A questão que permanece em aberto é: quais respostas poderão dar aos dilemas da crise estrutural e agônica pela qual passa o capitalismo? Uma certeza já podemos ter: não será seguindo a velha cartilha. Por Douglas Rodrigues Barros
Há quem diga que a famosa frase de Arquimedes se traduz desse modo: “Dê-me uma alavanca e um ponto e colocarei o mundo de ponta cabeça!” Pois bem. Tal recurso estilístico ilustra o que a extrema-esquerda atual procura: uma bendita alavanca para chamar de sua!
A alavanca mais empregada por esses bons espíritos que muito, amiúde, seguem a chamada lei do coração [1] é o que se convencionou chamar de classe trabalhadora. Em outros tempos, ela bem que serviu para dinamizar e modernizar os meios de produção e reprodução social através de suas lutas e conquistas encarniçadas. Como efeito, reproduziu uma sociedade menos injusta. Só que, no entanto, passou ao largo de qualquer sociedade que se projetou nos sonhos socialistas do século XIX.
Hoje – combalida com o aumento da produtividade por meio do acréscimo constante da chamada mais-valia relativa – resta só uma lembrança das grandiosas organizações proletárias. O toyotismo então não tinha adentrado até a medula captando a subjetividade da classe e fazendo todos entrarem na era degradante do Just-in-time [2]. Graças ao espírito absoluto, porém, a história é mais dinâmica que a ideologia presente e, hoje, o castelo toyotista-neoliberal começa a ruir.
O jovem Lukács escreveu algo belo, aliás como quase tudo que escreveu antes de ser cooptado pelo bolchevismo e ser enquadrado no jargão e dicionário soviético – que de soviete só ficou a lembrança – que foi: na ausência de Deus um novo deus assenta-se no trono. Guardada as devidas proporções do que queria dizer com essa frase, o que se sabe é que se inventaram dezenas de deuses que serviriam para garantir o escopo ideológico-revolucionário em detrimento da teoria revolucionária. E aí deu no que deu.
Um dos primeiros a sentir essa besteirada toda feita em nome das novas religiões chamadas stalinismo, maoísmo, trotskismo, leninismo etc., foi Guy Debord [3]. Outros viriam mais tarde. Apesar dos pesares, a crítica se manteve independente das seitas fratricidas e de todas as organizações que, reivindicando para si o título revolucionário, nada mais fizeram que sonhar com a grande sociedade do trabalhador! Paul Lafarg treme no túmulo e seu sogro gargalha: “parece que ninguém se dispôs a estudar A crítica ao programa de Gotha [4]”.
A crítica que se dispôs a demonstrar o falso fundo do “marxismo tradicional” e do assim chamado “socialismo” realmente existente, entretanto, parece ainda engatinhar e manter-se no processo de negação. O que para um marxismo acadêmico, como o nosso, é um prato cheio, vide as formulações pessimistas da crítica do valor e da maioria dos artigos da revista Sinal de Menos [5]. Revista que, sem dúvida, mantém a crítica afiada dando esperança de que a práxis-teórica ainda faça algum sentido e que a própria crítica encontre um balão de oxigênio.
A negação já é algo… entretanto, sua falta de perspectiva e a dança histórica que impõe uma nova sinfonia cujas notas precisam ser novamente pressupostas conceitualmente fazem com que o Fantasma retorne à cena. Os mortos precisam ser lembrados a despeito da cagada que fizeram, diria Ulisses sobre seu marujo beberrão. Mesmo que se mude a sinfonia para atonal é preciso conhecer a música tonal. E assim, se verifica que a besteirada foi uma cagada historicamente necessária. Historicamente necessária para quem? Pergunta o leitor mais atento.
Embora o bom Lukács tenha, em História e consciência de classe, identificado O sujeito como o proletariado e tenha mantido sua abordagem ligada a uma crítica que via o problema somente na circulação do capital e não em sua produção, aquele processo foi necessário para a própria dinamização da totalidade e do sujeito automático chamado capital. O velho barbudo, na sua melhor forma, analisa o capital em termos de relações de produção e reprodução sociais constituídas pelas formas objetivantes e reificadas apreendidas pelo desenvolvimento do valor empreendido historicamente. Tais formas estão ligadas à tríade que especifica o que é a mercadoria como forma elementar do capital, a saber: valor-de-uso, valor e valor-de-troca.
Trocando em miúdos um tanto grosseiros: o processo inerente ao desenvolvimento do capital se baseia nos pares antagônicos trabalho e capital que são necessariamente recíprocos enquanto produção do valor. Difícil? Pode ser, mas o significado é simples. O trabalho não é simplesmente antagônico ao Capital, mas o reverso de sua mesma moeda [6].
Marx não defendeu uma sociedade do trabalho, mas uma sociedade emancipada, inclusive do trabalho, motivo esse que o fez saudar a obra do seu genro boêmio. E o que impulsionou esse ensaio foi justamente a polêmica em torno da tática e estratégia que remói e requenta os velhos dilemas presentes na extrema esquerda – a tão desejada alavanca. Essa polêmica se perpetua em torno da herança do marxismo-leninismo/leninismo e da romantização da Revolução Russa. Além, é óbvio, do engessamento da teoria que impõe o fim da crítica.
Os avanços teóricos, como amiúde ocorre na história do pensamento, são ignorados em nome do comodismo e da presunção. Tal fato lembra aquela cena na Vida de Galileu, escrita pelo grandioso Brecht, quando, para comprovar a tese de Galileu, os doutores só precisavam olhar pela luneta, mas se recusavam. Gritar palavras de ordem e analisar uma realidade com conceitos a priori trazidos de outras épocas e contextos não me parece uma boa opção em se tratando de dias tão turbulentos e de uma clara esquina da história que mais parece conduzir a um desfiladeiro. Aliás, gritar as tais palavras de ordem hoje mais parece sintoma de um profundo desespero. Um desejo de voltar para o útero que não existe mais. Por outro lado, negar o fantasma simplesmente exorcizando-o ao bater em seus pontos frágeis, sem se ater à necessidade da maturação que a própria Ideia de socialismo impõe, parece ser um grito no vazio.
