Por Zeev Sternhell
Leia a 1ª parte e a 2ª parte deste artigo.
Os primeiros sinais do grande ataque ao marxismo apareceram com a publicação, em 1894, do terceiro volume de Das Kapital. O ataque foi iniciado pelo economista austríaco Eugen von Böhm-Bawerk, que em 1896 escreveu Zum Abschluss des Marxschen Systems. Imediatamente traduzido para o russo e o inglês, o livro foi um grande sucesso, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Por três vezes ministro das Finanças e professor de economia política na Universidade de Viena, Böhm-Bawerk foi um dos mais respeitados e influentes economistas do período. A sua crítica das teorias marxistas do valor e da mais-valia representaram uma espécie de resposta oficial a Marx dos economistas profissionais. Aclamada universalmente pelo campo antimarxista, a obra de Böhm-Bawerk também inspirou a crítica do marxismo dentro do campo socialista. Vilfredo Pareto e Benedetto Croce, por exemplo, foram na mesma direção. A crítica de Pareto apareceu em dois estágios: primeiro, na sua introdução a Karl Marx, Le Capital, extraits faits par M. Paul Lafargue, publicada em 1897; depois em dois grandes capítulos de Les Systèmes socialistes (1902-1903). É interessante observar o quanto a crítica de Pareto ao marxismo estava próxima a Sorel. Pareto lançou um ataque generalizado ao socialismo, à teoria econômica marxista e à teoria da mais-valia. O seu ataque à parte descritiva de Das Kapital baseava-se na crítica ao método marxista e seus “sofismas”, mas ele concentrou-se principalmente na crítica à teoria da mais-valia. Pareto, que conhecia Böhm-Bawerk e reconhecia o valor da sua obra, fez uma forte defesa da livre empresa, sem “exonerar ou mesmo desculpar os abusos que existem nas nossas sociedades” – abusos resultantes da intervenção do Estado na economia. Uma vez que qualquer restrição à liberdade econômica é errada, escreveu Pareto, a intervenção do Estado na economia tem que ser estritamente limitada. Pareto voltou a estas ideias na sua famosa obra Les Systèmes socialistes. Aqui, o ataque à teoria econômica marxista e à teoria da mais-valia foi acompanhado pela crítica à teoria materialista da história e pela convicção de que “do ponto de vista científico, a parte sociológica da obra de Marx é muito superior à econômica.” Todas estas ideias sem exceção podem ser encontradas em Sorel, a quem Pareto admirava por opôr-se ao “doce e doentio socialismo e humanitarismo democrático que tanto terreno tem ganhado nestes tempos.” Sorel, entretanto, era considerado por outros – Croce, por exemplo – como “um eminente marxista francês”, algo com o qual Pareto claramente não concordava.
No mesmo período, Croce também produziu uma crítica à economia marxista, enfatizando os mesmos elementos de Pareto. De 1896 em diante, ele passou a criticar as fragilidades da teoria da mais-valia. Sorel chegou às mesmas conclusões que os dois pensadores italianos, que exerceram grande influência sobre ele e sua escola. Assim, verifica-se que em Viena, onde na época só se podia ser ou marxista ou antimarxista, o revisionismo não fincou raízes, apesar do debate iniciado por Böhm-Bawerk, enquanto em França e Itália, o terreno fértil do sindicalismo revolucionário, a situação era bem diferente. Lá era possível iniciar um ataque aos princípios econômicos do marxismo invocando, ao mesmo tempo, a autoridade de Marx, visto apenas como um sociólogo da violência. Lá era possível apelar a Marx para combater o século XVIII e seu racionalismo, para combater Descartes, o intelectualismo e o positivismo.
