27th May 1963: American Heavyweight boxer Cassius Clay (later Muhammad Ali) lying on his hotel bed in London. He holds up five fingers in a prediction of how many rounds it will take him to knock out British boxer Henry Cooper. (Photo by Len Trievnor/Express/Getty Images)

Não é de se estranhar que precisamente no período eleitoral ocorra o maior esvaziamento da massa crítica à esquerda, com a consequente adesão a alarmismos e polarizações do campo político partidário. Por Passa Palavra

O grande problema para as lutas sociais durante os períodos eleitorais é, sem dúvida alguma, o seu esvaziamento. Nesses períodos, os movimentos sociais saem de cena e o espaço das disputas políticas é preenchido por outras organizações e interesses.

Pode-se considerar cinco motivos principais para esse esvaziamento: 1) a necessidade dos militantes envolvidos em campanhas político-partidárias levarem adiante seus projetos de disputa/conquista do Estado, o que, diante da impossibilidade de estarem em todos os espaços ao mesmo tempo, leva-os a optar pelos espaços que consideram mais importantes naquele momento; 2) boa parte dos envolvidos nas lutas sociais se vê numa situação em que sua perspectiva fica secundarizada em função dos interesses envolvidos no pleito, ou então se vê numa situação onde corre o risco de ter sua luta instrumentalizada, à direita ou à esquerda, por partidos políticos; 3) o esvaziamento operado por aqueles que, por não concordarem com a existência do processo eleitoral, deixam os espaços dos movimentos sociais para organizar campanhas abstencionistas ou de voto nulo; 4) no período eleitoral, a burocracia governamental e os políticos ficam impedidos de negociarem com os movimentos sociais, seja por motivos legais, seja pela possibilidade de não se perpetuarem nos cargos, paralisando aqueles que têm por estratégia principal obter ganhos através do jogo institucional; e 5) o trabalho em campanhas eleitorais aparece como uma possibilidade de ganhos materiais imediatos para militantes de uma base social precarizada, mesmo para aqueles que não assumem compromissos ideológicos com os candidatos que os contratam.

Também seria possível considerar o esvaziamento do ponto de vista dos posicionamentos políticos em jogo. A adesão à lógica de um sistema político que anula a iniciativa direta dos movimentos em benefício de um corpo dirigente tem efeitos diretos sobre a moral e a consciência dos próprios movimentos sociais. Os movimentos têm por base uma negação prática do sistema representativo, pois atuam na organização e mobilização direta de determinados setores da sociedade em torno de pautas concretas e tangíveis. Mas essa é outra discussão, que extrapola o âmbito deste artigo. Vamos privilegiar, aqui, a discussão em torno das condições materiais de luta, deixando a análise da mediação entre a consciência dos lutadores e as posições ideológicas em jogo para outra ocasião.

I. A disputa ideológica dos militantes envolvidos em campanhas político-partidárias

Os mais lúcidos e bem intencionados enquadrados nesse ponto argumentam que o mais importante seria a disputa ideológica viabilizada pela disputa eleitoral. Ela possibilitaria que um maior número de pessoas tivesse contato com perspectivas mais à esquerda e refletisse sobre as desvantagens de viver numa organização social capitalista, algo estrategicamente interessante para a esquerda como um todo. No entanto, essa argumentação parece desconsiderar qualquer aporte materialista para a abordagem da questão.

Ao considerar o período eleitoral como o momento privilegiado para a prática da disputa ideológica em detrimento dos espaços em que se desenvolvem as lutas sociais, este grupo de militantes se esquece do domínio ideológico exercido pelas classes dominantes sobre os mais variados espaços sociais onde é gestada a opinião pública. Tais espaços são concebidos e oferecidos como forma de dar vazão a opiniões e posicionamentos políticos dissidentes. Mas são as classes dominantes quem têm os meios necessários para contratar contra-argumentadores e depois propagá-los o quanto for necessário para abafar as vozes dos opositores.

