. Havia, de fato, não apenas um compromisso com a ordem existente mas uma aceitação dos seus princípios. No começo do século, a grande maioria dos socialistas europeus ocidentais resignou-se à perpetuação do regime capitalista e da sociedade burguesa.
Restou uma minoria que também reconhecia o fracasso das previsões marxistas clássicas, mas que ainda assim rejeitava a conciliação ideológica e política com a ordem estabelecida. Esta minoria, que reteve as características revolucionárias do marxismo, muito corretamente se autodenominou “revisionistas revolucionários”. De fato, por volta de 1905, estes revisionistas foram os únicos socialistas a permanecer revolucionários na Europa ocidental. Eles revisaram a doutrina marxista na direção oposta ao do revisionismo de Bernstein. Em vez de diluir o marxismo interpretando-o em termos democráticos, eles retornaram às raízes do marxismo para refazer o que nunca deveria ter deixado de existir: o mecanismo de guerra contra a democracia burguesa. Os revisionistas revolucionários reexaminaram a doutrina original para recolocá-la mais uma vez a serviço da revolução. Eles achavam que ter o proletariado como um agregado de eleitores ou a espinha dorsal de um movimento de massas político que dependia de números para chegar ao governo e reformar a sociedade era uma traição. O proletariado era e tinha que continuar sendo o agente da revolução.
Tudo isto dizia respeito a questões ligadas à situação particular existente na Europa ocidental. Na Áutria-Hungria, na Polônia, dividida em três, na Rússia e também na Prússia, os problemas eram diferentes. Também aqui Karl Kautsky desempenhou um papel importante. A sua síntese do marxismo ortodoxo e do socialismo democrático inspirou os revolucionários da Europa central e do leste. Toda uma geração se inspirou nos textos de Kautsky, que, juntamente com Plekhanov, foi o pai espiritual do marxismo russo. A função da revolução em Kautsky era implantar uma democracia plena e completa, não a “ditadura do proletariado”. A grande diferença entre Kautsky e Bernstein reside na importância atribuída por Kautsky, na sua definição de transição para a democracia, ao mecanismo da luta de classes, o qual, por sua vez, refletia a operação da economia capitalista como descrita por Marx.
Mas se Kautsky foi atacado pelos revisionistas bernsteinianos, que rejeitavam por inteiro a sua interpretação de economia e a sua concepção de luta de classes em particular, também estava sob a mira de uma facção da esquerda liderada por Rosa Luxemburg, que se opunha ao seu “fatalismo”.Estes esquerdistas sustentavam que as teorias deterministas de Kautsky tinham o efeito de confirmar o partido na sua tradicional postura de “esperar para ver”.
A maioria dos radicais da Europa central e do leste pertencia a uma geração mais nova do que a “velha brigada” marxista composta por Kautsky, Mehring, Victor Adler, Axelrod e Plekhanov. Rosa Luxemburg, Otto Bauer, Rudolf Hilferding, Martov, Radek, Trotsky e Lenin compartilhavam a convicção de que a Europa do leste, e talvez toda a Europa, estaria às vésperas de um tremendo tremor de terra. Os problemas confrontados por esta geração da Europa do leste de 1905, totalmente diferentes dos existentes em França ou na Itália, estão fora do escopo deste livro, mas as condições na Europa do leste explicam porque estes não-conformistas permaneceram firmemente ligados às suas raízes marxistas, enquanto um grande número de dissidentes “latinos”, depois de ter tentado a correção do marxismo, afastou-se dele – alguns a ponto de fundar outro movimento revolucionário, o fascismo.