Porque em França e na Itália, por volta de 1905 – o ano que anunciou, para a Europa a oeste do Elba, a revolução vindoura – a questão era saber se o marxismo ainda oferecia a chave da história universal, se ele oferecia a visão correta das realidades econômicas e sociais e se, em última análise, o marxismo, como colocado na nona tese sobre Feuerbach [Certamente um lapso do autor, porque se trata da décima primeira tese. Nota do P.P.], ainda seria capaz de explicar o mundo e de transformá-lo. Quando enunciadas num país como a França, onde o proletariado industrial parecia ter alcançado o auge da sua força numérica mas não detinha a posição estratégica que tinha na Rússia, estas questões produziram respostas originais.
A ruptura começou com a crítica da teoria econômica marxista. Foi aí que o revisionismo revolucionário e o seu progenitor Georges Sorel começaram. Sorel, para sermos precisos, não tinha estatura suficiente para rivalizar com Rosa Luxemburg ou Rudolf Hilferding. O seu Introduction à l’économie moderne ou a sua série de escritos selecionados, traduzidos para o italiano e publicados com o título Insegnamenti sociali dell’economia contemporanea, mal pode ser comparado com A Acumulação do Capital ou o Capital Financeiro. Da mesma forma, o meio intelectual vienense no começo do século era infinitamente superior, no que se refere ao pensamento socialista, àquele frequentado por Georges Sorel no Quartier Latin. A importância da obra, entretanto, não pode ser julgada num plano absoluto. É necessário levar em conta também a sua influência e a sua função política. Os escritos de Sorel representaram o espaço conceitual a partir do qual os teóricos do sindicalismo revolucionário evoluíram.
No começo da sua carreira como teórico marxista, Sorel atacou a teoria do valor e chegou à conclusão de que a teoria econômica marxista era totalmente supérflua para quem olhasse para o marxismo como deveria: uma arma de guerra contra a democracia burguesa. Essa foi uma ideia que Parvus, um dos primeiros promotores, senão mesmo o inventor, da teoria da “revolução permanente”, nunca teria imaginado. Da mesma forma, tal ideia jamais teria ocorrido a Lenin, Luxemburg ou Antonio Labriola, apesar da sua feroz oposição aos métodos da democracia social. (Antonio Labriola é o pai do marxismo italiano, enquanto Arturo Labriola foi o fundador do sindicalismo revolucionário italiano). Algumas pessoas alegam hoje em dia que Antonio Labriola, o principal teórico marxista dessa época na Europa ocidental, era o representante de um marxismo “latino”, no polo oposto ao “economicismo” alemão e polonês. Sorel, de acordo com essa visão, foi outro “pioneiro do marxismo não dogmático da época”, um profeta da ideologia da autogestão, que poderia ser visto como par de Antonio Labriola, Rosa Luxemburg e Benedetto Croce. Entretanto, se Antonio Labriola foi o primeiro a interpretar o materialismo histórico como uma “filosofia da práxis” – a versão italiana do caráter filosófico do marxismo – baseada em fatores não econômicos, ele nunca pensou em oferecer ao movimento trabalhista um sistema econômico completamente novo. Havia uma grande diferença entre o ato de isolar os aspectos não econômicos da obra de Marx e o de declarar toda a teoria econômica do marxismo obsoleta e proclamar a validade perpétua do capitalismo. Antonio Labriola entendeu isso muito bem e, em 1898, depois de um período inicial de encantamento, cortou relações com Sorel. “O que devo fazer?” perguntou ele no prefácio da edição francesa de Socialismo e Filosofia. “Devo ser anti-Sorel depois de ter sido pró-Sorel?” Labriola sentiu-se na obrigação de desculpar-se com os seus leitores por esse entusiasmo inicial. “Eu não poderia imaginar em 1897,” escreveu ele, “que ele se transformaria tão rapidamente, em 1898, no porta-voz de uma guerra de secessão.” Antonio Labriola não errou quanto ao sentido da posição de Sorel.
