Estudantes em Luta entrevistados por Passa Palavra
Desde o começo deste ano, os estudantes do Departamento de Psicologia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG) têm lutado por uma formação universitária que combine a teoria com a prática. Em Maio, o Centro Acadêmico de Psicologia (CAPSI) publicou um manifesto contra o “aulismo”, isto é, um manifesto contra o excesso de aulas teóricas (em sala de aula) e a escassez de aulas práticas (trabalhos de campo) no curso de Psicologia. E, desde Agosto, os professores, a coordenação e a direção do curso têm se defrontado com uma iniciativa autônoma de uma das turmas do curso: a professora que ministra a disciplina Laboratório de Atividades Integradas (LAI) – Psicologia, Política e Ideologia II, que deveria ter 24 horas de aulas práticas e 8 horas de aulas teóricas, apresentou aos alunos dessa turma uma ementa predominantemente teórica e, mesmo diante de sugestões e críticas por parte dos alunos, recusou-se a rever e reelaborar a ementa da disciplina. Desde então, a professora tem se deparado com um boicote às suas aulas e os alunos da turma se organizam e lutam para conseguir cancelar as matrículas de todos eles na disciplina. No decorrer do processo de luta, chegou-se a cogitar a autogestão da disciplina por parte dos alunos. O Passa Palavra entrevistou alguns deles no dia 20 de Setembro.
Passa Palavra – Como começou esse processo de luta?
Estudantes em Luta – Começou, especificamente, essa questão do LAI, no primeiro dia de aula [deste semestre]. Só que ele já tinha um histórico. O LAI, ele é para ser o nosso estágio base, então seria a matéria que devia nos colocar em contato com a nossa prática profissional. Só que isso não ocorre. E, então, tem um histórico de falta de prática no curso e o LAI é um desses problemas, embora não seja ele sozinho. E tanto que, por exemplo, a gente tinha feito um “dia sem aulismo”, em que um dos problemas apontados foi o LAI. Nesse “dia sem aulismo”, todas as salas vieram para a faculdade, mas não foram para a aula. O centro acadêmico publicou um manifesto para os professores, informando que não haveria aula, só que cada sala teve autonomia, fizeram assembleias por si sós e concordaram com a proposta do centro acadêmico. E teve uma assembleia geral, foram levantados os problemas e o LAI foi muito falado… Que o professor faz o que quer com essa matéria. A matriz curricular, ou mesmo a proposta dele de várias atividades, não era respeitada e isso causa um incômodo, desde muito tempo. Aí, nesse LAI específico, o LAI II, chama Política e Ideologia, o foco seria esse [a prática profissional]. Então, no semestre passado, a gente já teve o LAI, esse mesmo LAI, com essa mesma professora, com esse mesmo tema. A gente viu, basicamente, um autor só, o que já é problemático, numa disciplina você ter apenas uma visão. E aí, além disso, as 24 horas de prática, que pela matriz curricular deveríamos ter, não existiram. Existiu um trabalho no final [do curso], que foi muito mal orientado e que a gente teve um contato bem precário [com a prática profissional] que seria o ideal do LAI. E não teve nenhuma articulação com a teoria. Foi um trabalho “jogado” [malfeito], no final do semestre. E, logo no começo do LAI do semestre passado, a gente já problematizou essa questão, o que ela [a professora] apresentava, que não cumpria com essa matriz curricular, e, desde esse começo, já começou um embate e desse embate ficou, no final do semestre, decidido que a gente, no segundo semestre, faria um LAI mais prático, mas esse acordo se perdeu.
Passa Palavra – O que seria esse LAI mais prático?
Estudantes em Luta – De acordo com a carga horária proposta pelo curso, o LAI deveria ter 24 horas de atividades práticas e 8 horas de atividades teóricas. E aí, por exemplo, trabalhos em campo, que seriam as atividades práticas. No LAI dos meninos do ano passado, com outro professor, eles, por exemplo, fizeram um trabalho na parada LGBT, com entrevistas durante a parada. Seria um exemplo. E logo na primeira aula, na apresentação do plano de curso da professora, ela já apresentou um plano de curso bastante teórico, da mesma forma que foi no primeiro semestre.
Passa Palavra – Com um só autor de referência?
Estudantes em Luta – Dessa vez não, mas com o mesmo autor predominando e um plano predominantemente teórico, já descumprindo o acordo, logo no plano. E aí houve uma tentativa de diálogo da turma para ver se, pelo menos, a gente conseguia, dentro daquele plano mesmo, implantar mais práticas, mas houve uma inflexibilidade total da professora, não aceitando nenhuma sugestão. E tudo foi um pouco agravado pela relação que se estabeleceu. No primeiro dia de aula, ela já chegou falando que conhecia histórias da nossa turma e não estava lá à toa. Porque, assim, a nossa turma já tem um histórico de conversar mesmo, de debater com o professor quando algo incomoda e, enfim, de tentar ser mais ativa no processo de formação. E isso acabou criando um certo estigma para a gente, então ela já chegou reafirmando isso e isso meio que prejudicou a relação. Por exemplo, várias vezes que a gente tentava dialogar… Ela é, supostamente, aberta ao diálogo, todos os professores aqui supostamente são abertos ao diálogo, mas quando confrontada… “Ah! Vocês têm um ímpeto revolucionário exacerbado!” Recaía numa diminuição do que nós estávamos falando e numa reafirmação da autoridade dela como professora.
