Por Passa Palavra
Na última semana, os moradores dos bairros da Barragem, Bosque do Sol, Jusa e Marsilac, no extremo sul da cidade de São Paulo, experimentaram uma rotina diferente. Se ali a jornada ao trabalho começa com longas caminhadas – por vezes, de quilômetros – ainda na madrugada escura, desta vez a população teve, por um dia, a possibilidade de percorrer esse trajeto de ônibus.
Mas não em um ônibus regular, integrado ao sistema de transporte público do município. Esse tipo de serviço, aliás, nunca existiu na região, e continua fazendo falta. Para denunciar essa situação, moradores fretaram um ônibus com o dinheiro arrecadado em rifas, festas e bingos nas comunidades e organizaram “linhas populares” autônomas que operaram gratuitamente ao longo de três dias em seus bairros.
Essa luta não começou agora. Faz anos que essas comunidades – cuja população soma mais de 15 mil pessoas – reivindicam a criação de novas linhas de ônibus. Nem mesmo a ideia da linha popular é nova: em março de 2014, moradores da Ponte Seca e do Mambu, no Marsilac, já haviam organizado uma linha que operara por um dia como forma de protesto. Sem qualquer resposta do poder público, um grupo se acorrentou no saguão da Prefeitura e saiu com a promessa de que a linha seria implementada em vinte dias. O prazo passou e nada mudou.
De então em diante, o que o movimento fez foi se expandir a outros bairros do extremo sul que enfrentavam o mesmo problema, como os da Barragem, Bosque do Sol e Jusa, visando construir uma luta unificada – que culminou num protesto em frente à Subprefeitura de Parelheiros no início de 2015. Esse ato conquistou uma rodada de reuniões em cada uma das comunidades com funcionários da SPTrans [empresa pública que administra o transporte coletivo], Secretaria do Verde e Meio Ambiente, APA (Área de Proteção Ambiental) e Subprefeitura, nas quais foram obtidos pareceres e autorizações técnicas. Mas os próprios funcionários admitiram: “tecnicamente, nada impede que as linhas rodem, o problema é político”.
Se o problema é político, os moradores resolveram tratar diretamente com quem tinha o poder político para decidir: na manhã do dia 27 de abril, interromperam uma aula sobre “direito à cidade” ministrada pelo prefeito Fernando Haddad na pós-graduação do curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP). Pego de surpresa, o prefeito ficou nervoso e tentou escapar da sala, mas os moradores o seguiram pelo corredor e conseguiram que ele se comprometesse a participar de uma reunião na região nos dias 16 ou 23 de maio – confirmaria a data no dia seguinte, após olhar a agenda:
Duas semanas depois e sem nenhuma confirmação de Haddad, os moradores organizam essa nova rodada de linhas populares, cada dia em um bairro. O recado é claro: “se o governo não faz, o povo vai fazer”.
A jornada de mobilizações teve início na quarta-feira, quando o ônibus operou em dois itinerários carentes de linhas na região da Barragem. Pela madrugada, fez o trajeto circular entre o ponto final da linha mantida pela SPTrans e os bairros Jardim Paulista, Cidade Luz e Santo Antônio. Mais tarde, seguiu também em direção à divisa com o município de São Bernardo do Campo, passando pelo Jardim Vera Cruz e a Estrada do Curucutu. Nos dois itinerários, chamou atenção a situação extremamente precária das vias que, sem pavimentação e com buracos, dificultava e por vezes quase impossibilitava o trânsito do ônibus.
Na quinta-feira, a linha popular circulou entre o Parque Oriente, Estrada do Jusa e Bosque do Sol – este último, um bairro mais adensado, urbanizado e próximo ao centro de Parelheiros, o que fez com que a mobilização chamasse atenção de gente de outras partes da região, tornando-se tema nas redes sociais locais. Após rodar a manhã inteira, a linha popular seguiu em direção à Subprefeitura de Parelheiros, como forma de pressão.
Por fim, fez ainda uma viagem até o Jardim da União, ocupação popular próxima ao Terminal Varginha, que além de carecer também de uma linha de ônibus, enfrenta hoje uma ameaça de despejo. Com esse gesto simbólico de apoio, o movimento marcou a importância da aproximação entre as diferentes lutas, seja transporte ou moradia, travadas pela população trabalhadora das periferias.
A semana de lutas se encerrou na sexta-feira, quando a linha operou mais uma vez, depois de um ano da experiência inicial, na Estrada da Ponte Seca, no Marsilac. Ao passo que é visível a ampliação e fortalecimento da mobilização popular em torno da pauta no extremo sul desde então, é impressionante também o descaso por parte do governo: nenhuma providência foi tomada em relação à situações graves que já haviam sido denunciadas já em 2014, como a ponte danificada sobre o Rio Mambu, que dificulta o acesso de um bairro inteiro à Unidade Básica de Saúde e ao centro de São Paulo.
As mobilizações chegam ao fim ainda sem que Haddad tenha confirmado a data da reunião que prometera. E, apesar da repercussão considerável que as linhas populares tiveram na imprensa – chegando a ser exibidas em noticiários de rede nacional –, as declarações do poder público nessas reportagens são todas rebaixadas, ignorando deliberadamente questões básicas que já haviam sido superadas em negociações com o movimento. A SPTrans, por exemplo, tem dado a resposta padrão de que “os bairros estão em Área de Proteção Ambiental, e por isso as linhas precisam de autorização do Verde”. Mas não só algumas linhas (como a Mambu – Marsilac, por exemplo) já foram aprovadas pelos gestores da APA, como outras sequer estão dentro de área de proteção (é o caso da Pq. Oriente – Term. Varginha). Já o Subprefeito de Parelheiros, Nilton Oliveira, afirmou em entrevista ao site UOL que os pareceres técnicos foram todos negativos, quando de fato a SPTrans já elaborou projetos para quase todos os itinerários reivindicados, só faltando as obras de melhoria das vias.
Agora, passadas as mobilizações, a vida volta à rotina nos bairros do extremo sul de São Paulo. Sem linhas populares nem linhas oficiais, os moradores voltam a precisar percorrer longas distâncias a pé em suas jornadas diárias. Diante de um governo municipal que parece apostar na enrolação sistemática como tática para esgotar os ânimos da luta popular pelo cansaço, ao mesmo tempo em que não se consegue enxergar no horizonte uma possibilidade de resolver o problema sem depender de se fazer exigências ao Estado – isto é, em que empreitadas autônomas como as linhas populares não consegue ultrapassar um caráter temporário, de denúncia, e se firmar como solução permanente – que caminho resta aos moradores para conquistar seu transporte?
Fotos: Luta do Transporte no Extremo Sul e Olegário A. Filho/Vereda Estreira.
Excelente matéria.