Quanto a Luxemburg, as suas ideias sobre greve geral podem lembrar as de Sorel. Ela também estava essencialmente interessada no conteúdo moral da ação. Peter Nettl mostrou, entretanto, que para Sorel a greve geral era o cumprimento de um conceito de ação genérico, enquanto para Luxemburg era uma tática ditada pela situação do momento. Da mesma forma, a violência, para ela, nunca foi objeto de culto, como em Sorel. Ela, como ele, podiam ter as maiores desconfianças em relação à neutralidade das ciências sociais. Ela, como ele, queriam influenciar formas de pensar e mudar o mundo, mas ela nunca quis oferecer ao proletariado uma teoria da revolução moral e espiritual que deixasse intactas as bases do capitalismo.
O mesmo pode ser aplicado a outro não-conformista, Otto Bauer. Basta olhar o seu panfleto A Marcha em Direção ao Socialismo para constatar o enorme fosso entre a revisão soreliana do marxismo e não apenas a ortodoxia, mas tudo o que constituísse a base do socialismo europeu. Essa série de artigos, que sintetizam o plano de ação do socialismo austríaco, previam a socialização não apenas das indústrias pesadas, bancos e propriedades privadas de grande escala, mas também da agricultura, do solo para construção e das habitações. Isto era precisamente o que Sorel rejeitava, muito simplesmente porque ele se recusava a tocar na propriedade privada e porque ele não acreditava nem na igualdade nem na justiça social – valores que, para ele e sua escola, não passariam de lamúrias de anarquistas rousseauianos ou de socialistas jauresianos de almas doentias.
Sorel não quis simplesmente isolar certos aspectos do pensamento de Marx para desenvolvê-los de uma forma mais específica, como fizeram Max Adler e Antonio Labriola, nem, como Luxemburg, criar um complemento aos escritos econômicos de Marx. Não. Ele via o marxismo como um todo, incluindo as obras de Marx e as codificações do marxismo feitas por Engels, Kautsky e Bernstein, uma espécie de receptáculo que poderia ser esvaziado de seu conteúdo original e preenchido com outra substância. Este princípio era aplicado não apenas aos meios mas também aos fins da ação revolucionária.
Os sorelianos sempre se apegaram à ideia de que todo o progresso dependia apenas de uma economia de mercado e que, consequentemente, qualquer interferência nos mecanismos da economia liberal ou qualquer legislação que interferisse na liberdade das forças econômicas ou sociais constituía um perigo mortal para o socialismo. Sorel, sem hesitação, equiparou a teoria econômica marxista à teoria econômica manchesteriana. Ambas, acreditava ele, possuíam as mesmas fundações e os mesmos princípios. Apenas esses princípios, argumentava, garantiriam a polarização social e o desenvolvimento de uma luta de classes total – violenta, aberta, leal, sem misericórdia ou compromissos. Este conceito não era de forma alguma estranho à ideia original de Marx de que o próprio capitalismo cria as forças que o irão destruir, mas a grande diferença entre os sorelianos e todos os outros socialistas era que para os sorelianos, desde o início, o capitalismo como tal nunca foi questionado. Eles não tinham nada para colocar no lugar do capitalismo e nem conceberam uma época pós-capitalista. É aqui que, desde a publicação da Introduction à l’économie moderne, de Sorel, eles separaram-se de todos os outros socialistas europeus, inclusive dos teóricos reformistas da Europa ocidental que, apesar de se resignarem à existência do capitalismo, ainda assim permaneciam fiéis à ideia de que uma sociedade baseada na coletivização da propriedade seria sempre melhor do que uma sociedade que fazia da propriedade privada o seu fulcro.
O fato da socialização da propriedade privada não estar mais em moda nos partidos socialistas, nos cafés intelectuais e nas mesas editoriais das publicações de esquerda é totalmente irrelevante. No começo do século, não podia haver socialismo sem a socialização da propriedade, e não podia haver revolução socialista sem a eliminação da economia capitalista. Os sorelianos foram os primeiros revolucionários de origem esquerdista a recusar-se a questionar a propriedade privada, o lucro individual ou a economia de mercado.
