Meu amor é dialético e sabe que a materialidade do corpo é só um pretexto para a realização dos desejos da alma. Amei Carol ontem. Hoje já não sei. Por Helo

Esta é a primeira carta da série Cartas Estudantis, escritas por Arthur e Helo. As demais serão publicadas nos próximos domingos.

São Paulo, 3 de abril de 2016.
Querido Arthur,

Seria melhor que esse anseio não fosse causado por meu deslumbre em viver na cidade universitária.

Pela janela, janela-aberta, o mundo inteiro observa meus sentimentos desnudos. Talvez a compreensão de minhas escolhas esteja oculta nas taças de minha memória. As vezes tomo alguns tragos e isso sempre implica em retrocesso. Só dogmáticos precisam de autocrítica. Eu gosto é de errar.

Tudo me é fascinante. Eu te amo cada vez mais. A exaltação desse amor cresce à medida em que me deleito noutras almas. Sou sua mulher e você é meu, sem título ou exclusividade. Basta.

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Você sorridente, ao me deixar na rodoviária, recomendou-me escrever como exercício crítico e lembrei-me que isso nos manteria próximos. Depois da estranha noite de ontem, talvez consiga escrever um cadinho. Eu quase necessito de me sentir vencida para irromper com alguma verdade provisória. “Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa”.

Parece que me ambicionam por algo que não sou. Meus gestos, atos. Meu batom. Criam em mim uma imagem desbravadora. Rasgam-me com olhares e me reviram do avesso como se nada fosse constituído por contradição.

É Carol que me desperta uma incrível sensação de potência. Apesar de ser vacilante, sou feliz em sua companhia. Seus olhos são paixão. Fogo.

A solidão, você bem sabe, me atrai. Mas a minha dependência pelo outro constitui um traço marcante em mim. As mãos de Carol, os olhos e os modos me torturam, pois presencio nela um eu que sou. Narcisismo que me resseca e me suprime ante meu reflexo. Disso, porém, ela nada sabe porque coloca em mim dedicação e originalidade que a ela pertencem.

felix_labisse_swordCarol esperava-me frente ao morrinho da história. Tinha usado tudo como pretexto para me encontrar lá. Havia saído da aula. Queria ficar comigo. É fácil achar as razões quando existe vitalidade nas ações. Vitalidade em viver. Opus pouca resistência a oferta de me conduzir ao seu apartamento. Cheguei a deixá-la esperando, usando como pretexto as impressões dos livros que, supostamente, o professor Safatle tinha pedido. Fiz um jogo ridículo que somente a má-fé e a vacilação nos impõem. Sabia, contudo, que tínhamos afinidades eletivas suficientes para debruçarmos nossos corpos nus em qualquer cama.

Finalmente, fomos para seu apartamento cujo cheiro de limpeza tomava todos os cantos. Filtro dos sonhos, lençóis limpos e belas cortinas nas janelas. Tínhamos rido muito por alguns estudantes de inteligência aguçada terem nos cobiçado. Realmente, estávamos lindas ontem: Carol com seus dreads e eu com certeza parecendo ter saído da puberdade. Tinha sido um dia tão esplêndido, que cheguei à conclusão que estou sendo feliz.

Estávamos sentadas na cama observando um quadro belíssimo que ela tinha pintado. A noite já se erguia maravilhosa e fresca. Passei o braço pela sua cintura. E procurei com a cabeça descansar no seu ombro. Estávamos a sós. Recuei do gesto. Insegurança e vacilação. Ela me olhou num misto de espanto e frustração. A alegria me perturbava. Não sabia se avançava ou retrocedia. A ternura tomou sua face e ela me pegou pelas mãos. Quis voltar para a mesma posição. Sentei-me e com a cabeça em seus ombros sentia-a bem junto a mim. Seu hálito de cereja se aproximou quando inclinei a cabeça e nossos lábios se encontraram.

Carol procurou meu corpo. E pela primeira vez compreendi que o ato sexual podia ser mais do que o encontro dos sexos. Mas quando todo meu corpo buscava no de Carol a sua satisfação. Quando o gozo entalava nossa garganta, me veio o golpe brutal. Carol chorou. Não um choro de satisfação, mas de culpa e angústia.

