As ocupações de escolas em São Paulo colocaram em evidência o regime político dominante nas instituições de ensino. O conflito revira as relações de poder e mostra seu avesso. Por Silvia Beatriz Adoue
Clique aqui para ler a Parte 1
A autocracia
Faz já muitos anos que as vagas para postos administrativos da rede estadual não são preenchidas por concurso. O preenchimento depende de indicações de funcionários docentes, retirados da sala de aula para ocupar assim cargos de confiança. Considerando as condições de trabalho em salas superlotadas, a passagem para uma função administrativa resulta em uma saída para professores psicologicamente fragilizados. Mas a sua continuidade depende de relações de lealdade com quem os indicou. Na outra ponta da hierarquia dos trabalhadores da rede estão os professores de categoria “O”, que também dependem, para sua contratação ou rescisão de contrato, da decisão incontestável do diretor da escola. A estratificação não termina aí. Fragmentado, em condições e relações de trabalho diferenciadas, o espaço de produção dos trabalhadores da rede supõe uma cadeia de relações de favor, que são relações de poder. No caso específico da escola, o poder do diretor é enorme, para além das suas atribuições, justamente pelas exigências de lealdade pessoal que esses procedimentos para preenchimento de cargos propicia. O modelo de gestão que foi se configurando ao longo dos anos é autocrático.
As sucessivas greves de professores foram derrotadas pelo seu desenraizamento nos locais de trabalho. A APEOESP abre mão do espaço da escola como lócus de disputa e paira numa outra dimensão, digamos, “espiritual”, quando as relações de trabalho acontecem na materialidade do prédio escolar. Essas práticas, que não mexem com a realidade cotidiana da exploração, colocam o sindicato numa posição bem distante da vida dos trabalhadores. Não há, então, contrapeso que questione as relações autocráticas e a fragmentação da categoria. Nela, a desconfiança mútua e a mesquinharia resultante se impõem, valendo o ditado: “quando o pirão é pouco, o meu vem primeiro”. E o sindicato aparece como um ente estranho à escola, durante as campanhas salariais, na forma de panfletos e convocatórias que soam, para a maioria dos trabalhadores, como gestos histriônicos, de uma tragédia conhecida: mais uma greve derrotada.
O imponderável
Mas tem o imponderável. Já durante a greve de 2015, em vários municípios, os estudantes saíram em apoio aos professores. No âmbito da escola, recusavam-se a entrar na sala de um professor grevista quando a direção colocava um substituto. Fizeram a tarefa que nem o sindicato e nem o quadro dos professores se atreveram a fazer: disputar o espaço escolar e suas práticas. Como isso aconteceu? Não surgiu das assembleias ou das manifestações nas grandes avenidas, mas das relações capilares entre os estudantes e os professores consequentes nas suas práticas, aqueles que ganharam autoridade moral no cotidiano da sala de aula.
O sindicato e mesmo muitos professores desses estudantes desestimaram esses sinais. “Esta luta é da categoria”, diziam, “agradecemos a solidariedade”. Poucos viram nessas manifestações que despontavam o indício de uma energia que se gestava na profundidade. E, claro, temiam ser acusados de aliciar menores para finalidades próprias, corporativas. A luta era vista, também por eles, na opacidade da sua superfície discursiva: é luta por salário. Mas o que emergia da ação dos estudantes, com o nome “solidariedade”, que pouco contribuía a revelar a potência que os motivava, era uma disputa política: disputa pelo poder na escola.
A greve acabou melancolicamente, como já é costume. Mas os estudantes ficaram com “sangue no olho”. Havia mais coisas em jogo. Na forma, eram as relações de confiança construídas entre eles, e também com alguns professores que tinham propiciado aqueles gestos de solidariedade com a greve. Mas, em 29 de setembro, o anúncio da “reorganização” escolar revelou o que estava realmente em jogo. O que realmente estava ameaçado eram as relações de confiança preservadas na carnadura das salas de aula, do pátio, do entorno do prédio. Não havia entre eles, como sim há entre o quadro de trabalhadores, uma fragmentação consolidada em anos de estratificação e relações autocráticas.
Depois de um mês de mobilizações que foram tomando forma a partir do conhecido (os movimentos de apoio à greve dos professores), a ocupação das escolas fazia coincidir o método com a pauta da luta: “Aqui estou/ e aqui eu vou ficar./ Da minha escola/ ninguém vai me tirar”. Mas método e pauta diziam respeito não apenas à preservação do espaço de aprendizagem e sociabilidade, reivindicação “conservadora”, mas à disputa política dentro dele.
Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história universal. Mas talvez as coisas se passem de maneira bem diferente. Talvez as revoluções sejam o gesto de acionar o travão de emergência por parte do gênero humano que viaja nesse comboio (BENJAMIN, 2012, pp. 177-178).