De fato, estes europeus do leste, ao contrário dos não-conformistas em França e Itália, nunca se desviaram do objetivo final: a destruição do capitalismo pelo proletariado. Para eles, a revolução nunca teve outro propósito senão o de pôr fim, acima de tudo, à exploração capitalista e ao sistema da economia de mercado. O instrumento e o beneficiário desta revolução sempre foi o proletariado. Estas pessoas podem ter divergido consideravelmente entre elas sobre as táticas revolucionárias a adotar ou sobre o papel do partido, do Estado ou da ditadura do proletariado, mas nunca perderam de vista o objetivo principal. Este fator uniu a escola austro-húngara, com Karl Renner, Rudolf Hilferding, Otto Bauer, Friedrich Adler e Max Adler, o grupo teuto-polonês girando em torno de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht – que também incluía Parvus (pseudônimo de Alexander Israel Helphand) e Karl Radek – o grupo dos mencheviques ao qual Trotsky de fato pertencia, e os bolcheviques, incluindo Lenin. Todas estas pessoas acabariam por ter diferentes destinos e originar escolas de pensamento e correntes políticas contrárias, dando origem, inclusive, ao aparecimento de terríveis rivalidades entre eles. Entretanto, todos permaneceram fiéis ao conteúdo racionalista, materialista e hegeliano do marxismo. O arcabouço conceitual desenvolvido por Kautsky sob o olhar atento de Engels sempre foi um denominador comum. Este fator também distinguiu os inovadores da Europa central dos sorelianos. Essa é a razão pela qual os integrantes do primeiro grupo, cada um a seu modo, sempre permaneceram fiéis à essência do marxismo, ao passo que o último optou por um revisionismo do marxismo que o esvaziou do seu conteúdo original.
Dentro destes limites, entretanto, o marxismo mostrou-se capaz de suficiente flexibilidade para permitir que Max Adler descobrisse em Marx um sociólogo kantiano, ou inspirasse a obra de Otto Bauer a abordar a questão das nacionalidades e do imperialismo, ou a de Rudolf Hilferding sobre o capitalismo financeiro. Os três fizeram contribuições de alta qualidade e grande importância para o marxismo. Se a obra de Max Adler representa, acima de tudo, um esforço intelectual, a de Hilferding e a de Bauer abriram novas vias não apenas para o pensamento marxista, mas também para as ações políticas dos partidos socialistas no império austríaco, a ponto de contribuir para a sua desintegração. A concepção leninista de imperialismo foi de fato uma simplificação das ideias teóricas de Bauer e Hilferding.
A primeira edição do Capital Financeiro de Rudolf Hilferding apareceu em Viena em 1910 e foi um sucesso imediato. Obra seca, austera e técnica, o Capital Financeiro foi reconhecido imediatamente como uma das poucas contribuições originais ao marxismo que, em relação a novos desenvolvimentos, colocou a teoria marxista num patamar mais elevado. As principais figuras do socialismo imediatamente saudaram a obra de Hilferding: Jaurès louvou-o na Câmara dos Deputados e, em 1916, Lenin inspirou-se nela para escrever Imperialismo, O Estágio Supremo do Capitalismo. Entre essas duas datas, o livro foi traduzido para sete línguas. As obras de Luxemburg, Parvus, Radek e Trotsky também estavam, apesar de enormes dificuldades teóricas, profundamente enraizadas no marxismo – um marxismo muito próximo da ortodoxia. Luxemburg deu uma grande contribuição à teoria marxista no que se refere ao capitalismo nos países subdesenvolvidos. A sua descrição da acumulação de capital num sistema “fechado” e da expansão capitalista nos países não-industrializados continua importante para entender a questão do crescimento econômico. Ao mesmo tempo, Luxemburg sustentava que a expansão capitalista abalava as suas próprias fundações, de forma que o colapso final do sistema como um todo poderia ser encarado como uma certeza histórica. Aqui reside a maior fragilidade analítica da sua obra, que essencialmente deriva da necessidade de provar a inevitabilidade da queda do capitalismo tomando por base as premissas elaboradas por Marx. Mas se Luxemburg e Hilferding conseguiram chegar a conclusões opostas a partir das mesmas estatísticas, ainda assim continuavam fiéis aos métodos e às ferramentas de análise marxistas.
Isto explica claramente a grande diferença entre os não-conformistas franceses e italianos e aqueles da Europa central e do leste. Enquanto os austríacos, poloneses e russos (a maioria, se não todos, provenientes da intelligentsia judaica) fizeram enorme esforço para se ater às teorias econômicas de Marx, ao caráter determinístico do seu sistema, à ideia de necessidade histórica e à base materialista da visão marxista de história e falavam de uma revolução internacional “permanente”, em França e na Itália foi iniciada uma revisão antimaterialista do marxismo baseada numa crítica violenta à teoria econômica marxista. Enquanto Kautsky, o profeta da ortodoxia, tornou-se de fato o arquiteto da passagem do marxismo ortodoxo ao socialismo democrático, em França e na Itália uma luta feroz contra a própria democracia foi empreendida.
