A quem pretende contestar a austeridade não se exige menos do que o respeito incondicional pelas regras do jogo, o repúdio da violência e a garantia de que se indignará de modo inequivocamente pacífico. Por Ricardo Noronha
1. A fisionomia dos dias tranquilos
No longínquo ano de 1962, a manifestação do 1.º de Maio em Lisboa transformou-se num motim que se espalhou da Rua da Madalena até às Escadinhas do Duque e dos Restauradores até ao Terreiro do Paço. Viviam-se tempos agitados desde a candidatura presidencial de Humberto Delgado, em 1958, à qual se haviam seguido manifestações e protestos, o início da guerra em Angola, diversas conspirações militares, uma sublevação gorada no quartel de Beja e a prisão de vários estudantes universitários no contexto da crise académica, estando prestes a iniciar-se a grande greve pelas oito horas de trabalho nos campos do Sul. Os alicerces do regime tremiam e a preparação da jornada de luta havia já produzido os seus mártires em Aljustrel, a 28 de Abril, onde dois mineiros foram mortos a tiro pela GNR. Não era por isso um 1.º de Maio qualquer, e os trabalhadores responderam à violência policial com menos medo e mais determinação do que o esperado. Organizada clandestinamente, como era hábito, a manifestação deveria partir do Rossio e percorrer a Baixa ao fim da tarde. Como também era hábito, a polícia procurou impedi-la quando se gritavam já palavras de ordem contra o regime e a Guerra Colonial, carregando sobre todos os que circulavam na zona, a começar pelos operários que chegavam ao Terreiro do Paço vindos da Margem Sul. Os confrontos prolongaram-se durante horas, com pedras removidas da calçada e postes de sinalização utilizados contra a polícia, que empregou gás lacrimogéneo e canhões de água com tinta azul, disparando sobre os manifestantes enquanto a GNR carregava a cavalo, provocando vários feridos e pelo menos um morto, Estêvão Giro, militante do PCP. Os feridos que recorreram aos hospitais acabaram nos calabouços do Governo Civil. Uma semana depois houve nova manifestação, comemorativa da vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, com o mesmo desenlace. O Diário de Lisboa do dia seguinte fazia o rescaldo dos «incidentes», como se de um temporal se tratasse: «Esta manhã a população de Lisboa, em boa ordem, como que esquecida já dos incidentes de ontem, entregou-se aos seus afazeres, não se notando qualquer vigilância especial nas ruas. A cidade retomou a fisionomia dos seus dias tranquilos, com as esplanadas, cafés e outros recintos públicos a funcionar normalmente. Nas ruas da Baixa, porém, algumas montras partidas lembravam aos transeuntes os incidentes de ontem, dos quais resultaram a morte de uma senhora e dez feridos.»
2. O camarada «Campos»
Um jovem dirigente do PCP, Francisco Martins Rodrigues, ou «Campos», como era conhecido na clandestinidade, discordou profundamente desse diagnóstico e considerou tudo aquilo revelador de que algo havia mudado na disposição das massas. Das suas dúvidas e inquietações, expressas por carta ao Comité Central, resultou a ruptura com a organização onde militava há mais de uma década, que o levara à prisão em Peniche e dali o ajudara a evadir-se, a cuja Comissão Executiva pertencia e no seio da qual encontrara vozes mais críticas do que a sua, nomeadamente nas células das zonas operárias de Lisboa e da Margem Sul. «Campos» ligou-se rapidamente a diversos outros militantes do PCP dispersos no exílio argelino e europeu, fundando em Paris o Comité Marxista Leninista Português (CMLP) e a Frente de Acção Popular (FAP). O primeiro escrito da nova corrente surgida à esquerda do PCP tinha um título elucidativo – «Luta armada e luta pacífica no nosso movimento» [1] – e debruçava-se fundamentalmente sobre a questão da violência, partindo da experiência do «ciclo de lutas de 1958-62». Considerando o salazarismo «um nível superior na táctica repressiva sobre as massas», caracterizado «por manter a luta de classes em limites controláveis» e por ser «mestre na arte das falsas concessões, na capacidade de manobra, no avanço e recuo conforme as circunstâncias», o texto passava a modernidade portuguesa a contrapelo, considerando o regime uma resposta às necessidades do desenvolvimento capitalista, desafiado agora pela «extrema agudização atingida pela luta de classes» e pela «radicalização revolucionária do proletariado e das grandes massas oprimidas». O paciente esforço de acumulação de forças que caracterizava a estratégia do PCP, combinando formas de luta legais, semilegais e ilegais em busca de uma aliança com a oposição liberal, fora ultrapassado pelo que «Campos» considerava ser o «centro de gravidade do movimento», os sectores sociais mais combativos e habitualmente mais reprimidos, que desejavam pegar em armas contra a ditadura. Os acontecimentos haviam colocado na ordem do dia uma insurreição popular capaz de «fazer saltar em pedaços todo o espírito de resignação, fatalismo e descrença que domina sempre os oprimidos» e «desencadear a violência comprimida no peito dos proletários e camponeses explorados, escarnecidos, batidos durante 40 anos». O texto relembrava tanto a violência fundadora na origem do Estado Novo como a violência quotidiana do seu aparelho repressivo, ao qual apenas a violência comprimida no peito dos proletários e camponeses poderia pôr cobro. Era necessário impedir que a cidade recuperasse a fisionomia dos dias tranquilos, com as esplanadas, cafés e outros recintos públicos a funcionar normalmente, um «normalmente» que abrigava no seu seio relações de exploração seculares, alimentando-se do espírito de resignação, fatalismo e descrença que dominava os oprimidos e que era necessário fazer saltar em pedaços. A insurreição concebida por «Campos» dirigia-se contra essa normalidade erguida sob um amontoado de destroços e cadáveres, temporariamente cristalizada num estado de excepção que a tradição dos oprimidos se habituara a considerar a regra. Os «incidentes» de Maio de 1962, com os seus mortos e feridos resumidos pelo Diário de Lisboa a uma linha, haviam dado vida a uma contra-história, uma narrativa que apresentava o presente como uma paz estabelecida à custa dos vencidos e em cujas entrelinhas se insinuava uma guerra civil latente. Que esta se apresentasse enquanto a ordem natural das coisas vinha ilustrar precisamente a profundidade da vitória de uns e da derrota dos outros.
