Se há algo que 2013 nos ensinou é que vencer não é o suficiente. Por Passa Palavra

As lutas organizadas pelos estudantes secundaristas em diferentes estados brasileiros trazem elementos importantes para a reflexão sobre as lutas do período que se abre. Recentemente, foi publicada nesse site uma intensa análise feita a partir das lutas e dilemas presentes nas escolas de Goiás; também foi publicado um interessante diálogo entre os ocupantes do Centro Paula Sousa. Procurando continuar esta reflexão, destacaremos alguns pontos em relação às lutas ocorridas nas Escolas Técnicas do Estado de São Paulo (ETECs).

Diferentemente do processo de luta do ano passado, não se trata de uma luta reativa em defesa da já depreciada educação pública, mas de uma luta ofensiva que pede mais, algo além do que já está posto. Isto é ainda mais interessante por estarmos em um momento de crise, em posições defensivas, tanto pelo medo da piora das condições de vida quanto pelos cortes do governo. As ocupações das ETECs distinguem-se das ações feitas em Fortaleza, Rio de Janeiro, Goiás e mesmo das ocupações de São Paulo no ano passado porque o ensino técnico é “a menina dos olhos” da gestão tucana em São Paulo. É considerado o modelo de “formação de qualidade”, o exemplo da “gestão que funciona”; neste sentido, ao pensarmos a educação como uma etapa da formação da força de trabalho, devemos compreender que foi a parcela, teoricamente, mais qualificada da força de trabalho em formação, ou ao menos aquela de quem se espera ocupar os melhores postos de trabalho, a se mobilizar nas ocupações de ETECs.

Precisamos analisar a questão de forma mais ampla, como parte da reprodução biológica e social da força de trabalho: biológica porque os estudantes, independentemente de sua classe social, são a nova geração de uma espécie viva, e social porque a escolarização é um dos modos de reproduzir a divisão social do trabalho, a divisão entre explorados e exploradores, entre oprimidos e opressores. A escolarização é parte do processo de educação das novas gerações, um processo pelo qual são incutidas em novas gerações as qualificações necessárias (linguagem, gestos, comportamentos, conhecimento etc.) para que mantenham a sociedade em funcionamento. É característico das sociedades capitalistas que a educação não sirva apenas como reprodução de conhecimentos guardados pela tradição e memória, e assim transmitidos de geração a geração, mas que qualifique as novas gerações com qualificações antes inacessíveis às gerações anteriores; daí que ao invés de ver nas gerações precedentes um repositório de conhecimentos a ser respeitado, as novas gerações vejam nelas, no limite, obstáculos à sua plena realização pessoal. A formação de grupos com códigos acessíveis apenas a iniciados, o rápido domínio de técnicas que lhes aparecem como o já-dado no mundo (ao contrário daqueles que as viram surgir como novidades e precisam aprender tudo de novo), o atrito constante com os mais velhos, tudo isto são como que sintomas deste processo.

A qualificação da força de trabalho “encarnada” nos estudantes é o output, o resultado do processo de reprodução social da força de trabalho; os estudantes, por este ponto de vista, seriam a “matéria-prima” a ser moldada, ou seus portadores (afinal, a força de trabalho não é o próprio trabalhador, mas algo que ele possui: a capacidade de criar valor), e não os trabalhadores que conduzem o processo (professores, merendeiras, faxineiras etc.). Estudantes, todavia, não são simples objetos moldáveis ao sabor dos ritmos da produção; interferem na sua qualificação de vários modos, que vão desde “dar nó” nos professores até a ocupação de escolas. São, também eles, sujeitos deste processo – só não vê quem não quer.