Assim como os críticos do valor [7] sugerem que o marxismo tradicional tenha passado muito rápido pela análise da mercadoria, me parece que eles próprios passaram muito rápido pela análise da luta de classes. E, de um ponto de vista – histórico – privilegiado, apontam os erros sem, no entanto, se ater a estes mesmos erros. Uma forma quando morre, como uma estrela, mantém seu brilho à medida do seu alcance e de sua importância histórica. Por isso, se livrar da categoria do trabalho condenando toda a luta dos trabalhadores como simplesmente modernização do capital não soa bem, tendo em vista que toda crítica e luta são determinadas pelo seu contexto [8].
Isso não quer dizer que me baseio num plano teleológico, por exemplo; hoje é mais fácil ver as cagadas devido o desenvolvimento do capital! Não, mesmo porque, a luta de parte da esquerda atual se encontra imóvel e parada ainda nos velhos jargões e dialetos pouco tragáveis. Foi preciso grande esforço e ousadia de alguns teóricos para que fosse aberta uma crítica que respondesse pela barbárie de nosso tempo presente. E aqui está a minha dívida contraída com pensadores como Lukács, Bloch, Korsch, Adorno, Benjamin, Debord, Postone, mesmo Kurz e, principalmente, Roswitha Scholz.
Não deve haver dúvida, porém, que o bolchevismo encerra em si graves problemas que condicionaram as tragédias do século XX. Para todo monumento uma catástrofe! E essa herança continua endossando as besteiradas teóricas que se propõem como o “guia genial dos povos [9]”. Besteiradas que ainda se baseiam no sonho protestante de construir uma sociedade do trabalho dando sentido ao famigerado pórtico de Auschwitz.
Cada vez mais fica nítido que a poesia terá que ser retirada do futuro, pois os modelos teóricos herdados já estão carcomidos. Por isso, a crise estrutural do capital, iniciada na década de 1970, é ela própria uma crise teórica do “marxismo tradicional”; seus conceitos envelheceram e seu modelo rigoroso e militarizado já não encontra respaldo na realidade efetiva. Coisas como centralismo democrático, crise de direção e vanguarda política soam (porque são!) empoeiradas.
Por que tais teorias envelheceram? O marxismo tradicional se baseia acima de tudo na ideia central de desenvolvimento e modernização dos meios de produção sob a tutela da classe trabalhadora. Em outras palavras, presume a centralidade no trabalho e foi a pedra de toque utilizada pela burocracia na URSS. Durante o século XX o desenvolvimento e modernização foram o grande impulso do capital unido ao trabalho. O aumento contínuo da produtividade por meio do desenvolvimento tecnológico levou a uma permanente revolução no interior da produção, o que culminou numa crise não só ligada à absorção da riqueza produzida mas também do próprio trabalho, já que a subsunção real do trabalhador foi efetivada com sua absorção nos meios de produção automatizados.
Isso dinamizou o processo de trabalho e conduziu uma permanente revolução das formas de gestão. Desse modo, o neoliberalismo, como um prosseguimento “natural” do desenvolvimento do capital, se insurge na construção e reformulação de novos esquemas organizativos para manter, ainda que de maneira esclerosada, o processo de circulação e produção de capital mediante a crise. O homem-empresa, que nasce ideologicamente apostando no individualismo e na capacidade egóica de cada um, é uma resposta ao trabalhador existente na era do fordismo. A terceirização e a ampliação dos setores de serviços [10] são uma resposta ao crescimento exponencial da produtividade pelo desenvolvimento das novas tecnologias a partir da Terceira Revolução Industrial. Por isso, o toyotismo se insurge como componente necessário de captação de mão de obra e flexibilização do sociometabolismo [11] do capital.
Eis aí uma crise de proporções inteiramente novas tanto para o capital quanto para a teoria marxista tradicional. Isso porque diferentemente do fordismo, a era toyotista e sua ideologia não esteve presente só no interior das fábricas, mas sim, foi absorvida por todo espectro social. Como uma resposta ao declínio da produção do valor, que tem que se realizar no processo de circulação, o toyotismo impôs a flexibilização do trabalho e desmontou as velhas formas de coletividade e solidariedade por meio da precarização constante e da espoliação aguda, com claro intuito de que o valor se efetive. Aliada a uma propaganda ideológica massiva, a condição social toyotista se encravou no DNA da classe trabalhadora. Voltando aos termos do século XIX, o trabalho continuou não apenas degradante, como manteve o seu status ideológico garantido.
Vender a força de trabalho na era de flexibilização do capital tornou-se um privilégio [12]. Mas, para o marxismo tradicional, cujos adeptos bradam por uma fórmula eficaz capaz de lidar com as massas, tudo continua como era antes. Esses foliões tentam encontrar a receita elaborando programas mirabolantes que serão abraçados mais tarde pela classe trabalhadora. Ora, dá para manter a consciência tranquila por um bom tempo acreditando nisso. Entretanto, quando o cenário de barbárie se agudiza num tempo aparentemente cíclico, outras vozes tendem a se somar no coro de indignados.
É necessário ressaltar, no entanto, que a precarização imposta pelo toyotismo produz uma recomposição imediata da forma-valor, que por isso mesmo reproduz as formas sociais de dominação social por intermédio da aguda exploração do trabalho [13]. E, por isso, se de fato o valor está em crise, a aguda precarização do trabalho, vista a olhos nus em todo globo, é uma resposta ineficaz, mas mantenedora das relações de exploração do capital. É preciso, pois, entender o processo de precarização que se serviu do Brasil e da América Latina como um precioso laboratório do neoliberalismo. Sabe-se hoje que a América Latina exporta os modelos de exploração e securitização para todo o mundo globalizado.
Desse modo, não basta compreender que o trabalho é uma contradição recíproca com o Capital, mas entender que essa contradição é condição de manutenção do status quo. A extinção da sociedade mercadológica passa também pela transformação e posterior extinção do trabalho. Mas a mediação é inescapável.