“Um liberalismo de classe! Isso é o sindicalismo!” exclamou Arturo Labriola, o fundador do sorelianismo italiano, em 1905. “Ele combate os privilégios legais para outras classes e para si próprio, e é só através da luta e da livre ação das forças econômicas organizadas que ele espera a emergência de novas formações históricas e a grande esperança de uma humanidade pacificada no trabalho.”
Aqui reside o centro da questão. Uma vez que as profecias marxistas não davam sinal de se realizar num futuro previsível, e que a economia capitalista, ao contrário, estava em excelente forma, era difícil concluir, como Kautsky, que o socialismo seria uma necessidade histórica. O capitalismo, em resumo, não parecia carregar as sementes da sua própria destruição. Portanto, na visão dos dissidentes, para destruir a sociedade burguesa era necessário primeiramente desenvolver os fatores favoráveis à luta de classes. E, mais importante, era necessário introduzir no marxismo novos elementos que produzissem artificialmente o efeito da divisão, da violência permanente, do insidioso estado de guerra que o capitalismo não produzia – um capitalismo muito mais dinâmico e eficaz do que Marx imaginara ou do que a maioria dos seus discípulos quisera acreditar, um capitalismo que se mostrara capaz de se adaptar a todas as condições de produção. Além disso, quando um conflito aparecia, a burguesia e os partidos socialistas que representavam o proletariado, na medida em que operavam sob um regime democrático liberal e só podiam funcionar de acordo com a lógica do sistema, apressavam-se em chegar a uma solução conciliatória que atendesse às necessidades imediatas do proletariado. Desta forma, qualquer indício de combatividade da classe trabalhadora era neutralizado. De acordo com os sorelianos, isto evidenciava a incompatibilidade fundamental entre o socialismo e a democracia, tornando necessária a imediata destruição do sistema existente.
Nesta situação, os dissidentes chegaram à conclusão de que a revolução só poderia ocorrer se três condições fossem satisfeitas simultaneamente. Estes três elementos, ou melhor, estas três séries de elementos, tomadas em conjunto, como um todo, constituíram o sindicalismo revolucionário. Era a totalidade que contava, e esta totalidade finalmente acabou por se transformar no nacional-sindicalismo e, depois, no fascismo. Como dissemos no começo desta introdução, esta evolução, ocorrida nos primeiros vinte anos deste século, é o assunto deste livro.
O primeiro dos três elementos que assegurava o desenvolvimento do pensamento fascista era a ideia de que a dinâmica revolucionária dependia da economia de mercado, vista como representante das leis universais da atividade econômica.
O segundo elemento era a introdução de tipos novos e muito especiais de catalisadores no marxismo. Com o objetivo de criar uma clivagem, eles de fato mudaram completamente o conteúdo, o significado e o caráter do sistema. Uma vez que os mecanismos econômicos não tinham levado à catástrofe, era necessário recorrer a mitos sociais; e uma vez que a clivagem material não aconteceu, era necessário criar uma clivagem psicológica e moral. Esta tentativa de modernizar e melhorar o marxismo acabou por esvaziá-lo completamente, exceto a terminologia, especialmente o conceito de luta de classes, além de ter alterado radicalmente o sentido dos conceitos fundamentais do socialismo. Na verdade, no período do Réflexions sur la violence, os rótulos não indicavam mais a natureza dos produtos. A noção de luta de classes representava agora uma ideologia na qual o vitalismo, a intuição, o pessimismo e o ativismo, o culto da potência, do heroísmo e da violência proletária – fontes de moralidade e virtude – tinham substituído o racionalismo marxista. Além disso, a violência, de ferramenta técnica impessoal, passou a fonte de moralidade e grandeza, uma barreira a conter o declínio do Ocidente em direção à sua ruína.
O marxismo era um sistema de ideias profundamente enraizado na filosofia do século XVIII. O revisionismo soreliano substituiu as fundações racionalistas e hegelianas pela nova visão da natureza humana de Le Bon, pelo anticartesianismo de Bergson, pelo culto nietzschiano da revolta e pelas mais recentes descobertas de Pareto na sociologia política. A forma de socialismo soreliana, voluntarista, vitalista e antimaterialista se utilizou do bergsonismo como um instrumento contra o cientificismo e não hesitou em atacar a razão. Era uma filosofia da ação baseada na intuição, no culto à potência e no arrebatamento vital.