É por este ponto de vista que encaramos a principal reivindicação dos estudantes: a merenda. A alimentação é parte fundamental das condições de reprodução biológica e social da força de trabalho: dado que o organismo humano precisa de nutrientes para se manter em ação ou mesmo em movimento, é óbvio que um trabalhador insuficientemente alimentado diminui sua produtividade. O mesmo vale para os estudantes: apenas conseguirão se capacitar de maneira efetiva se tiverem condições de se alimentar adequadamente. Os estudantes, ao ocupar as escolas e órgãos públicos reivindicando a merenda, estão colocando em prática não apenas uma simples luta por alimentação enquanto condição para sua formação enquanto força de trabalho qualificada – o que não deixa de ser parcialmente verdadeiro – mas também uma luta em torno da produtividade no processo de reprodução biológica e social da força de trabalho. Para eles, o responsável pelas condições mínimas de produtividade da formação dos trabalhadores devem ser os responsáveis pela manutenção do status quo, encarnado neste momento no Estado de São Paulo. Vistas as coisas desta forma, e considerando que são filhos de trabalhadores em sua maioria, o resultado mais imediato da luta dos estudantes é garantir que não seja lançada apenas sobre suas famílias a conta pela sua qualificação, em que a alimentação adequada é parte importante, possibilitando que esse montante seja usado para outra finalidade; ao mesmo tempo, responsabiliza politicamente o governo do Estado pela precariedade na sua qualificação.

Neste momento em que se questiona qual deveria ser a postura dos trabalhadores frente à conjuntura e quais lutas a esquerda deveria levar adiante, os secundaristas parecem apontar caminhos concretos ao exigir uma melhoria das suas condições com a ocupação das escolas e órgãos da educação. Do seu ponto de vista, são simultaneamente locais de sociabilidade (na medida em que permitem formar um primeiro campo de relações extra-familiares) e de trabalho (na medida em que participam ativamente do seu processo de qualificação), e é nestas duas perspectivas que as ocupações têm acontecido: basta ver as atividades desenvolvidas nas ocupações para confirmá-lo. A ação mostrou-se acertada não apenas por uma potência discursiva ou pela construção de uma ideia de combatividade, mas justamente pelas conquistas obtidas: em menos de uma semana de ocupações foi anunciada pelo governador a construção de refeitórios em dez ETECs, além do anúncio público de que serão oferecidos marmitex aos estudantes do período integral. Por razões óbvias a quem conheça o livre trânsito de pessoas e informações entre a imprensa e o Estado, estas conquistas concretas tiveram muito menos destaque quando comparadas à divulgação de outros acontecimentos relacionados às ocupações.

O curto prazo em que esta luta obteve sucesso pode ser relacionado a diferentes hipóteses. A primeira é a de que esses estudantes por fazerem parte de um setor mais qualificado da classe trabalhadora em formação tem um maior poder de pressão, pois o impacto da paralisação das ETECs é maior que o da escola regular. A segunda é a de que o governador Alckmin aprendeu com o desgaste sofrido pela luta das escolas no ano passado, na qual a massificação de ocupações forçou o governo a recuar de seu projeto de reestruturação e abalou a popularidade do governador. A terceira é a de que a conjuntura nacional, com o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, teria agilizado as respostas do PSDB para que o foco no governo federal não fosse desviado, tampouco novas mobilizações de massa ocorressem. Essas três hipóteses relacionam-se com diferentes dilemas da esquerda que se fizeram claros nessa luta.