Passa Palavra – Então, para vocês, a luta é para diminuir um pouco a ênfase na parte teórica e ter uma maior ênfase na parte prática do curso?
Estudantes em Luta – Na verdade, é uma luta para relacionar as duas, para ter um equilíbrio entre as duas, porque a gente aqui tem um desequilíbrio, um excesso de teoria e quase nada prático, e o que tem de prática não faz uma conexão com essa teoria. Então seria mais pelo equilíbrio das duas. E também pela relação aluno-professor. Eu acho que é uma certa resistência, em certa medida, contra o autoritarismo também e por um processo ativo dos estudantes na formação. É, em certa medida, uma luta pela nossa autonomia também. Por exemplo, é ridícula essa situação de a gente não ter autonomia para cancelar uma matéria, a sala inteira, você ter que pedir permissão para a professora para cancelar uma matéria, que foi o que radicalizou, entre aspas, a movimentação toda, porque, diante disso, diante dessa impossibilidade de diálogo com a professora, a gente decidiu que iria cancelar as matrículas dos alunos, não cancelar a disciplina mas cancelar a matrícula de cada aluno na disciplina. E houve todo um alvoroço, que a gente viu, dos professores, que se negaram a cancelar e todo um problema burocrático.
Passa Palavra – Como se deu essa decisão pelo cancelamento da disciplina? Foi feita uma reunião com toda a turma?
Estudantes em Luta – Sim, na verdade, foram feitas várias reuniões para saber qual seria o posicionamento da turma, para saber como conduzir mesmo [a luta], se a gente continuaria com a mesma professora e aí, de pronto, a turma, a maioria das pessoas, quase a maioria, na verdade, já não queria a mesma professora e aí foram feitas várias reuniões para decidir como que a gente ia proceder a partir disso, se a gente ia pedir a retirada da professora, se a gente ia pedir o cancelamento da disciplina ou se a gente ia pedir o cancelamento das matrículas… Um processo bastante democrático, todo mundo pôde se manifestar… Enfim, disso foi decidido que a gente cancelaria as matrículas. Só que, diante desse processo, durante uma reunião com o coordenador, ele falou que seria possível uma troca da professora. Então isso começou a ser cogitado e, de repente, teve um insight de um LAI autogerido, que seria possível a gente mesmo se organizar e fazer esse LAI autogerido. Só que, assim, precisaria de um professor para pôr o nome na disciplina, mas ninguém topou.
Passa Palavra – Quem teve o insight foram os alunos?
Estudantes em Luta – Sim. E daí foi uma ideia, particularmente, que a gente gostou bastante, mas que ela acabou não indo para a frente. A gente chegou a discutir meio que ela, assim, mais ou menos, em dois momentos, mas não chegou a aprofundar como seria esse LAI autogestionário, e até porque isso incomodou um tanto alguns professores, inclusive a própria professora, que afirmou que era uma negação à teoria nossa, uma mostra de que a gente não queria a teoria, e de um praticismo, como se a prática não fosse baseada na teoria. Mas aí, no curso do processo, acabou sendo abandonada a ideia, insistindo mesmo na matrícula, no cancelamento das nossas matrículas.
Passa Palavra – E como tem sido a reação dos professores a todo esse processo de luta e particularmente a essa reivindicação do cancelamento das matrículas?
Estudantes em Luta – Os professores ficaram divididos entre os que estão declaradamente contra e os que se dizem a favor dos estudantes mas não se manifestam, nos momentos em que eles podem se manifestam, ou pouquíssimos se manifestam. Mas, burocraticamente, digamos assim, na reunião do colegiado foi decidido… A votação dos professores foi para decidir se a professora continuaria ou não… Não, necessariamente, tocaram na questão das matrículas… E aí foi decidido que a professora continuaria e o posicionamento de muitos deles foi de que os alunos estariam sendo exagerados, estariam sendo imaturos… Enfim, depreciando bastante a atitude dos estudantes. Fala-se muito numa crise de autoridade, que a faculdade está enfrentando uma crise de autoridade e que… Muito essa preocupação mesmo, que a figura da autoridade está sendo desrespeitada… Chegaram a falar que nós, que não temos poder nenhum, autoridade nenhuma, estávamos sendo autoritários, que essa medida foi inflexível nossa, que nós não nos abrimos ao diálogo, porque na psicologia tem muito essa coisa do diálogo, como se o diálogo supostamente resolvesse tudo, e quando você rompe com isso você está sendo agressivo, tem muito esse discurso… Que a gente está sendo agressivo… Da preocupação com a professora, com a psique da professora… E muitos colocaram o nosso papel não como um papel desigual mas só diferente, que como nós temos, supostamente, papéis diferentes, a gente devia sentar e conversar eternamente, porque qualquer medida que rompe com esse diálogo é vista meio que como agressiva.