Não tenho amadurecimento sexual. Geralmente o sexo me traz asco. Mas, minha plenitude está aflorando. Na noite passada estive na antecâmara do fruto maduro de minha sensualidade. Se, a dor e o ressentimento não tivessem surgidos nas lágrimas de Carol, estaria satisfeita com mais uma descoberta sobre meu corpo. Suas lágrimas levadas por um sentimento pio de culpa foram, para mim, mais uma decepção.

Mas que decepção? Meu tesão começa na orelha e depois se estende ao corpo. Suas lágrimas pós coito e gozo despertaram-me ternura. Amo mais as almas que os corpos. Meu amor é dialético e sabe que a materialidade do corpo é só um pretexto para a realização dos desejos da alma. Amei Carol ontem. Hoje já não sei.

532fc22eff27ae694955c35738e106edNão sei, Arthur, se você é capaz de compreender esses mistérios da alma. Carol trouxe tudo à tona. E tive pena. Pena e asco pela decepção que me provocou ao não conseguir enfrentar a liberdade. Logo depois uma ternura de amizade nada em comum com a paixão. A culpa assalta nossas almas, ser mulher não é fácil. O aprendizado é constante. E basta. Noite estranha, mas ainda assim feliz. Confusão.

Depois das lagrimas de Carol, tive que manter uma postura de firmeza. Se você soubesse, meu amigo, como me torturava aquela pose. Aquele esnobismo grosseiro de segurar os cigarros com a ponta dos dedos.

Tanta culpa por uma abstração que reina sob nossas costas. Carol é de família religiosa. Nascida e criada com dogmas e promessas de felicidade futura. Uma rebelde que embora tenha se libertado de muita coisa, sente ainda o peso da culpa. Temos nosso deus ainda que Deus tenha morrido. Triste. Mas, em nós mulheres, a religião é bem mais arraigada. Tenho curiosidade para saber o motivo.

Essa foi uma grande história. Como me pediu para dizer tudo, está tudo aí.

* * *

Agora me responda o seguinte: o que tinha na cabeça quando me pediu para ler “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”?

Eu li. Reli. E a única coisa que me agradou, aliás, a única personagem que me agradou, foi Mignom. A trupe de teatro, e a discussão que Meister faz a respeito, também tem algo a ser extraído. É o único momento em que a vida do herói tem sentido. De resto, a conformação é ultrajante.

Não sei. Schiller e Goethe me parecem estar para além dos Anos de aprendizado. Talvez eu idealize o autor de Fausto. Por outro lado, sei que o livro não mente em nada e é um retrato fiel dessa sociedade. Se conformar a sociedade burguesa é realmente entediante. Por isso o livro a cada página se torna mais tedioso. O final é um tédio só. A sociedade secreta é só um pretexto para tentar incutir algo que esteja para além dessa panaceia do lucro. Chato.

Por isso, exijo respostas e uma discussão afiada sobre o Romance de Formação. Nada nele me convenceu. Prefiro, de toda alma e coração, Michael Kohlhaas de Heinrich Von Kleist. Nesse você acertou em cheio. Será que tenho a alma romântica? É claro que a preferência aí não é do gosto.

* * *

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Morro de saudades. Que é, ou alimento do amor. Ou água em brasa. Mas, meus seios ardem por ti. Meu coração palpita. Quero te deitar no meu colo para saber as novidades. Como se encontra o coletivo de teatro? Ainda atua com o método de Boal? E suas paixões? E sua companheira? Está bem? São tantos motivos para cartas, que suspeito que os papeis que temos serão o suficiente.

Aliás, ingressei ontem num coletivo feminista. Lá encontrei centenas de mulheres valorosas. Maiores detalhes te darei depois. Encerro aqui. São poucas palavras para um grande amor. Mais um desabafo que será duplicado quando a sua reposta estalar diante nos meus olhos ansiosos por elas.

Tua Helo
Heloísa Anselmo

As imagens que ilustram a carta são de Felix Labisse.