Além disso, os intelectuais judeus revolucionários e internacionalistas – Luxemburg, Hilferding, Parvus, Radek, Trotsky, Bauer, Adler e muitos outros – operaram num ambiente envenenado por ódios nacionais e religiosos. Todos eles detestavam o nacionalismo tribal que florescia por toda a Europa, tanto nos países subdesenvolvidos do leste quanto nos grandes centros industriais do oeste. Estas pessoas nunca se curvaram ante a coletividade nacional e sua pátria, a piedade religiosa, as tradições, a cultura popular, os cemitérios, os mitos, os orgulhos e as animosidades. Consequentemente, estes pensadores e líderes políticos foram imunizados contra a colaboração com conservadores e nacionalistas.
Dividimos este texto em quatro partes. Leia a 3ª parte e a 4ª parte.
Muito interessante este texto do Sternhell. Fico com a impressão que o período 1875-1914 foi um tempo-charneira no que toca à orientação subsequente das doutrinas políticas conforme hoje as conhecemos. Não apenas o fascismo se formou a partir de aspectos do sindicalismo revolucionário do Sorel (e das teorias do Corradini). Também a social-democracia se forjou e se cindiu do marxismo. Interessante verificar-se que doravante o marxismo foi progressivamente nacionalizado, estatizado e vinculado à mais-valia absoluta nas formulações leninistas e a social-democracia forjou-se a partir da leitura kautskiana e bernsteiniana do Marx para formar a ala esquerda das políticas da mais-valia relativa. Por aqui se pode ver como as ambiguidades da obra do Marx a que aludi aqui (http://passapalavra.info/2013/11/87845) se expressaram na formação de duas esquerdas dos gestores. Ao mesmo tempo que o marxismo deu contributos – teóricos – essenciais para a compreensão e para a crítica do capitalismo, também deu contributos – estes mais práticos – para a formação das alas esquerdas da classe dominante.
Religando esta questão à obra do Sternhell, de 1920 em diante, parte importante da esquerda que se considerava anti-capitalista tornou-se num espaço formador de capitalismos de Estado. Pelo seu estatismo e pela defesa da mais-valia absoluta, essa esquerda encontraria espaço comum com os fascismos. Por exemplo, de 1920 em diante, o nacional-bolchevismo e o terceiro-mundismo tornaram-se coordenadas essenciais de uma esquerda miserabilista e portadora de potencialidades fascizantes.
João, foi um época-charneira ainda por outro motivo. Nos anos da transição do século XIX para o século XX Makhayski formulou pela primeira vez, e usando para isso um conceptual marxista, uma teoria daquela classe social que eu denomino gestores, a que outros chamam tecno-burocracia e a que em inglês se chama managers. Para Makhayski o marxismo servia os interesses sociais destes gestores, a que ele chamava intelligentsia, um termo que muitas vezes é erradamente traduzido por intelectuais mas que, na verdade, classificava as profissões de elite de carácter moderno não previstas na hierarquização estabelecida por Pedro o Grande. Assim, além de ter sido o primeiro a formular uma teoria dos gestores e a explicar o carácter capitalista (apropriador de mais-valia) dos gestores, usando para isso um conceptual marxista, Makhayski foi também o primeiro a aplicar as noções de Marx para fazer a crítica de Marx. Por este último motivo as teorias de Makhayski foram silenciadas na Segunda Internacional, mas foram desenvolvidas em seguida, por vezes por pessoas que nem lhes conheciam a origem.
Bem lembrado. É impossível desligar-se a evolução das chamadas correntes políticas do ascenso dos gestores em variadíssimos níveis da sociedade. É que já não eram apenas os gestores de cada empresa individual (que o Marx considerou como parte da classe trabalhadora…) mas eram os gestores organizados a partir de sindicatos, partidos de todo o tipo, no Estado central, nos bancos, etc. De então em diante todas as soluções políticas práticas passaram por uma qualquer via controlada pelos gestores. As diferenças operaram-se a partir da combinação dos gestores com outras classes. Mas a continuidade de diferentes formações sociais no capitalismo foi assegurada pelos gestores.
