Por lucas

O autonomismo, dentro da definição que lhe é dado em alguns países da América do Sul, é um método de luta transformado em ideologia, assim como o feminismo. Toma a horizontalidade como o todo de sua perspectiva assim como o feminismo o faz com a igualdade entre os sexos. A forma de organização “autônoma” renomeia o que tradições marxistas e anarquistas têm reivindicado há mais de um século como organização de base da classe trabalhadora. De fato, a criação de “células” de partidos leninistas e stalinistas dentro de fábricas, universidades e demais âmbitos onde há organização de massas se dá não por uma perspectiva maligna de “infiltrar” militantes de base que secretamente têm intenções escusas, senão que expressa uma necessidade destes partidos em adequar-se a ambientes de massas politicamente plurais e ativos, onde as maiorias são formadas no cotidiano, com as consignas que mais movem os indivíduos, seja pelos interesses defendidos seja pela linguagem utilizada. Num local (de trabalho ou de estudos) onde impera o imobilismo e a falta de tradição de qualquer luta, é aí onde o verticalismo se permite existir de forma “pura”, como partido ou como gerência, onde a direção não é disputada, é apenas incarnada sem dificuldades por um aparelho gestor. Assim, a autonomia não é a inexistência de disputas dentro da própria organização de base mas sim uma disputa pela direção do processo de luta onde os interesses das bases conseguem arrastar consigo as diferentes organizações presentes nas próprias bases, de forma que estes aparelhos/organizações funcionem não como dirigência vanguardista mas sim como apoio e solidariedade organizada. Isso ocorre porque as bases sociais não são compostas por trabalhadores e estudantes alheios à política e ao pensamento crítico, que na visão mais reacionária devem inclusive ser protegidos contra os discursos revolucionários; as bases contam sempre com visões em disputa, e um menor volume de disputa interna quase sempre revela o império do senso comum e do conformismo.

Ao desinteressar-se pelas disputas de fundo materialista, como a produção e reprodução socioeconômica, as relações de classe, a correlação de forças sociais, o autonomismo transformado em ideologia total isola uma dinâmica de luta e passa a militá-la como valor ético. Essa operação de descontextualização da forma contribui para a perda do carácter classista da organização de base. Nenhuma reorganização ideológica ocorre no vácuo: são ecos do desencanto da esquerda com o socialismo ocorrido com a queda do Muro de Berlim e o choque geracional que as ditaduras latino-americanas aplicaram nas militâncias políticas dos diferentes países da região. A horizontalidade deixa o lugar de trabalho, o bairro, onde ela é o ponto de partida para qualquer militância de base (não na base, mas de base) que necessita ganhar respeito e confiança dos pares, ao invés de ganhá-los com clientelismo ou economicismos do “sindicalismo de resultado”. A horizontalidade se desloca das organizações de massas em direção aos grupos de afinidades, os “coletivos”, as fábricas são esvaziadas e aparece em cena o sujeito periférico, cuja relevância econômica e territorial tenta ser cooptada por ideologias que devem sua existência e perpetuação às identidades periféricas: o centro é o homem europeu heterossexual, orbitado pela mulher, pelo negro, pelo sul-americano, etc.

Essa perda de conteúdo classista coloca o autonomismo em contato com outros setores ideológicos, como o autonomismo liberal (o cooperativismo clássico, a economia solidária, produtores culturais, artesãos, hortas e bicicletas); com o autonomismo biologizante (excludentes de raça e sexo); com o autonomismo ready-made (black blocs), etc. Mas talvez o pior produto desta operação, de se tomar a horizontalidade como horizonte, seja o autonomismo ingênuo, que se apaixona pelo momento, pelo processo, como se ele bastasse. Como se militar uma ideia para além de um processo fosse excessivo e contaminante.

Esse sentimento baseado no senso comum conservador muitas vezes termina por criar uma separação entre militantes e “pessoas normais” (desorganizados; associados, não por acaso, aos sujeitos periféricos “puros”, intocados pela ideologia), como se os militantes de diferentes tipos de organização não pudessem ser companheiros de base legítimos. Não que a história e o cotidiano não tenham um peso grande na ideia que se forma de certas tradições políticas questionáveis, mas este senso comum reacionário ajuda a criar uma resistência coletiva e individual à militância, ao reconhecimento do papel militante e dos próprios indivíduos como militantes, como pessoas comprometidas com projetos sociais que não se bastam neste local de trabalho, neste local de estudos, que buscam mudanças e rupturas sociais com toda uma lógica econômica e política.