A primeira carta de Arthur a Helo pode ser lida aqui.

7 COMENTÁRIOS

  1. oi! vcs podem passar outras informações sobre os escritores das cartas? de onde eles são? de que tempo? . . . que espaço? . . . abs, laura

  2. Cara laura,

    Essa ainda é a primeira das cartas, talvez tuas questões possam ser respondidas nas próximas a serem publicadas, ou mesmo nessa.

    Mas lembramos a você, e aos demais leitores, que os comentários são espaços de interação com os textos e ideias publicadas, como defendemos em nossa Apresentação (http://passapalavra.info/2009/02/12), o que te permite tambeḿ expor tuas proprias respostas às tuas indagações.

    Cordialmente,
    Coletivo Passa Palavra

  3. Helo,
    Quando a Bia me chamou inbox e me contou, respondi que era engano, que ela estava louca. Mas agora vejo que é verdade, você fez isso! Eu sabia que te faltava um parafuso ou dois. Eu sabia, não foi por falta de aviso, que você podia me machucar, com esse seu jeito menina levada que lê sobre mecânica quântica em alemão. Eu sabia sim. Mas nunca, nunca mesmo imaginaria que sua insensatez e falta de cuidado consigo mesma chegaria ao ponto de cometer um disparate contra mim. Isso que você fez não se faz nem com uzomi. Publicar uma carta para o seu namorido informal em que simplesmente me expõe desse jeito cru. E onde? Justo no Passa Palavra, esse site esquerdomacho que tem fixação em criticar tudo, desde feminismo até homeopatia e toda luta que não tenha sido eles que construíram. Dividi com você minha intimidade. Chupei sua buceta enquanto você gozava, cedendo aos meus dedos e língua, e isso minutos depois de debatermos sobre feminismo radical e você me retribui assim, me expondo no território inimigo. Eu, que havia me sentido ofendida quando você me chamou de feminista excludente, mal podia esperar pelo que me aguardava, não é? Traidora! Que bom que você entrou para um coletivo feminista, quem sabe aprende alguma coisa sobre sororidade e patriarcalismo, e pensa duas vezes antes de expor uma mana assim. Você diz que me amou ontem, e que hoje não sabe. Pois eu te amei também, e infelizmente ainda amo, mas também te odeio pelo que você acaba de fazer. Deve ser porque sou uma rebelde de família religiosa que sente o peso da culpa quando trepa, não é? Cretina! Você diz que ser mulher não é fácil, e aí expõe uma mulher, uma amiga e companheira tua, desse jeito! Por que? Por que você fez isso, Helo? Saiba que aquele dia não chorei por culpa, mas por amar você e por me sentir infinita quando estou com você e por saber que você, com essas suas ideologias de fluidez e leveza e não sei mais o quê nunca seria minha de verdade. Você me deu prazer, um orgasmo carregado de sentido, orgasmo compartilhado que só acontece quando camaradas de luta, militantes que vivem por uma causa que vale a pena, se tornam amantes. Mas do mesmo modo que deu, você tomou, e não valeu a pena! Agora tenho nojo dessa boca que beijei e desses dedos que acariciaram meus peitos e que dias depois escreveriam isso e publicariam num site que implica com as feministas, em vez de apoiá-las. Golpe baixo que eu não esperaria vir de uma camarada. Enfim, Heloísa Anselmo, você disse que sentiu que era feliz naquele dia, quando estava comigo. Pois saiba que agora estou infeliz como nunca, e nunca mais estarei com você.
    Passar bem.
    Carol.

  4. Querida Carol
    Parafraseando um grande mestre, durante algum tempo hesitei se deveria ou não responder tua provocação. Tendo em vista que não poupou os adjetivos, deixe-me respondê-la com substantivos. Porque aqueles passam, enquanto estes ficam e não são participantes da última moda linguística para a qual basta mudar os adjetivos que a relação social muda. Mamãe me ensinou que sob qualquer condição devemos manter a dignidade e para não cair na sua armadilha indigna não vou ir pelo caminho que você adentrou e quer me fazer adentrar.