Qual é a relação entre a classe dos intelectuais definida por Makhayski e a classe dos intelectuais definida por Henri De Man em Au Delá du Marxisme (disponível para download aqui )?
Makhayski também pode ser enquadrado na categoria dos revisionistas que acabaram por flertar ou mesmo participar ativamente do fascismo, como parece ter sido o caso de De Man?
Gustavo,
Ambos se referiam à mesma classe social. Henri de Man chamava «intelectuais» ao conjunto de tecnocratas e burocratas que eu denomino gestores e considerava-os como uma nova classe social, dotada de interesses próprios, tanto assim que quanto mais a industrialização progredia, mais se desenvolviam os gestores. Na sua obra Au Delà du Marxisme (Bruxelas: L’Églantine, 1927, págs. 194-196) de Man deixou muito claro que não estava a referir-se a uma boémia de déclassés, mas a profissionais modernos, inseridos nos aspectos mais activos da economia. Noutra obra, Le Socialisme Constructif (Paris: Félix Alcan, 1933, pág. 192), chamou-lhes «uma geração de chefes de produção». O marxismo, advertiu ele em Au Delà du Marxisme (pág. 181), não é capaz de reconhecer «a existência de uma camada social diferente tanto do patronato como do proletariado, que exerce todas as funções dirigentes da vida política e económica».
Ora, para de Man a empresa surgia como o modelo da totalidade económica, a matriz do que então se denominava Economia Dirigida. «A partir do momento em que o engenheiro começa a aplicar à economia e à sociedade em geral os princípios de organização económica e técnica que regem o seu próprio sector de produção, ele chega a propostas socialistas, ainda que muitas vezes possa não aceitar esta denominação», escreveu ele em Au Delà du Marxisme (pág. 156). Assimilando a Economia Dirigida ao socialismo, de Man considerou que entre os gestores o móbil do lucro havia sido substituído pelo móbil da função. «Bastaria uma leve mudança de rumo na vontade social dos intelectuais, por exemplo, o desejo de empregar as funções de dominação com o objectivo de conquistar a totalidade do poder dominante, para converter a classe dos capitalistas num apêndice mais ou menos supérfluo, e em qualquer caso impotente, da produção e da circulação», escreveu ele na mesma obra (pág. 191). «Esta vontade de poder dos intelectuais equivaleria à eliminação do capitalismo enquanto princípio ordenador da sociedade, à rejeição do móbil aquisitivo da economia em prol do móbil do serviço, à transformação da produção num serviço social orientado para as necessidades e não já para o lucro». E em Le Socialisme Constructif (pág. 192) de Man considerou que havia enfim surgido «uma geração de chefes de produção que aprendem a trabalhar para a produção, para a obra, talvez mesmo, realmente, para o serviço prestado».
Ao mesmo tempo, de Man interessou-se muito pela obra de Georges Sorel e especialmente pela sua noção do mito enquanto expressão e veículo de um anseio colectivo, a ponto de um académico daquela época os ter escolhido a ambos enquanto defensores da tese de que «os mitos, os ideais e as atitudes heróicas desempenham frequentemente um papel mais importante do que os processos económicos» (Melvin Rader, «Soviet Communism», em Joseph S. Roucek (org.) Twentieth Century Political Thought, Nova Iorque: Philosophical Library, 1946, pág. 33). Não tenho possibilidade num comentário de proceder a uma análise mais demorada, limito-me a indicar que a adesão de de Man à teoria soreliana do mito se encontra especialmente em Au Delà du Marxisme (págs. 139, 145, 146) e em Le Socialisme Constructif (págs. 168, 242-243).