O processo de crise estrutural, pelo qual passa o capital hoje, impõe uma mudança de perspectiva crítica para responder, por intermédio das lutas, os novos desafios impostos pela configuração sempre movente da realidade social. A efetividade das respostas será provada na capacidade organizativa de todos os movimentos e partidos que lutam diariamente contra a barbárie instaurada, mas esta organização prescinde de um programa engessado. É a luta que instaura a necessidade de uma organização mais efetiva e não o contrário [14]. Não nos enganemos, porém, em acreditar que estas organizações partidárias possam ser descartadas, pois ainda cumprem importantes papéis na organização contra a barbárie. A questão que permanece em aberto é: quais respostas poderão dar aos dilemas da crise estrutural e agônica pela qual passa o capitalismo? Uma certeza já podemos ter: não será seguindo a velha cartilha.
Douglas Rodrigues Barros
11/02/2016
Notas
[1] Ver Hegel, Fenomenologia do Espírito.
[2] Sobre essa questão ver o importante livro de Giovanni Alves intitulado Trabalho e subjetividade, o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório.
[3] Na excitante Sociedade do espetáculo.
[4] MARX, K. Manifesto do partido Comunista.
[5] Aqui: http://sinaldemenos.org/
[6] No último comentário do saudosista Arabel (presente aqui) vemos ele bradar que a contradição mais importante do capital é entre capital/trabalho. Ele só esqueceu de acrescentar que é importante justamente porque salva o capitalismo de si mesmo.
[7] Em especial Kurz e Anselm Jappe.
[8] Não há, e nem poderia haver, no grupo dos críticos do valor uma unidade teórica, por isso, essa crítica não se dirige, por exemplo, a Moishe Postone.
[9] Aqui novamente aparece o saudoso Arabel que depois de falar sobre a rígida estrutura de caserna do partido bolchevique diz o seguinte: “Não é coincidência que quase todos os processos revolucionários que conseguiram tomar o poder e se manter nele, seja o marxismo-leninismo a herança de quase todos eles”. Oculta diversos fatos, como a própria supressão dos sovietes e sua capacidade decisória e organizativa em nome da centralidade bolchevique, oculta também a perseguição política aos “adversários” que se tornaram inimigos políticos da nascente burocracia encabeçada por Lenin. Há ainda vários episódios que ficam para um outro ensaio. Mas o que mais marca na fala do Ortodoxo e mouco Arabel é: “Os elementos centrais da tradição se apresentaram como os mais acertados”. Digno de uma miopia existencial, essa afirmação não sobrevive a mínima análise, a degenerescência teórica é tanta que o moço ignora totalmente o desmantelo da URSS e sua tomada por figuras como Putin como uma herança da burocracia. A coisa foi tão grave que hoje se dizer comunista na Rússia é ser de extrema-direita.
[10] É preciso salientar que esse conceito em Marx é extremamente diferente do nosso atual uso.
[11] Trago Mészaros aqui porque, apesar de ser um incorrigível adepto da tradição de quem aliás simpatizo muito, a noção de sociometabolismo traz uma grande riqueza para a compreensão do capital como algo para além de um modelo econômico.
[12] Sobre isso, temos aqui, um precioso artigo que visa analisar estatisticamente o crescimento da classe operaria, mas, deixa de lado as condições e surgimento do novo amplexo empregatício no Brasil. Muito embora a classe operária tenha crescido nos áureos anos lulistas, como demonstra a pesquisa, a qualidade e as formas de organização e gestão desses novos operários são ocultados na análise. O que não anuvia o mérito da análise que demonstra o crescimento do operariado, mas não é capaz de responder a sua ineficácia organizativa porque ainda está atrelado às formas tradicionais do pensamento marxista. Ademais, o setor de serviços, que sempre foi majoritário no Brasil, teve um grande impulso com a precarização ocorrida sobretudo nos anos FHC.
[13] Essa ideia me foi passada pelo excelente livro de Vinicius Oliveira Santos chamado Trabalho imaterial e teoria do valor em Marx.
[14] Isso se dá por uma mitologização do partido bolchevique; tido como infalível, este partido teria sido aquele que mais soube lidar com as condições adversas na abertura da revolução. Uma simples análise da história da revolução não oficial demonstra, entretanto, o quão oportunista e sanguinário foi a tomada do poder empreendida pelos bolcheviques. A dissolução dos sovietes que foram, pouco a pouco burocratizados, e o ataque a toda dissidência que se colocava à esquerda do processo foi apenas uma preâmbulo do que viria com os anos stalinistas. “Era necessário”, dirão os saudosistas! Estes acreditam ainda que foi a sagacidade bolchevique que fez triunfar a revolução, esquecendo-se da miríade de organizações e movimentos que a defenderam a ferro e fogo contra o inimigo branco. A defenderam para depois serem massacrados na invenção mais terrível do século XX, que foram os campos de trabalhos forçados.
As imagens são de Roy Lichtenstein
O filósofo Badiou escreveu em 2006 um texto sobre seu colega Ranciere, que ficou bastante conhecido na américa latina a partir de seu livro “O Mestre Ignorante”. O texto, cujo título é algo como “As lições de Rancière: saber e poder depois da tempestade”, traça uma distinção entre a visão dos dois intelectuais quanto ao tema.
A leitura que boa parte do campo autonomista gosta de fazer da obra de Rancière é a de uma total horizontalidade do saber, não havendo espaço para a acumulação de um saber político onde uma pessoa o possua e outra seja desprovida dele. Desta forma, estamos todos fadados a um eterno recomeçar do zero, onde todos aprendemos tudo apenas das práticas e esse conhecimento é impossível de ser transmitido pois ele é sempre apenas prático e perde seu sentido com o tempo e com a “outridade” dos demais sujeitos.
Isso me faz lembrar algo que o Fagner Enrique comentou quando fez sua crítica do MPL. Ao invés de encarar com seriedade a formulação de “programas mirabolantes”, seria o caso de sentarmos em roda e convidar todos a discutir em conjunto um esboço de programa? Afinal, o que importa não seria o resultado final, mas sim que o fizemos juntos, em círculo.