Esta foi a solução bastante original proposta por Sorel para superar e eliminar a crise do marxismo. Uma vez que a livre ação das forças econômicas era insuficiente para iniciar o processo revolucionário, a psicologia tinha que compensar a deficiência da economia. Era preciso convocar as forças profundas do inconsciente e da intuição e mobilizar essas fontes de energia que constituíram a grandeza da Grécia Antiga, da Cristandade inicial e dos exércitos de Napoleão. Os mitos eram necessários – mitos enquanto “sistemas de imagens” que não podiam ser nem decompostos em partes menores nem refutados. A violência proletária era um mito que visava produzir um estado contínuo de tensão que acabaria por conduzir ao colapso e à catástrofe, um estado de guerra insidioso e uma luta moral diária contra a ordem estabelecida. Desta forma, Sorel procurava retificar Marx, introduzindo elementos irracionais no marxismo. Mitos e violência eram os elementos principais em Sorel. Não eram expedientes, mas valores permanentes, assim como meios de mobilização de massas adequados às necessidades da atividade revolucionária.
O terceiro princípio do revisionismo revolucionário era a destruição do regime democrático liberal e das suas normas intelectuais e valores morais. A história recente já tinha mostrado que a democracia era simplesmente um pântano no qual o socialismo se atolara, que o movimento trabalhista tinha que ser liberado do domínio dos partidos socialistas e que todas as conexões entre os sindicatos de trabalhadores e as instituições políticas socialistas tinham que ser cortadas. Em resumo, era necessário destruir o sistema democrático como um todo.
Eram esses os princípios do revisionismo revolucionário que, através da passagem por duas etapas, se transformou no fascismo. Na primeira etapa, os sorelianos, metamorfoseando o marxismo, construíram uma nova ideologia revolucionária. A segunda etapa mostrou ser muito mais difícil. Eles tinham agora que lidar com um problema completamente inesperado: no fim da primeira década do século XX, ficou claro que não apenas os partidos socialistas mas também os trabalhadores, incluindo as minorias organizadas em sindicatos, não estavam nada dispostos a entrar em conflito. Na primeira etapa, Sorel ainda acreditava que uma elite proletária, organizada em unidades de combate de sindicatos, carregaria o peso da revolução. Logo ficou evidente, entretanto, que o proletariado não tinha absolutamente nenhuma intenção de assumir o seu papel de porta-estandarte da revolução. Esta conclusão levou à necessidade de encontrar um outro sujeito para desempenhar este papel e, por volta de 1910, os sorelianos decidiram atribuir essa tarefa à nação inteira. A nação deveria se alistar na luta contra a decadência democrática e racionalista. Dessa forma, um novo caminho foi se abrindo progressivamente entre as duas concepções totalizantes de homem e sociedade que são o liberalismo e o marxismo. Esta nova via revolucionária refletia as várias formas de revolta contra o liberalismo e o socialismo, sem deixar, entretanto, de continuar próxima das conquistas de ambos. Os sorelianos compartilhavam com os reformistas democráticos a convicção de que o capitalismo, longe de conter as sementes da própria destruição, encorajava o progresso tecnológico, sendo improvável que afundasse numa crise catastrófica num futuro próximo. Ambos concordavam que o capitalismo era um fator de progresso social e bem-estar. Os reformistas, entretanto, ainda que aceitando o capitalismo, não abandonavam de vista o objetivo final da socialização da propriedade privada. O mesmo não podia ser dito dos sorelianos, que, pelo seu lado, reconheciam que as leis da economia capitalista tinham valor permanente. Além do mais, para os reformistas, a democracia liberal era outra face da mesma moeda. A aceitação da economia capitalista implicava na aceitação de todos os aspectos do liberalismo político. Contra isto, os sindicalistas revolucionários expressaram um ódio feroz contra a democracia e a sua herança espiritual e desejavam obstruir e finalmente destruir os seus mecanismos institucionais.