Passa Palavra – Já aconteceu de algum professor expor o programa da disciplina e vocês fazerem sugestões, objeções, tentarem debater, e o professor rever e reelaborar o programa, e tentar adequá-lo às demandas dos alunos?
Estudantes em Luta – Sim, inclusive este ano… Dois fizeram isso este ano, mais abertamente, digamos assim, porque houve uma apresentação do programa justamente para a gente elaborar as dúvidas. Tem uma base que teria que ser cumprida, mas com bastante interferência nossa.
Passa Palavra – E vocês entregaram um abaixo-assinado para o Pró-Reitor de Graduação da UFG. Como foi isso?
Estudantes em Luta – A gente elaborou um texto, relembrando os aspectos institucionais mesmo, do projeto pedagógico do curso, do regulamento geral da faculdade, da própria matriz curricular, e relembrando o quanto a proposta dela desrespeitava tudo isso (porque, se o LAI é para ser prático, a proposta dela não condizia com essa realidade) e colocando essa postura problemática dela em relação à gente. Só que aí ele falou que não podia resolver, a princípio, porque deveria passar pela coordenação [do curso], depois pelo conselho diretor [da Faculdade de Educação da UFG], e só então, numa negação, iria para lá. Não poderia ir para lá, se se desrespeitasse essas instâncias. E a gente está meio com desinteresse no conselho diretor, porque o que se mostrou era uma união dos professores, porque a categoria tem uns que discordam e uns que não se manifestam, que acabam (meio que uma relação de poder na faculdade também) não se manifestando e ficam, na prática, se posicionando contra.
Passa Palavra – E quais são as perspectivas para o futuro da luta?
Estudantes em Luta – Dentro da faculdade, não são nada boas. Nós temos que recorrer ao conselho diretor agora, segundo a orientação do coordenador, porque ele falou que não vai definir nada, sem passar pelo conselho diretor. Faz sentido, mas o conselho diretor é uma reunião de professores e a gente, normalmente, não é muito bem-vindo nessa reunião. A gente tem 15% dos votos, ou seja, poucos votos. E, assim, alguns professores já estão com uma opinião formada e, mesmo a gente chegando lá e tentando convencer eles com os melhores argumentos possíveis, eles não vão se posicionar a favor dos estudantes. Então está muito claro que, na burocracia, a gente sempre perde, se a gente for só fazer a luta dentro da burocracia. Então a questão é que a nossa única chance é mesmo essa organização e solidariedade dos outros estudantes, dos outros cursos, de outras turmas, de modo a pressionar e causar um desgaste para a faculdade, de modo que o desgaste menor seja cancelar a nossa matrícula. Assim, pressionar, fazer manifestação, publicitar o assunto… A gente vai tentar trazer também os outros centros acadêmicos para a reunião do conselho diretor…
Passa Palavra – E, entre os alunos da turma de vocês, como está a adesão ao movimento e o ânimo de luta?
Estudantes em Luta – A gente tem a problemática de quem tem bolsa e pode perder a bolsa, se reprovar por falta, mas quem não está envolvido nisso está realmente disposto a bombar por falta, se não conseguir cancelar a disciplina. Mas, mesmo os que podem perder a bolsa, eles estão sendo impedidos de continuar com essa luta por causa da bolsa, mas eles estão apoiando e, caso não haja prejuízo para a bolsa, eles vão continuar ao lado da gente. Para você ver o ridículo da situação… Os próprios professores estão impondo um prejuízo acadêmico para os alunos: perda de reprovação e perda de bolsa de pesquisa, de extensão etc. E, assim, também, no nosso meio, a galera está muito comovida com toda a situação. E, assim, apesar de todo mundo estar disposto, a gente está passando por um desgaste emocional muito pesado para a turma, um sofrimento psíquico muito pesado, em relação à professora e em relação aos estudantes, que está se manifestando claramente, diariamente. Mas, na prática, acabou que a gente está fazendo um LAI autogerido. Estamos aprendendo política por nós mesmos.
já estive em reunião de congregação de uma faculdade de psicologia onde uma professora aposentada, “ouvidora”, nos dizia que tínhamos que “cuidar” da pobre diretora da faculdade, que já tinha muito trabalho desgastante para fazer, (além de ter que escutar as infantilidades dos alunos revoltosos).
E depois se assustavam com o completo desrespeito que os alunos tinham pelas matérias que eles davam: muitas vezes os professores eram a própria encarnação do ridículo que pode ser a psicologia.