O primeiro dilema se dá justamente na propagada construção da unidade entre trabalhadores e estudantes: embora seja correta a afirmação de que os interesses de ambos são convergentes, a prática parece ter sido mais complexa do que esperado inicialmente. As ocupações das escolas técnicas foram feitas por estudantes que ainda estão no ensino médio e não estão, em sua maioria, inseridos no mercado de trabalho, portanto não são exercidas sobre eles as mesmas pressões a que estão submetidos os trabalhadores já na ativa. Entretanto, este não é o único público presente nas ETECs: muitos as procuram para conseguir promoções, aumentos salariais, reinserção no mercado de trabalho, ou mesmo a manutenção do emprego em um contexto de redução de postos de trabalho; estes trabalhadores procuram geralmente o curso noturno e não têm contato com os demais estudantes. Ao se defrontar com estes trabalhadores que estudam, a fração encarregada da organização das ocupações encarou sérios problemas diante de trabalhadores mobilizados não pelas pautas comuns ao movimento, mas pelos seus próprios interesses: não perder seus empregos, demandando, assim, a volta das aulas para concluir o mais rapidamente o curso e garantirem seus diplomas como possibilidades de melhores colocações no mercado. Eis, então, o grande desafio, de que forma seria possível fazer com que essa parcela de estudantes que já respondem totalmente às demandas do mercado de trabalho se somassem às pautas e luta coletiva de uma força de trabalho ainda em formação? Este conflito foi amplamente aproveitado pelos gestores estaduais que incentivaram a ação, por vezes violenta, dos estudantes do noturno contra os ocupantes.

Isto nos leva ao segundo dilema: as ocupações de escolas que se apresentaram como uma novidade tática perante as limitações das ações de rua foram também fetichizadas? Esta pergunta se faz particularmente relevante quando vemos a apropriação das ocupações sendo feita por uma entidade estudantil com a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), que ocupou a Assembleia Legislativa de São Paulo exigindo a realização de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar a corrupção em relação as merendas, com o intuito claro de criar um desgaste para o governador tucano Geraldo Alckimin. Com o bloco dito “democrático e popular” recentemente apeado do governo federal, ações como esta tendem a se tornar ainda mais constantes. Entretanto os indícios de banalização da tática estão longe de serem algo exclusivo das organizações consideradas pelegas: a ocupação da E.E. Fernão Dias Paes, que durou apenas um fim de semana e foi desocupada pelos próprios alunos, é um forte indicativo disso. E a ocupação das delegacias regionais de ensino? Quais consequências políticas esperávamos dessas ações? Será que a única mobilização possível para essa luta seria as ocupações?

A conjuntura pré-impedimento trouxe algumas novidades quanto à ação das forças repressivas em relação às forças políticas opositoras ao governo interino pós-impedimento, especialmente porque o então secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, foi nomeado ministro da Justiça. A primeira ação inovadora se deu em relação à ocupação do Centro Paula Souza, que contou com a entrada da PM sem determinação judicial: baseado na lei de greve, o então secretário e hoje ministro equiparou a ocupação a um um piquete, que por limitar o acesso aos locais de trabalho (e portanto, em termos jurídicos interpretados de forma conservadora, restringindo o direito de quem pretendia continuar trabalhando após a paralisação) poderia ser desfeita pela polícia. Esta ação, porém, foi derrotada judicialmente e o ex-secretário e hoje ministro foi interpelado a se explicar perante o Judiciário. Tamanha audácia ainda o levou – aparentemente – a outra derrota, ao ser obrigado pela justiça a comparecer na reintegração de posse definitiva, que deveria ser feita sem o uso de armas pela força policial. Novamente a resposta de Moraes foi rápida: negou-se a cumprir a decisão por considerá-la ilegal e entrou com nova ação de reintegração; evitando que fosse julgada pelo mesmo juiz, conseguiu assim a autorização para o uso de armas. No mesmo dia em que assumiu o Ministério da Justiça, Moraes mais uma vez inovou: as ETECs que se mantinham ocupadas foram acordadas pela ação policial sem que existisse nenhuma ordem judicial nesse sentido, sob o argumento da autotutela, como se as escolas fossem um bem privado do governo de São Paulo. Esta ação foi amplamente condenada no meio jurídico e recebeu críticas públicas da Ordem dos Advogados do Brasil. No entanto, a desocupação já era fato consumado, e os comentários negativos nada poderiam fazer para revertê-la. Parece, ainda, que Moraes aprendeu com as repercussões negativas de ações de violência extremada das forças policiais e evitou criar nas desocupações cenas que pudessem ser utilizadas como denúncia. Sua chegada ao Ministério da Justiça parece indicar uma preocupação em repertoriar o Governo Federal com ações inovadoras de repressão aos movimentos, acompanhada de um discurso de que o tempo de tolerância com “ilegalidades” teria acabado. De que maneira a militância anticapitalista está preparada para lidar com estas – e outras – novas formas de repressão?