As vicissitudes que acompanharam Francisco Martins Rodrigues e o CMLP ultrapassam o âmbito deste artigo, tal como a acidentada história das organizações combatentes que surgiram na sua esteira, antes e depois do 25 de Abril. As suas reflexões condensaram contudo alguns dos principais problemas políticos relacionados com a questão da violência, que se encontram a jusante de tudo o que separa uma ditadura de uma democracia e não se deixam resolver pela simples constatação de que certos direitos, liberdades e garantias estão inscritos na Constituição. Não se trata apenas de salientar que as bastonadas da polícia num regime ditatorial se distinguem a custo das que desfere a polícia num regime democrático; ou de relembrar que, apenas 20 anos após os «incidentes» de 1962, a Polícia de Segurança Pública (PSP) assassinou a tiro dois homens nas ruas do Porto, num outro 1.º de Maio de sangrenta memória. As questões suscitadas por «Campos» tornam-se tanto mais pertinentes se recordarmos as continuidades entre a Companhia Móvel da PSP (extinta após o 25 de Abril) e o Corpo de Intervenção que lhe veio suceder em 1976, ou o papel secular da Guarda Nacional Republicana na instauração e restauração dos direitos de propriedade na zona do latifúndio [2].
Os acontecimentos de 1962 relembram-nos o papel da violência num tempo longo que é, grosso modo, o do século XX português: recuando 50 anos, aproximamo-nos da implantação da República e da vaga de greves operárias e rurais que a acompanhou; avançando 50 anos é o nosso tempo que emerge, em toda a sua indeterminação e incerteza. Ao longo desses 100 anos não foram poucos os momentos de elevada mobilização e conflituosidade social em que a violência foi chamada a desempenhar um papel decisivo – a grande vaga revolucionária posterior à Primeira Guerra Mundial, os levantamentos contra a ditadura militar e o Estado Novo, o ciclo grevista da Segunda Guerra Mundial, os anos do marcelismo e do PREC, a primeira metade da década de 1980 e os anos finais do cavaquismo –, sugerindo uma cronologia capaz de ultrapassar a ascensão e queda dos regimes políticos para se ocupar das classes sociais e das relações de forças em que se joga o seu enfrentamento. Trata-se de uma história subterrânea, arredada para as notas de rodapé e feita por protagonistas anónimos, que nos fala de tempos e lugares diferentes, ligados por um fio vermelho que vai dos operários conserveiros de Setúbal em 1911 aos trabalhadores rurais alentejanos em 1962, dos trabalhadores da TAP reprimidos pelo COPCON em 1974 aos manifestantes que enfrentaram a polícia nas ruas do Porto em 1982. Feita de problemas, acontecimentos, sujeitos e representações que desafiam uma imagem pacificada do passado e nos confrontam com outro século XX português, ela desloca o seu olhar das peripécias dos governantes para as experiências e motivações dos governados, destacando as situações em que a violência foi evidente e em que a sua natureza de acontecimento histórico se apresentou incontornável e decisiva. Torna-se então possível pensar o funcionamento quotidiano de normas, comportamentos e relações sociais à luz dos procedimentos disciplinares e dos dispositivos de controlo que têm o aparelho repressivo do Estado como derradeiro suporte, questionando termos como «autoridade», «legitimidade», «proporcionalidade» ou «operacionalidade». Pensar a repressão não apenas (ou não tanto) naquilo que ela tem de excepcional e de excessivo – no sangue que faz correr, na dor que provoca, no encarceramento, deportação ou morte em que redunda –, mas antes na sua prática institucionalizada, na sua natureza de monopólio legítimo da violência, nos efeitos que produz ao nível dos comportamentos, na distinção que estabelece entre o que é permitido e o que é interdito, implica deslocá-la da margem para o centro e fazer dela um ângulo de observação privilegiado. A história dos subalternos é uma história de violência.