Se isso já não fosse grave o bastante, esses militantes creem implicitamente no princípio de que a disputa meramente ideológica seria capaz de mudar a opinião de um público mais amplo. Ora, deveria fazer parte do bê-a-bá de toda a militância de esquerda a noção de que as opiniões mudam apenas quando há meios sociais que permitam que opiniões divergentes se desenvolvam. Atualmente isso é viabilizado pelos movimentos que conseguem de alguma forma organizar as fissuras ideológicas que se verificam na consciência do público em geral, provocadas pelo descontentamento ou desilusão com determinados aspectos das condições de vida.

II. A pressão sobre os candidatos

O segundo ponto é um problema grave, além de ocorrer recorrentemente. Ao pretender utilizar o momento eleitoral para fazer pressão sobre os futuros gestores da máquina estatal, o risco de ser associado a uma legenda ou de ser acusado de estar fazendo o jogo dos opositores de determinado candidato é enorme. No entanto, é inegável que esse é um momento em que a maioria dos políticos não deseja passar a imagem de intransigente com os dissidentes nem quer ser associado a burburinhos que fogem ao foco que pretende dar às suas campanhas. O período de disputa entre futuros gestores do Estado evidencia uma situação de fragilidade desses políticos. Como o movimento social pode sair desse impasse?

O mais adequado parece ser o caminho de não poupar nenhum dos candidatos das pressões, procurando evidenciar que sua preocupação é com a pauta do movimento e não com a disputa eleitoral. Evidentemente, alguns candidatos se sairão melhor do que outros, por conta de suas afinidades com esta ou aquela causa. Porém, esse é um problema que não deveria dizer respeito ao movimento. Se, por fim, a vitória seja de um candidato mais permeável às pressões do movimento, ótimo, mais conveniente. Caso contrário, o importante é não perder de vista o fato de que é na mobilização do seu corpo social que reside a força reivindicativa dos movimentos, chave de mudanças sociais. Os movimentos são, em sua estrutura, parte das forças produtivas da sociedade que em determinado momento resolve lutar ativamente pela mudança da situação social em que estão inseridos, deixando de ser simples peça útil na lógica de exploração.

Por outro lado, o período de eleições faz crescer — e com toda razão! — a desconfiança geral da população em relação a qualquer atividade política. Porém, mesmo os movimentos sociais autônomos encontram aí um entrave para desenvolver suas ações. Qualquer protesto que se faz nessa época, por exemplo, é logo tachado de ter “pretexto eleitoral”. As iniciativas de organização de luta nas periferias são desacreditadas, e se acredita que os movimentos tem ligação com candidatos. Propostas de mobilização são confundidas, assim, com promessas eleitorais.

III. O esvaziamento dos espaços dos movimentos sociais

O terceiro aspecto diz respeito a algumas modalidades de campanha pelo voto nulo que vêm ganhando relativo espaço na militância de extrema-esquerda nos últimos tempos. Parte desses grupos entende que o momento eleitoral é de fragilidade dos gestores e aspirantes a gestores do Estado e passa à ofensiva contra o próprio sistema eleitoral, denunciando-o como farsa. Farsa porque mesmo os partidos políticos de esquerda estariam alinhados àqueles que pretendem gerir a máquina estatal, que, por definição, organiza as relações capitalistas de produção, seja viabilizando a exploração, seja contendo os excessos autodestrutivos da dinâmica da mais-valia.

No entanto, alguns desses grupos acabam por aderir à própria lógica que criticam e, ao invés de aproveitarem o momento para o avanço das pautas concretas que fortalecem o corpo social dos movimentos sociais, acabam por esvaziar os espaços de luta, em prol da disputa ideológica em torno do significado do processo eleitoral. Não é que o ponto de partida crítico esteja completamente equivocado, tampouco que todos os que optam pelo voto nulo como estratégia cometam esse erro, mas muitas organizações acabam por reproduzir a mesma lógica de apassivamento das lutas sociais ao abandonarem os espaços de luta, isolando esses espaços do restante do campo político.