Decerto, nem todo o irracionalismo levou ao fascismo. Mas creio que todo o movimento político irracionalista levou ao fascismo — e continua a levar, o que é um perigo grave e urgente na Europa de hoje, Portugal incluído. No plano da negação da racionalidade e da mobilização psicológica, de Man temia que os socialistas estivessem a ser ultrapassados pelos fascistas, o que o fez encetar um percurso que terminou na adesão ao nacional-socialismo de Hitler, durante a ocupação da Bélgica pelas tropas do Reich. Em 28 de Junho de 1940, de Man publicou um Manifesto onde admitiu que o papel revolucionário desempenhado pelo fascismo ao provocar o «colapso de um mundo decrépito» e «a derrocada do regime parlamentar e da plutocracia capitalista» representava uma «libertação» para as classes trabalhadoras. «Este colapso de um mundo decrépito, em vez de ser um desastre, é uma libertação!». «A paz», acrecentou de Man, «não pôde dever-se aos acordos livremente estabelecidos pelas nações soberanas e pelos imperialismos rivais; mas poderá dever-se a uma Europa unificada pelas armas, onde as fronteiras económicas tiverem sido arrasadas» (citado em Michel Brélaz e Ivo Rens, «Henri de Man, 1885-1953», Les Classiques des Sciences Sociales, 2006 http://classiques.uqac.ca/classiques/de_man_henri/de_man_henri_photo/de_man_henri_photo.html e Léon Degrelle, La Cohue de 1940, Lausanne: Robert Crauzaz, 1949, pág. [81] http://archive.org/details/LaCohueDe1940 ). Logicamente, considerando extinta a função do partido a que presidia (ele fora eleito vice-presidente do Parti Ouvrier Belge em 1933 e eleito presidente no início de 1939), de Man decretou a sua dissolução e apelou a que os socialistas confluíssem futuramente num partido único, capaz de colaborar com os ocupantes nacional-socialistas. Do mesmo modo criou um sindicato único de tipo fascista, a União dos Trabalhadores Manuais e Intelectuais, que herdou o antigo aparelho sindical socialista. Mas a complexidade da vida política belga durante a ocupação e os interesses contraditórios em jogo fizeram com que o papel de de Man terminasse aqui.
A respeito de Makhayski existe um estudo interessante: Marshall S. Shatz, Jan Wacław Machajski. A Radical Critic of the Russian Intelligentsia and Socialism, Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1989. Vemos aí, no cap. das págs. 110 e segs., uma aproximação, ou paralelismo, entre o movimento animado por Makhayski e o movimento organizado por um agente da Okhrana, Zubatov, que em muitos aspectos se pode considerar como um dos precursores do fascismo. Sempre que a crítica aos gestores assume a forma de um anti-intelectualismo, o fascismo não anda longe. Mas observo isto a respeito de Zubatov, não de Makhayski.
É curioso verificar que depois da tomada do poder pelos boklchevistas a actividade de Makhayski declinou e foi pouco significativa. Parece-me ter sido então sobretudo Bogdanov quem deu novo alento às teses de Makayski, como pode ver aqui: http://www.left-dis.nl/pt/verdadop.htm Mas a ala esquerda do bolchevismo e Bukharin continuaram também receptivos a essas teses, embora por razões tácticas não as mencionassem explicitamente.
Se a minha leitura rápida de Au Delá Du Marxisme não me conduziu ao erro, é possível afirmar que o que fundamenta a superação do marxismo na visão de De Man reside nessa frase que você escreveu: “de Man considerou que entre os gestores o móbil do lucro havia sido substituído pelo móbil da função.”
Se bem entendi, isso sintetiza, em outras palavras, a crítica que De Man parece fazer ao conceito de luta de classes em Marx (e que, se entendo corretamente, é a espinha dorsal do marxismo enquanto movimento político e sistema econômico alternativo ao capitalismo).
Como diz De Man nesse livro, “O ressentimento contra a burguesia que deriva disso [das condições sociais decorrentes da proletarização dos camponeses e artesãos] se dirige menos contra a sua riqueza [da burguesia] do que seu poder. O sentimento de justiça se revolta contra as consequências de um excesso de poder social, agora destituído da antiga responsabilidade das classes dirigentes [nobreza e clero] frente à coletividade. Essa rebelião instintiva deriva menos do instinto de aquisição do que do sentimento de justiça.”
E De Man vale-se da análise histórica das primeiras revoltas operárias para mostrar que não era tanto por bens materiais que os operários se revoltavam quanto pelo total abandono moral em que se encontravam, utilizando-se, para isso, do exemplo dos artesãos, aqueles que mais teriam perdido em termos financeiros com a proletarização mas que, no entanto, não eram os mais ativos nas rebeliões iniciais.