Em linhas gerais eu concordo com o texto. Mas creio que ainda estamos fixados na velha cartilha. Por exemplo, podemos criticar o bolchevismo por vários lados, mas o objetivo final será apenas descartá-lo como fenômeno histórico em sua totalidade? Não há acúmulo nenhum a ser feito a partir do balanço histórico e sua crítica? Falamos sobre os erros do bolchevismo e de como ele esmagou as dissidência e os pequenos grupos de esquerda. Oras, mas porque então deixa-se de fazer a crítica dos pequenos grupos que não foram capazes de colocar em prática uma política de massas durante o auge revolucionário? Não faz isso parte de uma postura de louvação aos mártires? Não faz isso parte de uma fixação de setores da extrema-esquerda com o derrotismo e a falta de uma crítica dirigida à sua insignificância política?
Taí outra cartilha que merece ser jogada fora também.
UM CARA A CARA (sem cheek to cheek) PÓS-ALTHUSSERIANO
http://murilocorrea.blogspot.com.br/2014/05/le-face-face-badiou-ranciere.html
Ja haviam me apresentado por ai como um leninista heterodoxo, mas ser chamado de ortodoxo mesmo defendendo que existia uma classe de gestores URSS, que era capitalista, apenas por defender que a classe trabalhadora é o sujeito revolucionario pela posição que tem nas relações sociais de produção, por defender a necessidade de uma estrategia no sentido mais antigo da coisa e defender uma organização com unidade na politica para conseguir executar, isso dai é coisa nova.
De resto, ja diziam uns tantos que se perderam no caminho nas lutas por ai
“Vocês não estão prestando atenção nas coisas novas”
Douglas,
o seu texto — até por algumas referências que traz — faz pensar em Machado de Assis, nas reviravoltas, volteios e enorme volubilidade dos narradores machadianos. Precisamente porque, tais artifícios, em Machado, tinham uma espécie de “função pirotécnica”, ou seja: serviam para criar uma aparência de profundidade e ilustração, quando, em realidade, somente ocultavam um tremendo e acachapante vazio de conteúdo! Assim, Machado mimetizava, na própria constituição formal de suas obras, a impostura das elites e das classes dominantes do país. Enfim, todo mundo conhece a tese daquele professor…
Na minha modesta leitura, criava metáfora para ilustrar esse “fundo falso” dos narradores machadianos: a imagem da cebola ou do repolho. Ambos, cebola e repolho, são constituídos de “invólucros” sobrepostos, as folhas, que você vai soltando, uma após outra, até que, finalmente, chega ao núcleo: que não há! É igual um ovo de páscoa sem bom bom (desculpa a metáfora escrachada).
Seu texto é isso. Tem um apriorismo ideológico que o torna inútil. Mesmo as referências, todas elas buscadas no chamado “marxismo ocidental” (de uma ponta a outra: de Lukács a Kurz), mesmo este marxismo, se for pra fazer leituras à priori, estaria tão envelhecido quanto o próprio “marxismo tradicional”: afinal de contas, na atual conjuntura a maioria dos processos de greve, no Brasil, pelo menos, são motivados pelas velhas reivindicações defensivas históricas do proletariado. Afirmando, desse modo, tendência fundamental apontada pelo leninismo. O que faz a classe se mover inicialmente, é a defesa contra os ataques dos patrões…
A primeira consequência desse apriorismo acachapante (que se nega completamente a dialogar com seu objeto de crítica, apesar das referências à Hegel) aparece logo no comecinho:
“A alavanca mais empregada por esses bons espíritos que muito é o que se convencionou chamar de classe trabalhadora. Em outros tempos, ela bem que serviu para dinamizar e modernizar os meios de produção e reprodução social através de suas lutas e conquistas encarniçadas. Como efeito, reproduziu uma sociedade menos injusta. Só que, no entanto, passou ao largo de qualquer sociedade que se projetou nos sonhos socialistas do século XIX”.
Concordo que as lutas históricas da classe no último século acabaram resultando em processos de modernização capitalista dos meios de produção etc. Mas, entre uma coisa e outra, entre os processos revolucionários, e sua assimilação final aos interesses do capital, há toda uma história, que você pretende negar sustentando este apriorismo de que, o fim não poderia ser outro. Você acha que pode substituir a análise política concreta desses processos, pela crítica do valor de Marx, que a tudo ilumina, inclusive colocando a crítica do valor em oposição problemática à centralidade da luta de classes (você e sua turma elegendo a crítica do valor como a pedra de toque da exposição d’O Capital, numa leitura, desse modo, fraturada da obra. Ótimos discípulos de Hegel, que mal sabem respeitar a integridade de uma exposição).
Agora, a outra metade do origame, ou melhor, de seus argumentos:
“Como efeito, reproduziu uma sociedade menos injusta”. Concordo que todos os chamados diretos fundamentais, todas as conquistas da classe, resultaram somente — e tão somente — de suas lutas. Mas, de onde você tirou a fantasia de que tais conquistas históricas resultaram em sociedade capitalistas “menos injustas”? Cara, você tem acompanhado a atual crise econômica e seus desdobramentos, em termos de perdas para a classe trabalhadora? Enfim.
Aí vem a Grande Novidade de seu texto (que de novidade não tem nada!):
“Hoje – combalida com o aumento da produtividade por meio do acréscimo constante da chamada mais-valia relativa – resta só uma lembrança das grandiosas organizações proletárias. O toyotismo então não tinha adentrado até a medula captando a subjetividade da classe e fazendo todos entrarem na era degradante do Just-in-time”.
O marxismo tradicional estaria então “combalido” porque não esperava que o capitalismo pudesse sobreviver; nenhuma das utopias leninistas deram certo… O simples fato em si mesmo da URSS ter acabado é a prova fatídica de que o leninismo está morto etc. etc. Parece um rosário de argumentos do Arnaldo Jabor.
O mecanicismo da sua análise é tão patente, que aparece até na sintaxe dos trechos, à maneira da lógica formal: “o que se sabe é que se inventaram dezenas de deuses que serviriam para garantir o escopo ideológico-revolucionário em detrimento da teoria revolucionária. E aí deu no que deu”. Isto não é o que se sabe… É o que VOCÊ sabe (ou acha que sabe). Pronto, o grande crítica do valor (ou como diria Marx: a crítica roedora de ratos!) explicou, como uma lei da física, a degeneração da revolução de outubro.