IV. Preparação para o momento pós-eleitoral

O quarto motivo afeta com maior força os movimentos em estágio mais avançado de burocratização, geralmente aqueles que já não têm mais base social e se resumem a um capital simbólico acumulado por lutas passadas, porém em franca depreciação. Sem outras estratégias de pressão contra os gestores e geralmente já totalmente inseridos no jogo partidário, o período eleitoral se resume a apostas em futuros vencedores e renegociações preparando o momento pós-eleitoral. Diferentemente dos três primeiros motivos, não há verniz ideológico em jogo, somente fisiologismo. Entretanto é o momento do tudo ou nada, pois, pertencentes a movimentos em decadência, os seus dirigentes têm nessa janela de oportunidade a chance de se embricarem de vez na burocracia estatal. Suas habilidades gestoriais desenvolvidas no período de ascensão das lutas são postas no currículo e, se não for agora, nada garante que em momentos futuros haja alguém interessado em usar da sigla novamente.

V. Eleições e a exploração da mais-valia

Por fim, não podemos deixar de considerar que boa parte das lutas sociais são organizadas e disseminadas por um setor mais precarizado dos trabalhadores. Um setor que se caracteriza pela instabilidade e incerteza das fontes de renda, mesmo em períodos de baixa taxa de desemprego, como atualmente. O processo eleitoral, por outro lado, exige a cada ano um volume maior de recursos para garantir a eleição ou reeleição dos candidatos da ordem. Esses candidatos atuam em várias frentes para angariar os votos necessários, sendo que a maior parte dos eleitores se encontra — e não poderia ser diferente — nos extratos sociais dos militantes do circuito da mais-valia absoluta. Esses militantes, por dominarem as tecnologias de mobilização nos seus bairros e locais de trabalho, por terem desenvolvido o poder da argumentação e da disputa política, por conhecerem o território onde se localizam e por terem uma vasta rede de contatos, se convertem em trabalhadores cobiçados pelos comitês políticos. Assim, deixam de ser trabalhadores sub-qualificados e, somente neste período e somente para esta atividade laboral, passam para o circuito da mais-valia relativa. O período eleitoral dura entre 2 e 3 meses, exigindo uma carga de trabalho intensa e extensa, que em geral impede que esses militantes — agora atuando como trabalhadores da política partidária — sigam com seus compromissos de luta. Contudo, não só os militantes mais qualificados são contratados. Há trabalho para as mais diversas tarefas: panfletar, distribuir cavaletes, segurar faixas, deflagrar bandeiras, trabalhos de motoristas e outros tantos. Assim o trabalho eleitoral acaba por também empregar outro tipo de pessoas ligadas às lutas sociais.

Aqui não estamos falando das lideranças comunitárias já cooptadas. Essas lideranças estão o tempo todo, seja eleições ou não, negociando sua capacidade de mobilização. Alguns políticos chegam a tabelar o valor para lideranças desse tipo e aqueles que oferecem mais acabam levando o apoio. Independentemente de estes fazerem lutas ou não em períodos não eleitorais, eles já mercantilizaram por completo sua atuação política e transformam em dinheiro os votos que conseguem somar. Precisam monopolizar o território ou oligopolizá-lo, através de hierarquias relativamente estáveis criadas com outras lideranças do mesmo tipo. É nesse aspecto que mais se diferenciam daqueles que animam as lutas sociais. Apesar do limite tênue que separa esse tipo de liderança do militante comprometido com as lutas, e da passagem para o outro lado ser frequente, o militante comprometido é, de fato, um trabalhador submetido a uma relação de trabalho que não lhe permite controle sobre o processo produtivo, tornando-se descartável assim que é entregue a mercadoria. Enquanto a eleição o desmobiliza, retirando-o de seu trabalho de base cotidiano, para a liderança cooptada a eleição é o clímax da sua atividade.