“Sem dúvida,” prossegue De Man, “os ricos nunca foram amados. O ideal igualitário do cristianismo e a desconfiança feudal pelo dinheiro contribuíram para a formação de um preconceito que encontra sua expressão em todos os escritos populares da Idade Média. Contudo, o capitalismo industrial não se restringiu à criação de novos ricos; tratava-se doravante de um tipo de riqueza com uma significação social inédita. O capitalista industrial não é apenas um rico que gasta muito dinheiro; como detentor dos meios essenciais de produção, ele dispõe de um formidável poder social que o transforma em mestre dos destinos de seus trabalhadores. Antigamente, a autoridade do senhor feudal e do mestre artesão era compensada por uma responsabilidade correspondente; os privilegiados eram conscientes da sua responsabilidade com os deserdados e todo o sistema social se baseava no exercício do dever da caridade. Esse sistema foi substituído por um outro, onde a manutenção de uma massa de proletários despossuídos e de um exército de sem-trabalho era ditada pelos interesses dos dirigentes. Essa situação estava em contradição com o fundamento moral da produção camponesa e artesanal, que pressupunha que cada homem dispunha dos meios de trabalho necessários e a possibilidade de bem-estar assegurada. Depois de séculos, todas as leis, os regulamentos corporativos, os mandamentos da Igreja e os costumes populares se inspiravam na noção de uma existência garantida a qualquer um que trabalhasse.
O que contribuiu ainda para aumentar o sentimento de equidade social contra o recente privilégio dos industriais foi o seu abuso de poder sobre a assistência das instituições de caridade. As instituições e as tradições da caridade pública serviram para justificar as leis draconianas sobre a vagabundagem, e forneciam mão de obra de baixa remuneração.
Nas novas aglomerações industriais, os patrões eram geralmente proprietários das habitações e das lojas, e se aproveitavam disso para aumentar os ganhos. No interior das suas empresas, eles exerciam um poder quase absoluto e e não conservaram a tradição feudal que o princípio autoritário atribuía aos poderosos.
Além disso, logo ficaram claras as consequências jurídicas do excesso de poder político que a nova classe capitalista tinha assegurado graças ao sufrágio limitado. Esse poder serviu para romper os entraves que o antigo direito colocara à livre disposição da propriedade.
A luta dos trabalhadores pelos seus interesses só se transforma em luta de classes e na reivindicação de uma ordem socialista sob condições históricas específicas, que não são inerentes ao sistema econômico, mas que resultam da forma como ele foi implantado. Em si mesmo, um modo de produção não é nem moral nem imoral. A crítica socialista do capitalismo, apesar das aparências, refere-se menos à forma econômica da produção do que a um conteúdo histórico, social e cultural específico. Isso pode ser provado por um exemplo concreto: sendo os Estados Unidos um país capitalista por excelência, nem por isso existe um socialismo americano que represente o descontentamento das massas operárias. Isso decorre do fato de que um modo de produção semelhante ao europeu se desenvolveu em circunstâncias históricas e sociais completamente diferentes. O capitalismo americano não deriva da pauperização, mas da colonização individual; ele não teve que se adaptar às formas tradicionais de estratificação social do feudalismo e da monarquia; ele pôde, ao contrário, desenvolver-se, desde o início, numa atmosfera de igualdade política e moral. Como consequência, os operários americanos podem conduzir a sua luta pelos seus interesses no plano jurídico, que os coloca em condições de igualdade em relação aos demais cidadãos. Uma luta como essas não se torna, portanto, luta de classes. […] O modo de capitalista de produção pôde, num contexto histórico diferente, conduzir a uma espécie de equilíbrio social. O que impede de isso acontecer na Europa é a formidável vantagem adquirida pela burguesia desde o início, do ponto de vista do equilíbrio social.
[…] O sentimento de igualdade se levanta contra os capitalistas não tanto pelo poder de consumo que lhes possibilita a sua riqueza quanto pelo poder de que dispõem como detentores dos meios de produção. Esse poder aparece como imoral porque vem de uma autoridade sem responsabilidade, ferindo, ao mesmo tempo, o senso moral democrático, cristão e feudal. O que se condena no capitalismo não é tanto a mais-valia expropriada quanto o uso que feito dela para instaurar uma predominância social que transforma os não-capitalistas em objeto da sua vontade. O que leva o operário à luta de classes, portanto, não é o fato dele tomar consciência dos seus interesses aquisitivos, é o fenômeno bem menos complicado e mais profundamente enraizado na vida afetiva que a psicologia moderna chama de complexo de inferioridade social.”
