Na transição socialista o direito precisará ser simultaneamente usado (como arma) e negado (como armadilha, como alvo a ser superado juntamente com a ordem do capital). Por Diego Polese

No último artigo, vimos que as estruturas normativas necessárias para a reprodução do sociometabolismo controlado pela autogestão dos produtores associados devem se solidificar de maneira contrária à normatividade jurídico-política da superestrutura erguida pelo Estado e pelo capital para regular as contradições da vida social. Isso posto, devemos tecer breves explicações acerca da importância da normatividade erigida por meio dos costumes, tradições e demais formas superestruturais elegidas pelos produtores livremente associados. Quanto à dialética entre normatividade, costumes e leis expressas, Mészáros elabora o seguinte quadro sintético:

1. Nenhuma sociedade pode regular a si mesma de modo duradouro somente pelo poder da ‘lei expressa’;
2. Há uma ‘via de mão dupla’ entre lei e tradição na medida em que uma pode reforçar a outra; ou assumir algumas funções da outra quando esta falha em exercê-las de modo efetivo; ou dar início a algumas novas funções e depois atribuí-las à outra etc.;
3. Quanto mais bem-sucedidamente abrangentes forem os costumes e a tradição, menos se necessitará a regulação via lei explícita ou codificada;
4. O quadro amplo da lei em si é poderosamente condicionado pelo sistema existente de costumes e tradição (isto é, nenhum sistema legal pode se opor diametralmente ao sistema estabelecido de costumes e tradição sem perder sua própria credibilidade e eficácia);
5. Grandes mudanças socioeconômicas dão início a transformações correspondentes na tradição e na lei da mesma maneira, mas o efetivo desdobramento e implementação de tais mudanças podem ser atrasados por um período de tempo considerável pelo poder de inércia da tradição;
6. Por definição, a lei pode responder mais rapidamente que a tradição às determinações socioeconômicas (e, em geral, à necessidade de uma mudança social significativa); contudo, devido às indeterminações mencionadas no ponto (4), o ritmo em que a lei pode efetivamente responder aos requisitos da grande mudança social não pode ignorar as limitações (e potencialidades) da tradição em si como uma parte integrante da transformação geral;
7. Em última análise, na relação dialética entre lei e tradição, esta é estruturalmente mais importante, mesmo que a rigor, estritamente, a lei tenha assumido a posição dominante no curso da história.
Essa consideração vital com respeito à inversão histórica alienante da primazia estrutural objetiva da tradição sobre a superestrutura jurídica e política resulta no fato de que a transcendência progressiva da lei expressa – concebida por Marx de modo a eliminar sua dimensão negativa, repressiva: inseparável da lei e do ‘Staatswesen’ independentemente articulados enquanto tais – é concebível somente se a sociedade puder transferir todas as funções reguladoras da lei expressa à ‘autoatividade’ (isto é, os ‘costumes e tradição’ conscientes ou espontâneos) do corpo social em si. (2012, p. 94/95)

Carlos Cruz DiezSegundo Mészáros, portanto, o direito costumeiro e a tradição devem ser os reguladores da formação social organizada por meio de comunas, uma vez que somente eles podem possuir o caráter de expressão da autoatividade dos produtores associados e transcender assim – progressivamente – a forma jurídica concreta e legal estabelecida pela estrutura alienante do capital.

Os costumes, propriamente ditos, caracterizam-se como práticas geradas espontaneamente pelas forças sociais, decorrente da necessidade social de estabelecer práticas resolutórias dos problemas e dificuldades que eventualmente surgem no decorrer da vida social. Em termos socialistas, os “costumes” são um conjunto de normas de conduta social, criadas espontaneamente pela associação consciente dos produtores com o potencial de gerar a certeza de sua obrigatoriamente por todos os membros da sociedade. Quanto à tradição, esta se constitui como um conjunto de práticas de natureza simbólica que têm como objetivo incorporar determinados valores e comportamentos definidos por meio da repetição em um processo de continuidade em relação ao passado. Tanto as tradições quanto os costumes tem o condão de estabelecer a coesão social, estabelecer ou legitimar instituições, conferir formas de socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento.