Nenhum destes dilemas, apesar de tudo, impediu a vitória dos estudantes mobilizados. Ainda assim, a reflexão sobre os mesmos parece fundamental para que elaboremos novos caminhos; afinal, se há algo a aprender com as mobilizações de 2013 é que vencer não é o suficiente.

4 COMENTÁRIOS

  1. Um problema nessa discussão é o fato de a luta das etecs se dar de forma separada da luta dos demais estudantes. Se por um lado os trabalhadores estudantes se sentem parte separada e interessados mais na formação que na luta, por outro lado é importante observar que a luta das etecs poderia ter sido deflagada junto com a luta dos estudantes normais, no ano passado.

    Na vida, as coisas não ocorrem por acaso. E se os alunos das etecs resolveram fazer sua luta este ano, de forma separada, é para marcar, também no campo da luta, a sua distinção com relação aos demais estudantes, uma vez que são alunos mais qualificados e que recebem um ensino de melhor qualidade.

    Temos ai a velho problema que condenou e há de condenar sempre as utopias comunistas, igualitárias. Mesmo dentre os que se pretendem críticos, do campo anticapitalista, mesmo dentro das lutas contestadoras se desenvolvem sempre e desde o início formas de segregação e hierarquização.

    Como uma tragédia grega, o capitalismo tem e terá sempre polos de contestação e de luta, mas que reproduzem sempre outras formas de hierarquização no seu bojo. O único risco que o capitalismo corre é o de ser substituído por outra forma de poder, outra forma de exploração ou, como é mais corrente, ter apenas substituídas as pessoas no comando.

    Ai temos outra questão: por que os trabalhadores preferem os governantes e patrões atuais ao invés dos candidatos a governantes e patrões de esquerda?

    Por que Dilma foi trocada de uma forma tão tranquila, sem nenhuma movimentação mínima de reprovação por parte dos trabalhadores?

  2. ESQUIZOMAQUIAVELIZANDO O PODER ou SORRY, NÃO SEI DESENHAR

    poder (o que é): hegemonia (astúcia) + ditadura (força)
    poder (como funciona): hegemonia (esquerda contém) + ditadura (direita reprime)

    o que o mais otário dos proletários está farto de saber
    e que os intelectuais orgânicos não conseguem perceber:
    esquerda e direita são polos internos & [pseudo]antagônicos do kapitalestado.

  3. Exatamente, Ulisses. Esquerda e direita são dois polos do CapitalEstado.

    Tem uma cena que nunca vou esquecer na minha vida, uma cena aterradora. Foi a dos memplos do MPL, todos uniformizados de preto, indo para Brasília se reunir com Dilma. Naquele dia eu olhei e pensei:

    mesmo no campo mais libertário, mais autônomo, mais crítico, o que foi que formamos? O que foi que criamos? O que foi que apoiamos? Pessoas formadas e prontas para assumir o poder. E foi por muito pouco que dali não saíram novos gestores do transporte.

    Toda a esquerda, mesmo a mais radical, não consegue deixar de reproduzir hierarquias, discriminações e carregar consigo projetos de poder.

    Nisso tudo e através da história é curioso que em quase todos os países os trabalhadores preferiram um capitalismo produtivo e que se tornou democrático pela expansão do consumo do que os projetos da esquerda.

  4. SOCIEDADE DE CONTROLE
    “A melhor maneira de evitar que um prisioneiro fuja é ele não saber que está preso”. – Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski
    Se o diretor da penitenciária é de direita e o carcereiro é de esquerda, ou vice-versa, faz alguma diferença?

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