Este tipo de fundamentação teórica seria um exemplo desse irracionalismo?
Gustavo,
É curioso que você se interesse por Henri de Man, que muita gente prefere esquecer em vez de estudar, para não descobrir coisas incómodas.
Tal como sucedeu com os sindicalistas-revolucionários e com muitos outros, também Henri de Man operou a sua revisão do marxismo a partir da participação na guerra mundial de 1914-1918. Ele encontrou nas trincheiras a amálgama de classes sociais que o marxismo recusava e encontrou no comportamento daqueles homens condenados a matar e morrer o irracionalismo que a social-democracia pretendia superar. No primeiro capítulo de Le Socialisme Constructif de Man insistiu na tese de que uma doutrina histórica das causas, como considerava ser o marxismo, não se podia converter numa doutrina dos fins, e que o socialismo, enquanto objectivo, só podia decorrer de uma doutrina dos fins. O conteúdo resultava da definição das causas, enquanto o móbil animava os fins. Desenvolvida ao longo de muitas páginas, esta tese constitui o núcleo de todo o livro, estruturando também o segundo capítulo, e no terceiro capítulo a apresentação do socialismo como uma utopia dinâmica supõe igualmente a clivagem entre o estudo das causas e o movimento que visa alcançar os efeitos.
De Man relacionou a cesura entre definição das causas e móbil da acção com a dicotomia entre civilização e cultura. É muitíssimo significativo que a oposição entre cultura e civilização, típica do pensamento de direita e extrema-direita germânico, e que servira a Spengler para estruturar a sua obra maior, fosse usada por de Man na crítica ao marxismo, e esta perspectiva surgira já numa conferência proferida em Paris em Março de 1930. Ora, em meu entender a cesura entre a doutrina histórica das causas e a doutrina dos fins foi o lugar central do irracionalismo na obra de de Man. Com efeito, supor que os objectivos não constituem um desenvolvimento da situação determinada pelas causas implica por si só uma abordagem irracionalista, e de Man defendeu a estranha epistemologia de um desejo que serviria de fundamento a si próprio.
No âmbito do marxismo, e precisamente na época de de Man, a teoria da praxis surgiu com o objectivo de racionalizar uma abordagem originariamente irracionalista, remetendo os a priori mentais para situações sociais determinadas por condições económicas. Assim, na teoria da praxis os desejos e as aspirações, que serviam de axioma às construções ideológicas, eram eles mesmos explicados pelas condições materiais de existência. Mas de Man não se interessou por esta perspectiva, embora parecesse por vezes não andar longe. No plano estritamente ideológico, a fronteira era muito ténue entre o esforço por racionalizar os impulsos surgidos fora da razão, como procuraram fazer os teóricos da praxis, e a deliberação de manter esses impulsos no plano irracional, como sucedeu com de Man. Mas a insistência em apresentar os fins num plano distinto das causas levou a que a aparente proximidade ideológica com a teoria da praxis desse lugar a uma cabal oposição nas atitudes políticas. De Man manteve a teoria dos fins do socialismo no plano da moral, vocacionada para um ser humano genérico e devendo a classe operária subordinar os seus interesses específicos aos interesses humanos gerais.
Penso que é este o lugar do irracionalismo na obra de de Man e foi a este respeito que ele recorreu às noções de Sorel. Negado enquanto dedução a partir de causas históricas específicas e projectado para um plano ético irracional e trans-histórico, o socialismo teria de ser movido pela emoção. Seria esta a função do mito, tal como Sorel o entendia. De Man não ignorava que as utopias são irrealizáveis, mas a sua função, afirmou ele, é servir de móbil da acção, e sem elas o movimento de massas estiola. O irracionalismo passou a ser a própria base da sua política. Se o móbil do socialismo era um entusiasmo de massas mobilizadas por símbolos num plano irracional, a ponte ficava lançada para a adesão ao fascismo. O universo conceptual que encontro em Au Delà du Marxisme e em Le Socialisme Constructif não era estranho ao fascismo, tanto assim que Léon Degrelle, a principal figura do fascismo belga, pôde mais tarde escrever que de Man já se havia transformado num «nacional-socialista inconsciente».