Frente à iniciativa do governo, o gesto “conservador” de preservar a escola para a comunidade alterava inevitavelmente as relações de poder dentro dela. Para preservar a escola era necessário destruir a hierarquia, tarefa que os trabalhadores, nas condições de fragmentação e vínculos autocráticos, não podiam encarar. Os estudantes, tratados pela instituição como objeto passivo, como matéria prima da produção, destituídos de qualquer capacidade deliberativa, estavam, por isso mesmo, “livres” para agir.
A autogestão
Primeiro, precisaram desafiar a autoridade do quadro diretivo e, em não poucas oportunidades, de docentes da escola. Isso não foi tão difícil. A passividade com que eles estavam aceitando o desmonte da instituição era patética. A sua fraqueza frente aos ataques por parte do governo ficou evidente: amedrontados, incapazes e burocráticos, preparavam resignados a corda com que seriam, também eles, enforcados. Os estudantes assumiram a responsabilidade.
Há alguma sinceridade no governo quando acusava os professores, os partidos, os movimentos sociais, os sindicatos de articular as ocupações. O governo realmente desestimava a ação dos estudantes. Para ele, o alunado não existia sequer como interlocutor. A irrupção dos secundaristas pegou todos de calça curta.
Mas, uma vez dentro das escolas, precisaram vencer a própria passividade. Sem experiência de exercício de qualquer poder dentro da instituição, foi necessário inventar. O que fazer com a escola? Como organizar o espaço e o tempo dentro dela? Como se por de acordo e decidir? Desafios novos.
Habituados a uma hierarquia em que nada era possível para eles, tiveram que lutar contra a própria inércia e para isso precisavam quebrar a ordem hierárquica. As formas de tomada de decisão priorizaram o método da assembleia: todas as vozes de estudantes com o mesmo peso. E alguma coisa nova despontou: o protagonismo das mulheres. As razões? Talvez a radicalidade da ação tenha desestabilizado também a hierarquia de gênero.
Mas a ocupação da escola não se limita a uma ação sobre o espaço, ela é também uma ocupação do tempo. O que fazer durante a ocupação? Os estudantes organizaram horários de atividade que incluíam não apenas as atividades de manutenção do prédio, da alimentação, da segurança. Fizeram da escola um lugar de aprendizado significativo e de enlace com outros setores da sociedade. Técnicas artísticas, práticas políticas, aulas públicas fizeram parte da rotina das ocupações.
O que vem
Após a suspensão das ocupações, o retorno às aulas para a reposição não permite ainda ter uma dimensão de como se alterarão as relações de poder no espaço escolar. Todos coincidem em prognosticar que a escola não será mais a mesma depois de uma ocupação.
Os estudantes testaram a própria capacidade de contestar as relações autocráticas preexistentes. Os trabalhadores puderam observar a fraqueza da hierarquia quebrada pela ação dos estudantes, quando unidos. Aqueles que por anos a fio tentaram, eles próprios, contestá-la, encontrarão nos estudantes aliados. Mas esses aliados não se sujeitarão à condução dos professores. Também essa hierarquia foi abalada. Ao mesmo tempo, solidificaram-se os laços com os docentes que apoiaram a luta, aqueles que atravessaram a linha rompendo, eles também, a cadeia de sujeição autocrática.
Quais serão os novos avatares com que a “reorganização” escolar será reapresentada? Que outras iniciativas preparatórias da privatização fatiada o governo do estado de São Paulo tomará para o ano de 2016? Como tentará contornar a disputa pelos estudantes do poder de decisão?
Como um joão-bobo que insiste uma e outra vez, o governo voltará à carga com recursos de repressão, mas também de sedução. A mudança curricular com a redução das disciplinas obrigatórias será apresentada com as vestes de “liberdade de escolha”, por exemplo. Haverá urgência em constituir grêmios controlados pelas direções, como simulacros de participação nas decisões.
O ano que se inicia trará novos desafios, diferentes daqueles que os estudantes venceram, que convocarão não só novas doses de energia, mas também de criatividade, para eles e também para seus aliados.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Trad. João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2012.
Muito interessante o texto. Sobretudo, a segunda parte que trouxe a materialidade social das ocupações. Acho que a primeira parte exagera um pouco (embora concorde com o resultado neoliberal) as origens dos documentos do MEC, deixando de lado as CONAES (com seus problemas, é preciso lembrar que diversos movimentos de educação estavam presentes e tiveram um contrapeso importante para que o neoliberalismo final não fosse tão avassalador). Mas concordo com o diagnóstico geral. Parabéns para a autora.
Belo trabalho de análise. Me sinto contemplada como professora da EE Fernão Dias Paes. Abraços
Silvio, Dalva (Dalva, contigo troquei um par de palavras no dia da suspensão da ocupação do Fernão), o texto é “provisório”, uma reflexão imediata que queria compartilhar, é preciso pensar no assunto. Meu trabalho não é um trabalho acabado.