A questão da militância não é menor, especialmente em um contexto nacional onde a esquerda esteve por muitas décadas tradicionalmente organizada em grandes máquinas partidárias estatistas (o trabalhismo e o comunismo), onde o sindicalismo é completamente fraccionado pelas disputas partidárias. O autonomismo tem sua mística no auge das lutas, nas mobilizações “sem lideranças” (um belo conto de fadas para convocar pessoas que nunca se organizaram), nas assembleias, na estética libertária, nos momentos de radicalização. Mas a verdadeira maturidade de qualquer movimento não se expressa no período dionisíaco das lutas, quando a ebriedade do poder nos deixa memórias lindas e nos faz lembrar o quanto podemos se queremos e se nos organizamos para instaurar rupturas. É na ressaca do movimento que as coisas ficam mais claras, nas reuniões do fim de festa, que não aparecem no Facebook e que são cheias de vazios daqueles que são muito ativos quando tudo é energia e vitalidade, mas que desaparecem quando tudo deixa de ser tão divertido (entre companheiros de base e organizações que se solidarizam em troca de likes). Organizar-se deixa de ser fazer assembleias massivas, passa a ser juntar-se com aqueles que pensaram parecido conosco nas decisões importantes, com aqueles cujas ideias mais se aproximaram das nossas nas várias conversas e discussões ocorridas no processo de luta; ou seja, juntar-se com alguns e não mais com todos, porque todos já não estão (nunca estiveram). Cometer o pecado de construir com uma fração da base, enquanto os autonomistas mais fundamentalistas seguem tentando convocar assembleias gerais radicalizadas sem se importar que as bases estão em completo refluxo e tais assembleias estão às moscas.

Além do que, os tais líderes que nunca existiram passam a ser perseguidos pela gerência, pela direção da escola (e às vezes pelo sindicato), porque os gestores costumam ser mais espertos que os indivíduos que não se organizam politicamente e não custa muito enquadrar esta ou aquela liderança e aplicar todo o peso contra um companheiro a fim de desmobilizar os demais. É responsabilidade das bases também defenderem os companheiros que tiveram um papel mais ativo e que terminam sendo alvo da repressão silenciosa pós-coito. Os que gostam de embriagar-se mais, em geral aqueles que não se ocupam das maiores responsabilidades, pouco terminam sabendo do que se passa na manhã seguinte, na ressaca, costumam dormir horas a fio antes de despertar novamente. Uma vitória deve ser celebrada, mas é justamente durante o sono e a ressaca que o inimigo aproveita para reduzir suas perdas ao mínimo, ou garantir que certos lutadores não lutem mais.

Por isso é importante assumir o valor e a importância dos indivíduos que em suas lutas organizam também o período da noite, do silêncio, que não estão apenas ativos para o protagonismo. A solidariedade é um valor e uma prática onde isso se expressa mais abertamente, que é basicamente o organizar um apoio totalmente coadjuvante e acatar as decisões dos lutadores que estão protagonizando um processo. Mas também se trata da organização em tempos de refluxo, de conectar um período de auge com outro, não permitir que a organização se desfaça com a ausência das massas. Estes que estão sempre ativos os chamamos ativistas, companheiros que organizam e se organizam nas bases e impulsam as atividades locais, sem necessariamente comprometer-se com perspectivas mais além. Chamamos militantes aqueles indivíduos que se comprometem com uma causa que vai mais além deste ou daquele lugar de trabalho/escola/bairro, mais além desta ou daquela pauta específica, como o transporte, a saúde, a sexualidade, etc; e que adota tal ou qual método como forma de acionar, na maioria das vezes a partir de uma interpretação mais global da conjuntura política. Estes companheiros são importantes por fazerem a ligação entre as diferentes lutas que ocorrem no país e no mundo, uma composição de militâncias, ativismos e lutadores que termina por dar a direção das lutas em um nível muito maior, as vezes mais isoladas e fragmentadas, mas nos momentos de maior atividade da classe trabalhadora como classe “para si” ela é unitária e anti-capitalista.

Tendo tudo isso em conta, é importante que a geração de ativistas que hoje se identifica com o autonomismo redescubra-se nos movimentos de massas, encarando o autonomismo não como ideologia mas sim como método, para expandir os horizont(alismos) e poder realizar-se como classista e anti-capitalista. Afinal, em 2015 muitos indivíduos e grupos parecem já ter superado a diferença entre “dizer-se” autônomo e “ser” autônomos. Saberão superar a diferença entre “dizer-se” anti-capitalistas e “ser” anti-capitalistas?

Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis.
Bertolt Brecht

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10 COMENTÁRIOS

  1. lucas seria bom vc comecar falando sobre vc, sua atuacao, em que fabricas atua, como é ser anticapitalista e nao só dizer, enfim, falar da onde fala pra sabermos se da pra confiar nessa ideia aí que ce ta dando.