Obra de Fransisco Sobrino: “transformation-instable-juxtaposition-superposition”

Assim, como em qualquer período revolucionário, a sociedade socialista como um todo também está condenada a formar novas redes de convenções, costumes, tradições, hábitos e rotinas, com a ressalva de que a nova normatividade correspondente será gerada e garantida conscientemente pelas massas, por meio dos seus órgãos cunhados autonomamente e com mediações substancialmente democráticas. Portanto, os rumos a serem seguidos deverão ser diversos dos que foram tomados nas sociedades assentadas em classes, pelo simples fato de que a nova sociedade deverá cunhar métodos de convencimento substancialmente diversos dos utilizados pelo sistema do capital, no sentido de não haver qualquer imposição hierárquica estruturalmente assegurada por uma objetividade normativa alienante, bem como pela razão de que a correspondência aos interesses materiais e imateriais serão estabelecidos autonomamente pelas mais diversas comunas.

O desafio é gigante, em contrapartida, em razão do fato de que as relações sociais comunistas crescerão a partir das socialistas, as quais serão inevitavelmente defendidas a todo custo em razão da força de inércia da tradição, ou seja, da tendência objetiva permanente de apassivação do processo de radicalização. O fenecimento das relações sociais novas, com o desenvolvimento autogestionário da sociedade, e a correspondente gênese de um padrão de normatividade radicalmente diferente do estabelecido pelo capital, portanto, é um dos fardos que deveremos superar para enfim derrotar as condições exploratórias do homem pelo homem. Equivalentemente, não devemos olvidar que o desenvolvimento das regras fundamentais da organização social comunista exigirá sua constante remodelação e periódicas modificações pelos órgãos de autogestão, tendo em conta o estágio de desenvolvimento das forças produtivas, os avanços da ciência e da técnica e os mais diversos fatores sociais.

A autogestão da sociedade, portanto, é o único meio que proporciona a tomada de todas as decisões fundamentais, soberana e oniscientemente, ou seja, o único órgão em que as condições, meios e objetivos da produção e reprodução social serão traçados por órgãos horizontais feitos pela classe trabalhadora em rumo de sua auto-superação. Nesse sentido, afirmam Yvon Bourdet e Alain Guillerm: “A autogestão […] só pode ser realizada numa e por uma revolução radical, que transforme completamente a sociedade em todos os planos, dialecticamente ligados, da economia, da política e da vida social.” (1976, p. 55).
Resumindo: a retomada do controle sociometabólico somente será realizada por meio da associação substancialmente igualitária das comunas autogeridas e autorreguladas, de acordo planos elaborados conjuntamente.

Carlos Cruz Diez

A nosso ver somente por meio desse complicado, problemático e árduo processo será possível

[…] a progressiva reaquisição das forças alienadas de decisão política pelos indivíduos na transição para a genuína sociedade socialista. Sem a reaquisição desses poderes, nem é imaginável o novo modo de controle político da sociedade como um todo por seus indivíduos, nem muito menos a operação cotidiana não-contraditória e, portanto, coesiva / planejável das unidades produtiva e distributiva particulares pela autoadministração dos seus produtores associados. (MÉSZÁROS, 2002, p. 849)