4. Legalidade e ilegalidade
E, finalmente, todas as questões inerentes ao poder e à violência, à legalidade e à ilegalidade, à guerra e à paz, podem ser subtraídas à sua coloração moral e retomadas enquanto elementos da luta de classes. Fazê-lo implica questionar uma narrativa que apresenta o Estado como a incontornável alternativa à guerra de todos contra todos, um vasto arsenal discursivo empenhado em garantir que os homens se convertem em lobos assim que escapam às malhas apertadas da soberania para atribuir ao Direito a incumbência de defendê-los de si próprios. Essa narrativa é tanto mais potente quanto – no que ao Estado e ao seu monopólio da violência legítima diz respeito – foi capaz de se tornar hegemónica e quase indisputada, como se os seus pressupostos fossem neutros e o seu horizonte inultrapassável. Olhando para a esfera político-partidária e institucional, da extrema-direita à extrema-esquerda, é lícito afirmar que a história chegou efectivamente ao fim, e categorias como «representação», «soberania» ou «cidadania» ocupam uma espécie de tecto da evolução política, para lá do qual se encontra apenas a barbárie. Isso é particularmente visível na condenação generalizada de todas as formas de violência que não a do Estado, na adesão incondicional à sua autoridade e na adesão ao pressuposto de que nele se encontra representado o interesse universal. É por isso que a multiplicação das formas de controlo e das leis de excepção – permitindo a máxima amplitude repressiva e fazendo de cada cidadão uma potencial ameaça – se vêem denunciadas enquanto negações do Direito, mesmo que tudo venha sugerir tratar-se de uma actualização necessária à gestão da correlação de forças que o Direito se encarrega de institucionalizar. Denunciar procedimentos policiais que se encontram inscritos nos imperativos estratégicos da governabilidade enquanto «abusos», ou até «ilegalidades», é a máxima evidência de que os cálculos estratégicos se viram substituídos por juízos morais. É a impotência que desta forma se indigna e exige ser melhor governada.
E contudo, se alguma coisa nos revelou o último ano e meio é que as nossas opiniões, as nossas vontades, as nossas ideias, os nossos argumentos, os nossos programas e propostas, os magníficos documentos que elaboramos, as alternativas que se debatem, tudo isso, em suma, que compõe o jogo democrático feito de negociações, diálogo, cedências e compromissos foi suspenso, confiscado, anulado e enfiado na gaveta do «custe o que custar, não há alternativa, o melhor povo do mundo aguenta, aguenta». No seu lugar surgiu um interminável monólogo sussurrado nas televisões e que tem como função banalizar a infinita violência da austeridade, o seu cortejo de crianças que desfalecem nas escolas, idosos alimentados a Nestum, doentes sem remédios, famílias a viver na rua, desempregados sem subsídio, assalariados empobrecidos e comerciantes arruinados. Para que tudo isso se torne aceitável, é necessário que a ordem reine nas ruas, que todos se sintam potenciais alvos, que a violência do Estado seja um conjunto de «intervenções» sobre uma sucessão de «incidentes» para repor a «normalidade». A quem pretende contestar a austeridade não se exige menos do que o respeito incondicional pelas regras do jogo, o repúdio da violência e a garantia de que se indignará de modo inequivocamente pacífico. Esse imperativo revela-se bastante claro nos seus objectivos, uma vez que só podemos falar propriamente de pacifismo se este corresponder à escolha de uma opção entre muitas outras, se a guerra for uma possibilidade real, pois de outra forma o pacifismo é apenas um eufemismo para traduzir obediência e subordinação ao monopólio da violência por parte do Estado, aquele mesmo espírito de resignação, fatalismo e descrença de que nos falava Francisco Martins Rodrigues há quase 50 anos. É porque desafia a violência organizada, sem a qual seriam impossíveis as relações sociais de exploração e dominação, que a violência que tem feito nas ruas a sua tímida aparição não pode ser menos do que inaceitável e quase escandalosa. Ela ultrapassa as fronteiras do que é lícito, ao questionar a correlação de forças sobre a qual se ergue a ordem do Estado e da acumulação capitalista, interrompendo o tempo homogéneo e vazio do progresso para revelar a fragilidade do que parecia sólido, identificando a evidência da guerra sob a fisionomia dos dias tranquilos, reabrindo uma história que se pretendia chegada ao fim.
Notas:
[1] Rodrigues, Francisco Martins (1974), Luta armada e luta pacífica no nosso movimento, Lisboa: Unidade Popular.
[2] A esse respeito, cf. Cerezales, Diego Palácios (2011), Portugal à coronhada – Protesto popular e ordem pública nos séculos XIX e XX, Lisboa: Tinta-da-China.
O presente artigo é o primeiro de três artigos inicialmente publicados no dossier «Violência» do n.º 3 da revista Imprópria. Editada pelo coletivo português Unipop, a Imprópria é uma publicação em papel dedicada à pesquisa e reflexão na área do pensamento crítico.