Isto que você descreveu acima, como sendo uma “invenção de deuses que serviriam para garantir o escopo ideológico-revolucionário em detrimento da teoria revolucionária” (o trecho é confuso, como todo o resto, mas dá pra entender), na história real, e não numa visão ideológica, é o stalinismo. Não generalize sobre questões que você não conhece e faz questão de desconhecer… Mas é exatamente isto que você faz, logo adiante, generalizações:
“… essa besteirada toda feita em nome das novas religiões chamadas stalinismo, maoísmo, trotskismo, leninismo”.
Toda a história da luta de classes ao longo do século XX, que girou em torno das correntes que você enumera acima, com suas diferenças, toda essa história é reduzida a uma… “besteirada”. Mas o texto inteiro é recheado de pérolas. Tem essa aqui ainda:
“Por que tais teorias envelheceram? O marxismo tradicional se baseia acima de tudo na ideia central de desenvolvimento e modernização dos meios de produção sob a tutela da classe trabalhadora”.
Depende. Há correntes no marxismo ocidental que se baseiam nos meios de produção sob a tutela dos trabalhadores, isto sim, o que se chama também expropriação dos meios de produção. Mas não necessariamente concebendo o desenvolvimento dos meios de produção como um fim em si mesmo, em abstrato. As posições de Trotsky sobre o atraso da economia soviética, por exemplo, não miravam o desenvolvimento como um fim em si mesmo, em abstrato. Apenas considerava — porque não era um acadêmico comentando a vida real de dentro de uma cátedra — que a URSS estava imersa no mercado mundial, que, como tal, existe em função da valorização do valor, da produção de mercadoria. São os dilemas do problema da transição, que vocês, “críticos do valor”, não querem nem saber!
Vou tentar encerrar agora… Retornando à Grande Novidade: a reestruturação produtiva do capitalismo, iniciada na década de 70, que, segundo você, terminou de esgotar as capacidades de resposta do marxismo tradicional. Este, então, estaria aquém das tarefas colocadas pelas recentes contradições estruturais do capitalismo. Por que? Porque o marxismo tradicional, em sua visão teleológica, não esperava que o capitalismo tivesse ainda fôlego… Segundo o marxismo tradicional, era pro capital ter caído de maduro.
É como eu disse: o chamado “marxismo tradicional” não é um saco onde você atira indistintamente todo mundo. Também sobre a questão da reestruturação produtiva, e a possibilidade de uma nova onda de crescimento econômico pós segunda guerra, houveram vozes, no interior do “marxismo tradicional”, que a puderam prever, sobretudo as correntes de oposição ao stalinismo, justamente porque a possibilidade de um novo crescimento produtivo estava diretamente relacionada à abertura da URSS.
Os últimos textos de Trotsky, sobre a crise econômica estrutural que desembocou na segunda guerra, já previam isto (quando nenhum outro teórico do “fetiche da mercadoria” pode prevê-lo). Num de seus textos sobre a crise, em algum momento da década de 30, ele afirmou:
“Teoricamente, para se ter certeza, mesmo um novo capítulo de um progresso capitalista geral nos países mais poderosos, dominadores, e liderantes não está excluído. Mas para isso, o capitalismo precisaria primeiro superar enormes barreiras de um caráter de classe assim como de interdependência das nações. Precisaria estrangular a revolução proletária por um longo tempo; precisaria escravizar a China completamente, depor a república soviética, e assim em diante” (Trotsky, A Terceira Internacional Depois de Lênin, New Park Publications).
Leu com atenção, as duas últimas linhas, em especial? Em diversos outros textos sobre a crise, Trotsky afirma a mesma perspectiva, sobre as probabilidades de uma nova onda de crescimento econômico estrutural, dependendo de forma central do que ele chamou, acima, “escravização da China”, e “deposição da república soviética”.
Certeiro. Na China, o processo de escravização se inicia em 1978, com a abertura, neste ano, para o capital norte-americano. Tal abertura resultou em contradições que desaguaram em revoltas e no histórico massacre da Praça Tiananmen, em 1989. Daí em diante, década de 90 a dentro, a China torna-se o vemos hoje — quando já começa a cair. A força de trabalho mundial total quadruplicou, na década de 90, em função da abertura da China, e outros mercados de mão de obra ao leste da Ásia.
O toyotismo é resultado deste processo.
Enfim. Fico por aqui.
A grande questão não é querer assinalar insuficiências do “marxismo tradicional” (como se o marxismo ocidental no qual você se apoia já não fosse também uma “tradição”, aliás, com muito mais direito de sê-lo…), o problema é uma posição que não dialoga, que não parte efetivamente das formulações históricas, dos processos reais de luta do passado, com suas contradições e dilemas. Quer reduzir tudo a um denominador comum, que não existe. E não consegue dialogar com o movimento real (se é que tem esse interesse!).
Deixarei, por enquanto, me envolver por argumentos do tipo: “Ambos, cebola e repolho, são constituídos de “invólucros” sobrepostos, as folhas, que você vai soltando, uma após outra, até que, finalmente, chega ao núcleo: que não há! É igual um ovo de páscoa sem bom bom (desculpa a metáfora escrachada). Seu texto é isso”.
Vejamos só…
João Paulo traz à baila uma boa interpretação do narrador de Machado para me acusar de um erro que ele próprio comete, cria uma cebola para bradar desesperadamente a cartilha e inclusive cita seu profeta amado para dizer que o genial “já sabia” que o toytismo entraria em vigor através da adequação econômica da China ao capital e da queda da URSS, ou como seu ídolo diz “deposição da república soviética(!?).
Ele me acusa (e como gosta de acusar) de não manter a “paciência do conceito” para a exposição integral d’O Capital (livro que aliás tenho certeza que não leu), por “me basear na teoria do valor”, mas, sem pudor, separa economia de política. E na sua escrita fica o infeliz pressuposto trotskista implícito de que a URSS precisava só de uma revolução política, pois, economicamente tinha realizado o socialismo. Ranços e nada mais… que, como não estamos na Rússia, conduzem ao Mangue e não ao pântano.