Assim somente quando a humanidade conseguir superar toda a lógica totalitária e exploratória do capital, readquirindo os poderes decisórios do rumo da produção material de sua própria vida e extirpando as mediações alienadas e concomitantemente alienantes cunhadas pelas relações sociais capitalistas, é que será possível a superação da esfera jurídica. Somente deste modo “o Direito” poderá estabelecer feições realmente humanizantes, já que a autogestão consciente da humanidade pressupõe a necessidade do estabelecimento de relações substancialmente igualitárias, as quais necessitam ser reguladas por meio de normas práticas, costumeiras e tradicionalmente estabelecidas por órgãos radicalmente democráticos. Superar o sistema do capital e suas mediações é uma empreitada que exige a profunda reestruturação de toda a vida em sociedade tal qual está ordenada há séculos. Nesse sentido, os problemas reais a serem superados na transição histórica para uma formação social socialista não podem ser adequadamente compreendidos se a classe trabalhadora não tiver clareza quanto ao alvo a ser atacado. O capital, o Estado e o próprio direito precisam ser conscientemente enfrentados, sob pena da transição para além do capital fracassar completamente. O papel da esfera jurídica, nesse processo de transição de modo de produção, ainda é um enigma insuficientemente revelado. Na transição socialista o direito precisará ser simultaneamente usado (como arma) e negado (como armadilha, como alvo a ser superado juntamente com a ordem do capital). Somente depois do período de transição poderemos vislumbrar na história as belas palavras de Eduardo Novoa Monreal:

Transformado, fundamentalmente, nessa fase, o modo de produção, obter-se-á a plena realização da personalidade humana. Terminará o sentido odioso e escravizante do trabalho, e o homem alcançará a perfeição na função essencial de animal produtor, expressando-se como ser livre, criador, dedicando-se a múltiplas atividades pela satisfação estética que, com isso, obterá. Recobrada toda a estatura humana, o trabalho perderá a condição de subordinação odiosa e se converterá não apenas num meio de vida, mas na aspiração primeira da vida. Os homens possuirão de sobra para suas necessidades e ficarão livres, em geral, das preocupações materiais. Alcançando o pleno desenvolvimento humano, numa sociedade harmônica e grata, o Direito tornar-se-á desnecessário. (1988, p. 202)

Carlos Cruz DiezEntão, já numa sociabilidade sem o capital, sem Estado e sem Direito, poderemos enfim saber que a humanidade ultrapassou sua fase pré-histórica e que finalmente a produção e reprodução da vida social assentou-se em fundamentos muito superiores à lógica do lucro. Poderemos enfim vislumbrar uma sociabilidade alicerçada na fraternidade entre os indivíduos, posto que a produção e reprodução social estará firmemente ancorada na satisfação das necessidades humanas e cada indivíduo terá a chance substancial de concretizar ao máximo suas infinitas potencialidades criativas:

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas tiverem crescido e todas as fontes de riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: ‘De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades’. (MARX, 2012, p. 32)

Considerações Finais
Bem longe de pretender esgotar a temática em torno do papel do direito na transição socialista, visamos tão somente delinear os traços fundamentais para uma pesquisa que aborde a problemática de modo adequado, ou seja, inter-relacionando teoria e práxis história: o legado crítico dos pensadores marxistas do direito, as tentativas fracassadas de transição socialista ao longo do século XX (em especial a experiência soviética) e as lutas anticapitalistas atuais e as por vir.

Elucida João Bernardo:

O comunismo não é um ideal em longo prazo, nem estabelecido graças a deduções de intelectuais profissionais, nem derivado de anseios psicológicos. O comunismo resulta da afirmação do presente, e repetida ano após ano ao longo de renovadas lutas coletivas e ativas, as quais implicam sempre relações sociais novas, opostas ao capitalismo, alternativas ao capitalismo. Não é uma utopia, mas algo que, nas suas formas embrionárias e gestacionais, tem uma existência comprovada. (2009, p. 425)

Agam - infinite-reach

Bibliografia

BERNARDO, J. Economia dos conflitos sociais. SP: Expressão Popular, 2009
BOURDET, Yvon. GUILLERM, Alain. A Autogestão. Publicações Dom Quixote, 1976
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. SP: Boitempo, 2012.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. SP: Boitempo, 2002.
. Estrutura Social e Formas de Consciência II. SP: Boitempo, 2012.
MONREAL, Eduardo Novoa, O Direito corno Obstáculo à Transformação Social, Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre, 1988

* As obras que ilustram o artigo são – 1ª, 3ª e 4ª de Carlos Cruz Diez e a última é de Argam. 

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