  2. Como pretendo ainda seguir contribuindo para o site, vou me esforçar para adotar o papel do “escritor” que dialogo com seu “leitor”.
    Leitor, preciso entender melhor sua ideia. Você pretende confiar nas minha ideias, a partir da minha identidade?
    Em que te ajudaria isso? Qual parte das ideias te despertou menos confiança? Quais te convidaram a confiar?

    Sugiro esta linha de pensamento e debate. Pois na minha concepção de intelectual, sua identidade (cor, nacionalidade, gênero, ramo da classe trabalhadora, time de futebol, grupo de amigos) é o que menos deve importar. É o momento onde todos podemos ser apenas texto. Indique algum ponto do texto e eu posso tentar dialogar com teu incômodo.

  3. sua identidade nao interessa em nada, lucas. sua prática sim, tenho curiosidade de saber como é sua atuação política, como e pq é diferente do que vc critica, com qual base real de militância vc diz isso daí, ou se é só papo de facebook, de “as coisas deveriam ser assim”. como na prática vc faz que as coisas sejam assim, essa é minha dúvida.

  4. AD PERSONAM
    O hiperiodiota ultracretino autodesignado inquisidor sente-se à vontade para, diante de um texto, exigir de seu autor informações pessoais.
    Sobre o texto, nem uma palavra; nem contra, nem a favor, nem muito pelo contrário…

  5. leitor,
    temo que quem está reproduzindo um papo “facebook” é você, que parece estar incomodado por não ter a possibilidade de clicar no meu nome e descobrir mais informações sobre mim.

    Se você quiser comentar ou debater alguma passagem do texto, estarei bem disposto a dialogar.
    No texto está bem claro como eu defendo que o autonomismo não deve ser uma concepção política isolada dos espaços de massas e da construção destes por meio da base (sobre isso eu já tracei comentários em outro texto: http://www.passapalavra.info/2015/08/105836); acredito que a “atuação política” por meio de coletivos isolados só tende a levar a um autonomismo “de quadros”, consciente ou inconscientemente, como é o caso do MPL-SP, bem analisado nos textos: http://www.passapalavra.info/2014/05/95701 e http://www.passapalavra.info/2015/06/104988. Isto é, se tais coletivos pensam seriamente em ter influência nas massas e não apenas viver a fazendinha feliz emancipada horizontal.
    Por outro lado, o autonomismo “esteticista” adora momentos de radicalidade mas pouco se importa com a construção cinza e cotidiana, que sempre inclui o contato com militantes de outras correntes ideológicas e o embate com estruturas gestoras, inclusive aquelas assumidas por “companheiros”. Quem não gosta de dialogar com o diferente não costuma ficar para estes momentos, e isso eu também exponho no texto.

    Em fim, para “por em prática” isso, basta ser um mero militante de base convicto.

  6. lucas, entendo um pouco de sua agressvidade e pé atrás, mas a ideia nao é saber da sua vida e sim de sua atuação coletiva, em que grupo trabalha, e como. mas ok, reformulo, ja que aparentemente sua atuação é individual ou clandestina: que grupo coletivo movimento partido ou o que seja vc acha que estao de acordo com o que vc propoe? que atuação coletiva organizada sustenta a possibilidade disso q vc propoe ser efetivo?

  7. “Assim, a autonomia não é a inexistência de disputas dentro da própria organização de base mas sim uma disputa pela direção do processo de luta onde os interesses das bases conseguem arrastar consigo as diferentes organizações presentes nas próprias bases, de forma que estes aparelhos/organizações funcionem não como dirigência vanguardista mas sim como apoio e solidariedade organizada. Isso ocorre porque as bases sociais não são compostas por trabalhadores e estudantes alheios à política e ao pensamento crítico, que na visão mais reacionária devem inclusive ser protegidos contra os discursos revolucionários; as bases contam sempre com visões em disputa, e um menor volume de disputa interna quase sempre revela o império do senso comum e do conformismo.”

    Recomendo que você leia novamente o texto, leitor. Todo o tempo estou falando de organização de base, atuação coletiva organizada a partir da unidade econômica ou social, qualquer uma delas (fábrica, escola, bairro) sustenta a possibilidade de luta autônoma pela base.

    Não estou falando da questão organizativa interna de um partido ou de uma organização ideológica, se trata justamente da organização e mobilização pela base para além de pertencimentos a aparelhos ou grupos orgânicos ideológicos. Creio que qualquer um que tenha uma experiência em espaços de base pode analisar por conta própria quais grupos coletivos movimentos partidos têm militantes que se organizam pela base com os demais companheiros e quais apenas dizem fazê-lo, pois são raros os que dirão abertamente “não estar de acordo”.

  8. Viva a diferença!
    AUTONOMISTAS (Outromundialistas &c): “paremos a guerra, outro mundo é possível”.
    AUTÔNOMOS (Revolucionários proletários): “paremos o mundo, outra guerra é possível”.

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