***

Por todos esses motivos, não é de se estranhar que precisamente no período eleitoral ocorra o maior esvaziamento da massa crítica à esquerda, com a consequente adesão a alarmismos e polarizações do campo político partidário. E não é raro que, nessa tomada de posição na arena eleitoral, abandone-se qualquer tipo de coerência em relação ao período anterior, aderindo ao “jogo sujo” dos insultos e das críticas moralistas. Se fôssemos ser consequentes, esse seria o momento de botar todas as redes de solidariedade e capacidade material em prol do avanço das lutas sociais. No entanto, é o avesso disso que ocorre e aqueles que insistem em lutar nesse período são relegados a uma situação de maior vulnerabilidade, já que ficam abandonados à direita pelos companheiros e apoiadores. A consequência óbvia é que o processo eleitoral e sua fisiologia própria terminam ocupando todos os espaços sociais onde se faz política. Essa situação, porém, não é mera consequência da disposição da sociedade nos períodos eleitorais, mas algo alimentado e reforçado mesmo por aqueles que se pretendem seus críticos, uma situação que deveria forçar a reflexão de todos os que acreditam estar alinhados com as lutas sociais.

Por outro lado, se há um esvaziamento no período eleitoral, nesse vazio há uma oportunidade. Conforme as organizações burocráticas voltam seus esforços ao jogo eleitoral, deixam um possível terreno para a construção de lutas autônomas. Se forem habilidosos, os movimentos podem reverter o cenário de desmobilização a seu favor. Se a eleição aflora entre grande parte da população uma rejeição ao sistema político, está aí uma brecha para os movimentos de base não só desenvolverem suas lutas, como também aprofundarem seu debate. Criticando abertamente a lógica eleitoral e a democracia burguesa, podem envolver em lutas concretas trabalhadores desconfiados da política, passando do desânimo à ação. Aliás, não estaria aí — muito mais do que nos shows eleitorais — uma estratégia capaz de criar laços de solidariedade entre os trabalhadores mais precarizados e, assim, solapar a base material do tão alardeado conservadorismo?

Imagens do pugilista Muhammad Ali

4 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns camaradas pelo texto!

    Mais uma reflexão que só este espaço tem a ousadia pra fazer. Não é a primeira vez que o PP compartilha com seus leitores uma discussão tão necessária, responsável e complexa como esta. Recupero também o texto http://passapalavra.info/2010/10/30891

    Abraços,

    Simone

  2. Ainda que não me pareça ser o comunitarismo libertário a melhor das resposta para os problemas atuais, se trata de um belo texto para comparar com o que se anda pensando na Grécia sobre eleições e movimentos sociais.

    https://www.diagonalperiodico.net/la-plaza/24233-movimientos-sociales-frente-al-ascenso-syriza-y-la-izquierda-parlamentaria.html#comments

    “En la mitología de izquierdas moderna, el estado es visto implícitamente como la última frontera de la política “real”, opuesto al creciente poder social del capital; de este modo, la crítica de la esencia burguesa de la naturaleza del poder estatal puede ser ignorada. Esta concepción del estado, sostenida por la mayoría de los partidos de izquierda contemporáneos, se está quedando rezagado tras, incluso, enfoques anteriores de la izquierda socialdemócrata, que al menos conservaban una mínima conexión con la meta estratégica de la transformación social.”

  3. RELEITURA(S)
    Sartre: “Para nós a verdade torna-se, ela ‘é’ e ‘será’ devinda. É uma totalização que se totaliza sem cessar; os fatos particulares nada significam, não são nem verdadeiros nem falsos enquanto não forem referidos pela mediação de diferentes totalidades parciais à totalização em curso.” (Questão de Método [1960/1987], p. 124, as aspas simples substituem itálicos do autor).

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