O sorelianismo, nessa altura, representava a aspiração revolucionária sustentada exclusivamente numa elite do proletariado industrial entrincheirada na sua fortaleza autônoma. Ele pressupunha que esta elite proletária, organizada em unidades de combate nos seus sindicatos, era e permaneceria sendo o único agente de mudança. Nisto, o sindicalismo revolucionário diferia profundamente do leninismo. Formulada num país muito mais industrializado, essa doutrina ignorava o campesinato. Além do mais, Sorel não concebia que a responsabilidade pela mudança no mundo fosse colocado nas mãos de um grupo de profissionais. Nada era menos compatível com ele do que a ideia de um grupo de técnicos blanquistas atacando não apenas o regime mas também todas as conquistas do capitalismo. Além do mais, é bom lembrar que a Revolução Bolchevique foi em última análise uma revolução feita em benefício do proletariado, e em nome dele. A revolução dos sorelianos, ao contrário, transformou-se numa revolução nacionalista. Só no fim da sua vida, quando todas as suas obras já tinham sido escritas e ele via o mundo à sua volta com uma sensação de desespero, é que Sorel publicou em setembro de 1919 o famoso epílogo da quarta edição de Réflexions sur la violence. O seu ódio pela burguesia e pela democracia era tão grande que ele chegou a comemorar com gritos de alegria a revolução que acontecia na Rússia, uma rebelião conduzida por revolucionários profissionais a quem ele desprezou durante toda a sua vida. Na mesma época, ele não rejeitou o uso que os fascistas fizeram do seu nome.
Houve um momento no começo deste século em que a revolução soreliana parecia ter vindo para ficar. As Refléxions forneceram um fundamento ideológico para a nova militância trabalhista que surgira em França e na Itália, e isso, com as greves acontecendo, tanto poderia ser interpretado como uma revolta contra o Estado burguês quanto como uma rebelião contra os partidos socialistas existentes. De fato, a ideologia sindicalista era um bom reflexo da relação dialética que sempre existiu entre pensamento e ação. Mesmo que esta ideologia tenha se desenvolvido a partir das organizações sindicais e tenha imediatamente fornecido uma justificativa ideológica para o ativismo trabalhista existente, ela adquiriu, mesmo assim, uma existência autônoma. No começo, a teoria soreliana fez pouco mais do que refletir as ações dos sindicatos à medida em que eles cresciam em França nos últimos anos do século XIX. Uma vez transformada em sistema de pensamento independente, entretanto, a teoria precedeu a ação, que ela buscava conduzir e utilizar para moldar a realidade. Em Itália, a teoria revolucionária revisionista precedeu as ações sindicais. Em França, a teoria sucedeu-as, no início, e precedeu-as daí em diante. No fim da primeira década do século XX, a França e a Itália estavam no mesmo ponto. Em ambos os casos, a teoria forneceu um arcabouço conceitual para a revolução, embora a revolução não tenha vindo.
Dividimos este texto em quatro partes. Leia a 4ª parte.
Curiosamente a esquerda nacionalista partilha vários dos predicados enunciados pelo Sternhell. Daqueles três princípios fundamentais desenvolvidos a oropósito do Sorel, só o primeiro – a «economia de mercado, vista como representante das leis universais da atividade econômica» – é que eventualmente não se aplica. E mesmo aí há que ver a questão de um modo mais amplo, já que as experiências que essa esquerda valoriza (URSS, Cuba, Venezuela) não acabaram propriamente com o mercado capitalista. Nesse sentido, grande parte da esquerda europeia e portuguesa defende pelo menos dois princípios basilares: o recurso a mitos (no caso actual, a luta contra a ingerência externa e pela soberania nacional) e o ódio à democracia liberal.