    Primeiro, sabendo o que ocorreu com Arthur me senti na obrigação de homenageá-lo. Você sabe a estima que nutro pela sua memória e como me é doloroso a sua falta. Segundo, em nenhum momento quis expô-la sob uma luz moral, moralizante, individualista e, por que não, hedonista, narcisica e egoísta. Terceiro, não é raro que na ausência de algo que nos dê sentido, nos apeguemos naquilo que, para nós, responde alguns de nossos anseios. E você faz de uma luta legítima uma religião de linguajar e conceitos da moda. Quanta palavra feia: esquerdo macho, sororidade, faltou aí o empoderwatch liberal e toyotista.

    Me desespero nesse reducionismo lingüístico que se arroga revolucionário, mas cuja essência está irremediavelmente ligada a lógica de mercado. Competição que não raras vezes se bate em argumentos biológicos e uma bagunça sem fim que afinal só serve para convertidas. Você pelo visto já entrou no jargão e se adequou ao status sororista. Uma disputa de poder que não coloca em questão a forma como o poder é administrado e gerido, mas que se bate na busca de protagonizar esse poder sem destrui-lo enquanto ressoa a pergunta: quem é mulher?

    Um horror, quantas vezes disse-lhe para ler Roswita e você me ignorou? Quantas vezes lhe disse que Butler era um regresso aos avanços propostos por uma pletora de companheiras que não estão na moda? Mas, kantianas como são, se baseiam em imperativos verbais e denegam Beauvoir que era muito mais sofisticada. Aliás raramente lêem alguma coisa é veja o resultado. Uma assembléia em que homem não vota? Quer dizer uma piada de João e Maria. Agora respeite meu lugar de fala Mon amour. (Risos)

    Religião e você continua religiosa sobre um novo verniz e incapaz de compreender meu comunismo camusiano. Sou sim uma heroína de Godot. Gozei com você, mas agora tanto faz mon amour. Eis a vida.
    Beijos da tua Helo…

  5. TUDO AO MESMO TEMPO? AGORA…
    ascensão da insignificância império da desfaçatez apoteose da extimidade
    Dale nomás! Dale que va!

  6. H. Anselmo,

    Nesses dias tenho pensado muito em você, no que vivemos, no desenrolar daquela noite mágica e no pesadelo que veio a seguir, e que ainda não acabou. Ao menos não para mim. Suas mãos pragmáticas e acusatórias sempre me tocaram como uma faca que me fatiava em pedacinhos. Era assim, me desmontando, como criança engenhosa que já aprendeu o segredo interno do brinquedo e só torna a abri-lo por puro capricho, que você me abria pétala por pétala. Então, com tranquilidade e destreza, você pegava sua caixinha de ferramentas e manuseava meus medos como bem queria, fazendo malabarismo com detalhes do meu jeito de ser, acusando incoerências e “lindezas”. E eu me deixava ser manuseada, como marinheiro aturdido pelo canto da sereia. Deixava que você expusesse minhas entranhas, fazendo piadas de meus limites como se eu fosse algo de aberração. Não chegava a ser ruim, porque estávamos entre quatro paredes, e eu via tudo aquilo como algo de aprendizado feito a dois. Eu te considerava amiga, camarada, e desejava um dia ser sua amante, pois sabia que tinha algo muito belo pra te dar. Hoje vejo que fui romântica, porque era unilateral, não era uma relação horizontal sendo construída por fora dos padrões machistas, era você professora e eu aluna medíocre. A hierarquia era óbvia, tanto que você se sentiu e ainda se sente no direito de me expor publicamente.