Mas, uma análise criteriosa do trecho de seu amado profeta da revolução serviria aqui para ilustrar que a ideia batuta, que ele encontrou em seu ídolo, não passa de uma visão fragmentada e positivista. Façamos esse esforço, Trotsky diz:
“Teoricamente, para se ter certeza, mesmo um novo capítulo de um progresso capitalista geral nos países mais poderosos, dominadores, e liderantes não está excluído. Mas para isso, o capitalismo precisaria primeiro superar enormes barreiras de um caráter de classe assim como de interdependência das nações. Precisaria estrangular a revolução proletária por um longo tempo; precisaria escravizar a China completamente, depor a república soviética, e assim em diante”
Ora, o que é superar enormes barreiras de um caráter de classe? João Paulo não conseguirá entender isso, pois, sua centralidade é única e exclusivamente na luta de classes (Mas, segundo o folião, sou eu que não tenho paciência para a exposição completa). Superar enormes barreiras de um caráter de classe se resumiu na prática a superar as demandas de sobrevivência e consumo da classe trabalhadora. Quem será o guru dessa perspectiva? Keynes e seu Wellfare state que salvo engano escreve inclusive antes do profeta supracitado.
As “enormes barreiras de classe” nada mais foram que o atendimento provisório das pautas da classe trabalhadora, o que mostra algo que a cartilha de João não deixa claro; O capital e trabalho são um antagonismo reciproco e a própria reivindicação economicista da classe trabalhadora no interior do capitalismo ajudou a dinamizar e modernizar o capital (Ih! Agora ele vai dizer que se houvesse uma direção capaz… blá! Blá! Blá!). Quer dizer: a superação das barreiras foi a subordinação da classe trabalhadora pelo amplo atendimento de suas reivindicações.
Chegar nessa perspectiva é para João não enxergar a especificidade da luta? Por que? Porque ele é um historicista incapaz de entender que os próprios pressupostos de sua cartilha condenam a luta a girar em torno do próprio rabo.
Quanto a superação da interdependência das nações, sinto muito João Paulo, mas seu ídolo erra feio, pois ela não só permaneceu insuperável como se aprofundou. O processo de globalização aqui, como mostra Ruy Mauro Marini, se baseia na intensificação do trabalho, prolongação da jornada e a expropriação de parte do trabalho necessário para repor a própria força de trabalho. Configura um modo de produção fundado numa maior intensificação de exploração e não no desenvolvimento da produtividade.
Deixe-me traduzir porque deve estar aturdido: as multinacionais quando chegam nos trópicos estão focadas numa superexploração do trabalho, o que torna a interdependência das nações ainda mais visceral e, muito embora, aja o aumento da produtividade ela é totalmente subordinada a tecnologia estrangeira. O segundo processo disso será a própria passagem para a financeirização de todos os setores agudizando ainda mais a dependência das nações periféricas. David Harvey (que sei que deve detestar e chama-lo de revisionista) tem uma grande paródia ao comentar como um único jovem conseguiu subordinar a economia de um pais inteiro só fazendo jogatinas com a moeda local.
Voltemos ao ídolo de João… Ele diz que o capitalismo precisaria “estrangular a revolução proletária por um longo tempo”, isso foi fácil através do atendimento das pautas do movimento obreiro. E depois “escravizar a China completamente, depor a república soviética”.
Afora as obviedades, se João tivesse lido O Capital veria que ele precisa se reinventar e se expandir constantemente quebrando inclusive as fronteiras geográficas e que o novo passo do capitalismo visto pelo seu ídolo, foi visto por um cem número de liberais. Mas há algo mais profundo que João compartilha com seu ídolo; a vida já era socialista na URSS se não fosse o stalinismo. Incapaz de observar que não basta somente abolir a propriedade privada dos meios de produção, mas suprimir o modo de produção operado pelos meios de produção, João segue na convicção que houve socialismo na Rússia.
Joao não consegue compreender a crítica categórica e por isso passa ao largo de uma crítica profunda que permita orientar a luta cujo horizonte seja efetivamente emancipador, ele é como uma criança vendada que não consegue estourar o bexigão. Mas, o mais impressionante é sua miopia quanto a luta da classe trabalhadora no século XX, miopia que ele me acusa cometer simplesmente porque questiono.
Ele simplesmente pula os anos do Wellfare State e acredita que o recrudescimento porque passa os trabalhadores agora em seus direitos se perpetua desde sempre. Ele não acha que a luta tenha produzido uma sociedade “menos injusta” para, por exemplo, a classe trabalhadora europeia. Ops… João é do século XIX.
Não entende a ironia do texto e é mal leitor: acredita que a novidade do meu texto é a reestruturação organizativa do capital a partir da década de 1970. Pobre João. Não entende que o que esgotou a capacidade revolucionaria do marxismo tradicional, foi o fim do processo de modernização do capital. E que esse tipo de marxismo foi um complemento a modernização do próprio capital.
João é um protestante do trabalho que não entende que o marxismo tradicional é farinha do mesmo saco porque parte dos mesmos pressupostos ou dos mesmos erros. O que caracteriza o marxismo tradicional é enxergar o processo de exploração somente na circulação e não no processo de produção.
O seu dogmatismo é tanto que recortou meu texto e como de praxe passou a tesoura em Marx e nem se deu conta de minha sucinta crítica a própria crítica do valor… Mas, ter escrito isso do valor foi demais, segue a pérola: “como diria Marx: a crítica roedora de ratos”. João não entendeu a crítica de Marx e a usa de maneira torpe e fora do contexto (risos). Explicar a quem essa crítica do velho barbudo se dirigia seria um favor a ele que sinceramente ele não merece…
Mas, o mais interessante desses tipos de Joões é querer desqualificar a crítica (ou a teoria) pela provação prática, como fica claro nesse excerto, segundo ele eu: “Quer(o) reduzir tudo a um denominador comum, que não existe. E não consigo dialogar com o movimento real (se é que tem esse interesse!).