“A que condições deve satisfazer uma doutrina do socialismo para nos pôr em condições de, a uma só vez, compreender da melhor forma possível os fenômenos e agir sobre eles com o máximo de eficácia?”, pergunta de Man?
“Ora, o caminho que conduz a esse problema deve passar por uma crítica do marxismo”, responde.
Assim começa de Man o capítulo XI, O racionalismo marxista, em Au Delá du Marxisme.
É um capítulo denso e fascinante, quando o autor recorre aos conhecimentos científicos e filosóficos mais recentes da sua época (1926) – muitos deles influentes até hoje – para desmontar o que considera formas ultrapassadas de análise e teorização de Marx.
Não tivesse de Man engrossado as hostes fascistas e antisemitas, e seria referência obrigatória até hoje, é a impressão que me passa.
Entretanto, como você disse no penúltimo comentário, nem todo irracionalismo leva ao fascismo, e toda uma linhagem de pensamento continuou daí onde de Man se perdeu, por exemplo, o pessoal da Análise Institucional (um resumo razoável sobre o percurso da AI pode ser visto aqui: http://matutacoes.org/2011/06/29/%E2%80%9Cisso-funciona-respira-come-caga-fode%E2%80%9D/ )
Gustavo,
Eu escrevi: «Decerto, nem todo o irracionalismo levou ao fascismo». E logo em seguida acrescentei: «Mas creio que todo o movimento político irracionalista levou ao fascismo». Ora, com Henri de Man tratava-se de um movimento político. E como ele era um pensador muito coerente e lógico, o seu percurso político não foi ocasional. O que não significa que as suas obras não possam ser lidas com muito proveito.
Quanto aos temas que mais directamente me têm ocupado, parece-me especialmente interessante o terceiro capítulo de Au Delà du Marxisme, em particular a tese de que o desenvolvimento da maquinaria, em vez de retirar qualificações ao operário, pelo contrário, requer novas qualificações, exigindo um profissional capaz de fazer funcionar ou mesmo dirigir máquinas complexas. Gerou-se assim, como de Man indicou brevemente em Le Socialisme Constructif, uma grande diferença entre os operários qualificados e os meros serventes. Atento às consequências da industrialização moderna, de Man detectou noutra passagem de Au Delà du Marxisme «uma inquietante semelhança entre “o operário ideal” do marxismo e “o operário ideal” do taylorismo supercapitalista, pelo menos no que diz respeito à situação na oficina», e a partir daqui afirmou que não se devia a um acaso a difusão do taylorismo na União Soviética (Bruxelas: L’Églantine, 1927, pág. 62). A mesma argúcia que usou para analisar a actividade industrial, de Man empregou-a também para estudar as administrações, e entra aqui a sua definição da existência de uma classe de gestores, que está na origem desta nossa troca de comentários. Em suma, de Man escreveu livros repletos de análises muito perceptivas.
Enquanto crítico do marxismo, porém, parece-me que Henri de Man deixa a desejar, porque desenvolveu alguns temas como se fossem opostos ou alheios ao marxismo quando, na verdade, haviam sido centrais na obra de Marx. Assim, por exemplo, tanto em Au Delà du Marxisme como em Le Socialisme Constructif o modelo da mais-valia ficou reduzido à sua modalidade absoluta, com inteiro desconhecimento da mais-valia relativa, e certas passagens da primeira destas obras em nada são contraditórias com a teoria da mais-valia, como o autor pretendeu, mas, quando muito, desenvolveram-na e completaram-na em vários aspectos. Do mesmo modo, no terceiro capítulo de Au Delà du Marxisme parece que o autor ignorava a crítica de Marx à reificação e mais adiante (págs. 286 e segs.) considerou que no pensamento de Marx não havia nada de dinâmico, que ele era apenas estático. Este espantoso esquecimento da dialéctica explica-se ao sabermos que para de Man o único marxismo que importava e existia realmente era o marxismo vulgar, aquele que as massas haviam transformado em símbolo, mesmo que em nada correspondesse ao original, enquanto o original era letra morta e não tinha valor real (Au Delà du Marxisme, págs. 351-354). Em suma, Henri de Man considerou a obra de Marx apenas segundo a noção soreliana de mito. Ele reduziu a obra de Marx ao seu valor simbólico porque era neste plano que entendia a vida política. É isto o irracionalismo na política. La boucle est bouclée.