E aqui chegamos ao ponto em que a esquerda nacionalista defende, cem anos depois, praticamente os mesmos princípios do sindicalismo revolucionário do Sorel.
Por outro lado, vendo apenas o que o Sternhell escreve nesta introdução, não me parece correcto afirmar que «a Revolução Bolchevique foi em última análise uma revolução feita em benefício do proletariado, e em nome dele. A revolução dos sorelianos, ao contrário, transformou-se numa revolução nacionalista». É certo que a revolução de 1917 foi inicialmente, de modo incontestável, uma revolução conduzida pelos trabalhadores organizados nos comités de fábrica. Todavia, ela também se transformou numa revolução nacionalista precisamente pelo papel que o Partido Bolchevique teve na penetração e na captação das ambiguidades inerentes ao movimento de base de então. Brest-Litovsk e a centralidade do socialismo nacional russo deriva dessa capacidade de hetero-organização protagonizada pelos bolcheviques.
Por outro lado, o fascismo italiano floresceu à medida que o movimento de lutas nas fábricas no norte de Itália recua. Portanto, no caso italiano também é de um fenómeno de esgotamento das lutas sociais e de hetero-organização das mesmas que deriva a posterior edificação de um regime totalitário.
Conheço melhor o caso soviético, pelo que não posso dar uma resposta definitiva mas arrisco a dizer que os bolcheviques foram mais bem-sucedidos do que os fascistas no controlo interno das manifestações operárias de base. Os fascistas espancavam os operários e activistas em luta, mas nunca conseguiram tornar-se maioritários entre os operários dentro das fábricas. Pelo contrário, os bolcheviques, por via da política do gestor único, conseguiram integrar os mecanismos de controlo central da economia e das várias unidades de produção com a simpatia política da geração operária seguinte à revolução. É isso que, por exemplo, explica a difusão do ideal stakhanovista e da capacidade dos soviéticos em aumentarem a produção (mas não tanto a produtividade) e construírem uma economia industrial colossal, quando comparada com o mar camponês anterior à revolução. Se a União Soviética foi um dos exemplos mais bem-sucedidos do fordismo nas décadas de 20 a 40, isso deve-se à capitalização das energias e do entusiasmo dos operários (que começaram a trabalhar dez anos depois da revolução) com o que achavam ser um socialismo. Neste aspecto, a capacidade de embeber o operariado numa falsa consciência da pátria do socialismo foi muito mais poderosa do que a do fascismo italiano.
A crítica do fascismo só é compreensível numa perspectiva de comparação entre regimes, iluminando tanto as semelhanças como as discrepâncias.
A PROPÓSITO:
http://guy-debord.blogspot.com.br/2009/06/luta-contra-o-fascismo-comeca-pela-luta.html
João Valente Aguiar:
“Pelo contrário, os bolcheviques, por via da política do gestor único, conseguiram integrar os mecanismos de controlo central da economia e das várias unidades de produção com a simpatia política da geração operária seguinte à revolução.”
Pode explicar um pouco melhor? A que você se refere exatamente como “política do gestor único”, tal política é referida por outros nomes ou coisa assim?
SOBRE O TEXTO DE OTTO RUHLE:
O ápice do oportunismo político da ultra-esquerda pequeno burguesa, que se entrega a aparências ao invés de realidades sociais e por isso acaba assumindo posturas politicamente catastróficas. Não é preciso ser muito estudioso para saber as diferenças entre fascismo e bolchevismo, nesse caso basta ser um pouco mais honesto com os próprios valores (de esquerda) para perceber o absurdo que é fazer essa afirmação, subestimando as conquistas bolcheviques em prol de um pequeno burguês histérico desligado da realidade e impressionado com a guerra civil.
E não sei aonde está o “propósito”, o tal contexto do texto de Otto Ruhle, quando o que temos aqui serve justamente para explicar o abismo ideológico entre o fascismo e o bolchevismo, demonstra inclusive a infatilidade de Ruhle.
Leninismo epigonal “modus defecandi”?
Não, obrigado.
Prefiro o Gasset…