Que diabo seria movimento real para João? A seita? O sindicato? A soma de todas as coisas? O contexto geral cujo a coruja de minerva chega sempre a noite quando tudo é ruína? Ele consegue dialogar com esse movimento real? Já sei, João é o grande dirigente!
Por fim, preciso dizer para os escassos Joões mundo afora que não tenho interesse em defender a teoria desse ou daquele, mas encontrar mediações que determinem uma crítica-teórica capaz de ajudar na transformação radical e verdadeiramente emancipatória da sociedade.
Frase sintomática:
“Vender a força de trabalho na era de flexibilização do capital tornou-se um privilégio.”
Essa frase é a que todo e qualquer chefe ou empresário em todo lugar e em qualquer época do capitalismo repete interminavelmente nos ouvidos de seus subordinados e dos demais oprimidos. Afirmar uma frase assim no mínimo é ignorar completamente o que é uma relação de dominação, de hierarquia e exploração. É ignorar que a dominação é sempre e em todo o lugar baseada em recompensas e punições (promete migalhas de privilégios, salário, micro-cargos e ameaça tirá-los) de modo que os oprimidos se digladiem pelas migalhas de hierarquia “oferecidas” pelos patrões ao invés de se associarem autonomamente como iguais contra eles. É ignora que esse é o estado “normal”, “permanente” dos oprimidos na sociedade de classes (em qualquer século que seja), porque se não fosse, a dominação já teria sido superada. Os momentos em que essa normalidade é rompida não são nem nunca foram “normais”, mas exceções, e cujos esmagamentos nada dizem sobre suas potencialidades libertárias. Então, afirmar uma frase assim demonstra ou ignorância ou adesão à normalidade.
Qual o problema imanente à sociedade da mercadoria que é o vetor que pode levar além dela? Simplesmente ela não pode deixar de reproduzir ampliadamente aqueles que – numa sociedade em que a venda de mercadorias é a condição absoluta de existência – não tem absolutamente nenhuma mercadoria para vender: nada mais nada menos do que o proletariado. Por isso, exista ou não “crise do valor”, o trabalho e a sociedade da mercadoria só existem como negação de si para aqueles que não possuem mercadorias. Os que possuem mercadorias para vender (os capitalistas, os burocratas, etc) tem necessariamente o interesse oposto. A ênfase kurzista/postonista na divisão do proletariado em empregados e desempregados inempregáveis, ou na hierarquia de salários e cargos, apenas vê, acata e sacraliza o poder dos que possuem mercadorias, poder que consiste justamente em fazer os proletários concorrerem para vender a si mesmos como mercadorias aos agentes do valor (a classe dominante). A ideia de que proletários e capitalistas devem se unir em torno de uma “consciência da crise do valor” para superar o valor é simplesmente “non sense” em estado puro.
Mas o mais irritante nesse texto (como de tudo mais que já li da escolástica kurzo-postonista) é a generalização acusatória e arrogante orgulhosamente ignorante de que a crítica do trabalho, a crítica do leninismo, a crítica da sociedade da mercadoria, a crítica da política e da economia já eram e continuam sendo feitas por muitos grupos e indivíduos de uma perspectiva da autonomia do proletariado, da autonomia daqueles que não possuem mercadorias, e não da perspectiva pequeno-burguesa de união entre classe dominante e oprimida.
Me parece que os comentários suscitados pelo lúcido texto acima não se importaram com a fundamentação dos argumentos, mas sim em somente marcar uma posição e assegurá-la com unhas e dentes atacando a forma do texto e girando em falso, como a extensa crítica de João Paulo. Não me parece igualmente que a frase sintomática do texto seja a de que; vender a força na era da flexibilização do capital se tornou um privilégio, como afirma humanaesfera, pois a tendência mundial é essa, vide não só a precarização sofrida em todo o mundo do trabalho, como o crescimento mundial do desemprego. Em que pese os problemas encontrados no texto de Douglas nenhum dos comentários até agora se preocupou em discuti-lo a partir de sua fundamentação teórica e ao acusa-lo de a priori ideológico somente reafirmam o que texto pretende discutir. Assim, seu autor acerta quando diz que estes se baseiam na ideologia revolucionária em detrimento da teoria revolucionária (frase tomada de empréstimo de Guy Debord).
Mas, não quero discutir com estes e sim com o que se oculta nas vísceras do artigo, daí sim poderemos pensar uma crítica ao texto que saia da posição de torcida ressentida que foi encontrada nos dois comentários feitos tanto por João, quanto por Humanaesfera. Inacreditavelmente dois antípodas do marxismo, um trotskista e o outro conselhista libertário. O que só mostra que a crítica do texto tem razão de existir em função de algo mais profundo que ambos não se deram conta.
Douglas
Há na tendência kurziana – e veja bem, não lhe alcunho de kurziano porque me parece que você tateia o tempo todo uma crítica a crítica do valor – uma tentativa de radicalizar a crítica de Marx, mas que dá menos ênfase a crítica do capital e mais ênfase a sua forma elementar; a mercadoria. Nisso se reduz várias mediações a um denominador comum, qual seja: todas as sociedades contemporâneas ficam subsumidas ao sistema produtor de mercadorias. E assim, todas estas sociedades estão aprisionadas pelo trabalho.
Obviamente a leitura que faz Kurz do Capital é muito melhor que centenas que encontramos por aí principalmente a nível internacional ou a dos comentários acima, quando se torna risível a citação de Trotsky, (além de fora de questão, o velho bolchevique tem uma concepção fechada e positivista de que só seria possível quebrar as enormes barreiras de classe acabando com a interdependência das nações, ou seja, um erro crasso). Mas, me parece que o deslocamento da crítica ao capital para a crítica da forma mercadoria conduz a uma pobreza em termos de compreensão da realidade efetiva e esse é o ponto nevrálgico da discussão. Naturalmente a forma mercadoria domina o comércio mundial e também é a forma elementar, mas enquanto fundamento – como afirmava Kurz – ela permanece como fundamento negado. Isso implica uma redução da análise a um único pressuposto e impede de verificar as especificidades das partes. E como você soou hegeliano em certos momentos, sabe bem que o Todo é a síntese das Partes negativamente, portanto, até que ponto vai esta crítica e até que ponto ela nos serve como iluminação dos acontecimentos engendrados pela crise estrutural do capitalismo?