    Quando eu me sentia negada por você era ruim, mas toda a perversidade, que hoje reconheço naquelas críticas, quando nossas conversas e nossas confidências íntimas se tornavam algo como um objeto de estudo científico, enfim, toda a estranheza e incômodo que eu sentia eram compensados por sua boca, que em sussurros estratégicos e sempre inesperados massageava minha alma. Foi por isso, eu acho, que fiquei afim de você tão rápido. Foi arrebatador, sua boca era linda e poderosa. Eu via nela algo de sobrenatural: críticas cortantes, flertes sedutores. Sua boca era irresistível. Essa mesma boca, que agora só diz merda atrás de merda. Como você é falsa! Como é possível que a mesma pessoa que me mostrou a música “A pele que há em mim”, a mesma pessoa que colocou pra tocar a música “A menina que apagou” e depois “Um amor de morrer” e depois “Pode vir comigo” agora se mostre tão insensível, tão bruta, tão escrota? Você estava nua e tinha os dedos lambuzados quando pegou seu notebook e digitou Ana Larousse no youtube. Foi como destacar um bilhete para um trem das nuvens. Aí você me abraçou, com aquela trilha sonora e aquela pele macia de burguesinha. Me senti acolhida como quem é tocada pelo calor do Sol ao sair do mar gelado. Desmanchei entre suas pernas como algodão doce, mas foi tão leve que pesou, né?

    E agora é essa sua resposta à minha mensagem indignada? Em vez de desculpas, essa arrogância ainda mais evidente! Isso só me mostra que você faz por merecer ser promovida de Cabo a Sargento. Sargenta Anselmo, quem diria? heroína de Godot? Heroína de engodo, isso sim. Como era mesmo o insulto mais forte em espanhol? “penderra pelotuda”, pirralha imbecil, não é? Você é adepta de um comunismo camasiano, isso sim, o comunismo que começa e termina na cama, com o pragmatismo do gozo a qualquer custo, ou seja, o gozo que ferra com a subjetividade do outro sem se importar. “Tudo vale a pena se a buceta faz poema”, “Tudo vale o esforço se ao fim termina em gozo”. Lembro que ri quando você me disse essas coisas. Hoje sinto ânsia de vômito, pois sei o que está por trás dessas ideias de amor libertário. Nada mais ordinário, nada mais hierárquico e capitalista. É pior que amor tradicional e monogâmico, pois esse é possessivo e cobra coerência e outros valores honestos, em vez de se dizer outra coisa enquanto reproduz relações as mais bárbaras e cruéis.

    Relendo sua resposta, e mesmo sua carta, fico pensando. Deve ser preciso muito vazio interior pra precisar de tanta aparência de conteúdo, né? E olha só, leu tanto a Roswitha que me indica ler a Roswita, sem H. Você, que se julga tão boa escritora e é uma leitora tão atenta, não deve ter lido muita coisa dela né?. E no entanto segue o arroto pseudointelectual e hermético. Pois eu li a Roswitha sim, li ela na jornada cômica dela de salvar o marxismo e a teoria do valor frente ao novo mundo dos dias de hoje, onde não cabe o racista e machista Marx e sua teoria furada. Valor-cisão, sociedade patriarcal produtora de mercadorias, sociedade patriarcal branca e heteronormativa produtora de mercadorias.. Só que não. Roswitha tem vocação pra mexidão. Sabe quando a gente chega no fim da noite em casa e põe ovos pra fritar a vai jogando na panela tudo que tem na geladeira, e faz um mexidão? Então, Roswitha é isso: Marx + feministas + questão negra + liberdade sexual = teoria perfeita ou rango bom. O problema, querida, é que a luta de classes é um pedaço de bife que já pretejou, que nem o cachorro come mais, e onde colocar, vai estragar a comida! Mil vezes Butler! Além disso sou vegetariana. Você critica o lugar de fala porque o seu é o de uma mina branca privilegiada que acha que porque fala um monte de língua e leu uma porrada de livros sabe mais sobre a vida das minas pretas do que elas mesmas. Vai viver na pele a perifa, vai, burguesinha.

    Enfim, sargenta, já deu né? Obrigada por continuar sendo escrota e facilitar meu distanciamento sem qualquer arrependimento. Boa sorte na sua vida longe de mim e treina aí como se escreve “mil gozos vazios de sentido” em alemão, em francês, em grego… quem sabe você descobre até um ideograma japonês e tatua na sua bunda.
    Carol

  7. Mon amour Carol,

    Antes de tudo, quero lhe dizer que estou constrangida. Você me constrange. Se me acusas de exposição, não poupa esforços para expor a si própria. Fica, desse modo, evidente que o motivo de sua indignação não é a carta. Seu narcisismo das pequenas diferenças me toca. É risível.

    Estou triste. Toda aquela beleza. Todo aquele amor. Morto. Meu sentimento de desamparo. Infelizmente, tu o enxergas na superfície. Tal como um olhar por sobre o mar cuja superfície ignora a agitação da profundeza. Mergulhe. Te imploro. Mergulhe.

    Te recusei porque fostes incapaz de abandonar teu bote “seguro”. Me entenda. Me atenda e deixe de se atentar as picuinhas passageiras. E nessa passagem de tua vida cuja paisagem é a mesma. Ficas na mesma esperando um brado e um braço de salvação. Salvação que não sou eu.

    Te amei, posso te amar de novo…

    Entretanto, como canto, Butler não entende a questão da experiência. E Beauvoir que voa sabe que as relações que ecoam se constituem socialmente. Poderia encampar o terreno teórico que atuo, mas ao invés dos xingos, vou propor um debate – de todo inexistente contigo, no teu próprio terreno.

    Convencer é inútil. E geralmente adotamos uma ideia, não por sua validade e comprovação teórica, mas porque nos sentimos bem com ela. Então tenho certeza, que seus ouvidos estejam fechados para o debate, mas, respeitando nossa, outrora, amizade vou tentar mesmo assim.

    Sabes que a interpretação que Butler faz da noção de projeto de Beauvoir muito mais tem em comum com sua própria noção de projeto do que com a da filósofa francesa. A necessidade de singularizar-se, defendida pela filósofa estadunidense, é muito semelhante a noção de introspecção de Beauvoir. Ora, isso não é novo. Por isso, a acusação de essencializar os gêneros e manter uma universalidade metafisica por parte de Beauvoir é falsa, ou melhor, uma tentativa de erguer para si um sistema filosófico. É isso que faz Butler. Sistema frouxo por todos os lados.

    Ora, o que é a aceitação das contradições – muito mais fortes em Beauvoir, do que em Butler – do que o modo de negar, ou melhor, superar, a própria noção de um sujeito estático? Beauvoir já não fazia isso em seus romances dissolvendo suas personagens nas contradições que a própria experiência impunha? Lemos A convidada juntas, e pelo visto, você nada aprendeu.

    Como Butler não entende o conceito de experiência, ela dá mais importância as categorias – eu prefiro chamar de conceitos – do que a própria experiência em si mesma. É por isso que acusa Simone de Beauvoir de essencializar o sujeito mulher. Se ela tivesse entendido minimamente a noção de experiência saberia que o binômio (kantiano) homem e mulher, como categorias, são semoventes e evanescente. Isto é, ele se transforma se o solo da experiência – a história – se transformar.

    É por isso, que toda sua problemática vai se voltar para a suposta construção da categoria mulheres como um sujeito estável. Como se toda a problemática das opressões no terreno do social fosse a manutenção de tal categoria. É isso que você defende? Que horizonte curto não? Efetivamente para Butler a categoria que regula as relações baseadas na normatização de uma heterossexualidade é a de sujeito mulher. Ora isso não é problemático?

    Seria a categoria que excluiria outras “categorias” de fazerem parte do jogo político tal como as trans, os gays etc…? Ora, mas a mulher enquanto categoria ou sei lá que diabo for, faz parte do jogo político? Veja, essa é só a questão mais básica.

    Nisso Butler inverte a roda de novo. Para ela são as categorias que fazem o mundo e não o mundo que engendram as categorias. Que a representação se constrói por meio da exclusão, disso Beauvoir, Pagu, Lou Salomé, Alexandra Kollontai, Marina Ginesta, Adorno, Hegel, Marx, Espinosa, Rousseau, Voltaire, Hobbes e Joana D’arc já sabiam. A questão é o que engendra as representações e as próprias categorias. O que é o sujeito? Essa é a questão… que debatíamos e que você abandonou…

    Embora, talvez, esse diálogo esteja morto, e não mais nos comunicamos está aí algo para refletir e que independe de nossa briguinha interna e libidinal.

    De quem, a despeito de tudo, ainda te estima
    Heloisa

    Beijos.

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