O segundo ponto é a crítica do trabalho que fica explicita no seu texto: em a Crítica do programa de Gotha me parece que há mais um elogio do trabalho do que uma crítica. Na Ideologia Alemã e nos Manuscritos de 1844 temos algo assimétrico em que ele fala sobre uma espécie de “fim do trabalho”. Ao final do III volume do Capital Marx fala de uma redução progressiva que, no entanto, não asseguraria o fim do trabalho, mas pelo contrário ele sempre estaria ligado as sobras do reino da necessidade. Nos Grundrisse me parece que há algo mais importante para a sua crítica (e não para a de Kurz) que é a mudança do trabalho para atividade cientifica, isso sim estaria mais no horizonte do período da transição socialista.
A ótica de Kurz me parece partir do prisma de que a produtividade por meio do incremento da tecnologia levaria a efeitos catastróficos sobre o valor. Isso soa bem estranho tendo em vista que ele poderia demonstrar que por meio dela o trabalho poderia se tornar agradável, principalmente num processo em que a revolução, como você mesmo disse, “suprimisse o modo de produção operado pelos meios de produção”. (Aliás fantástica compreensão do papel do socialismo e da tarefa a ser levada a cabo).
Nisso me parece que se encontra o erro fundante de Kurz. Primeiro há uma grande redução a economia, como se toda política se reduzisse as contradições imperadas no mundo da mercadoria. Kurz concede as forças produtivas um poder de transformação esquisito e fora de lugar e se esquece de que o que se vende não é o trabalho em si, mas a força de trabalho. Por isso, o homem continua sendo homem e não máquina. Diferentemente, por um lado, o bom Marx tem a clareza de não afirmar que o trabalho ira desaparecer, mas se reduzir, por outro lado, ao contrário dos sectários e maioria dos partidos de esquerda, não considera o trabalho como algo ligado ao reino da liberdade. Isso é um pensamento radical! Assim, a negação radical do trabalho por Kurz acaba tropeçando em certos limites da realidade efetiva, fora outros problemas que me soam mais como uma busca de reconciliação social que tem parâmetros só no romantismo alemão.
Então caro Douglas deixo aqui minhas indagações e espero que possamos dialogar com franqueza…
pronto; mais uma crise “final” do capitalismo…deve ser a terceira este ano…
Sobre luta de classes (isto é, o antagonismo internacionalista, não confundir com instituições “mediadoras”, como sindicatos e partidos), não se trata de positivisticamente apoiar um “dado”, um “fato”, mas de afirmar a única posição honesta e necessária diante da situação que nos deparamos, essa situação é:
A) massacre mútuo dos proletários, que, esmagados como classe, se unem a suas classes dominantes étnicas, empresariais ou nacionais em nome de combater bodes expiatórios, esmagando a si mesmos; (um anticapitalismo sem luta de classe desemboca necessariamente em algum anti-capitalismo identitário, etno-socialismo, nacional-socialismo, ou seja, fascismo – inclusive estalinista); (Isso é melhor explicado aqui: http://goo.gl/dygGtJ)
B) a interdependência mundial decorrente do mercado mundial, fazendo a superação (contra retrocesso reacionário) deste ser possível apenas por uma ação mundial que liberta os fluxos produtivos da propriedade privada. Só isso permitiria à população mundial superar a mercadoria, a forma valor, e formar um novo modo de produção libertário. (Isso é melhor explicado aqui: http://goo.gl/sDYZ1j )
C) Mas a tese principal é que a única força que sustenta a forma-valor é a proletarização: a propriedade privada (isto é, o Estado e seu subterrâneo inseparável, o crime) coage a população a ter que vender algo para sobreviver, mas sem ter nenhuma mercadoria a oferecer, só lhe resta vender a si mesma, oferecendo suas capacidades como objeto de consumo para os capitalistas. A coação à vender as capacidades humanas é o único fundamento da valorização incessante do valor. Consequentemente, a luta pela superação do valor é necessariamente a luta do proletariado, enquanto que a classe dominante luta necessariamente pela preservação do valor. Em suma: é impossível a superação da mercadoria sem a luta de classes.
Sobre Lukács: Creio que em história e consciência de classe ele não fique restrito ao âmbito da circulação. Conceitos como “Reificação”, a meu ver, expressam claramente o compromisso da teoria lukácsiana com o processo de produção.
Teresa Lima,
Tenho muitas críticas a Kurz e algumas muito comuns às suas, como a prioridade da crítica à mercadoria e ao dinheiro em detrimento do capital. Me parece que ele sobrepõe ou identifica o capital à mercadoria, e isso efetivamente empobrece o resultado.
Mas tenho que defendê-lo quanto à crítica do trabalho. Ao contrário do que afirmava André Gorz, desenvolvimento do capitalismo não implica redução do trabalho NESTA SOCIEDADE. Ele simplesmente abre uma possibilidade histórica de transformação tanto quantitativa (com uma redução substancial do tempo de trabalho) quanto qualitativa (decisão coletiva de produção, identidade entre produção e consumo, ressignificação da relação lazer-trabalho, entre inúmeros outros pontos) do trabalho, mas apenas em meio a um processo revolucionário.
Quanto à contradição entre aumento de produtividade e crise do valor, é melhor recorrer a Postone do que a Kurz. É um autor mais substantivo, aliás. Indicarei sem aprofundar que, na medida em que os espaços de valorização do capital são colonizados, cada vez menos trabalho pode ser empregado devido ao limite populacional. Com isso, o aumento de produtividade (com a mais-valia relativa) passa a ser a forma predominante de obtenção e incremento da mais-valia. Mas quando esse movimento predomina, a tendência é de expulsão dos trabalhadores do setor produtivo. Acontece que essa galera expulsa não vai pra praia pegar sol. Eles precisam recorrer a meios menos produtivos para se apropriarem da renda geral. Então o trabalho, para essas pessoas, continua sendo tanto ou mais exaustivo do que nos setores do centro do capitalismo.