Lembra-se como foi penoso descobrir que o desarranjo revolucionário na sociedade russa possa ter sido causado por um livro simples e, por vezes, tedioso? Por Arthur

Leia aqui a primeira carta de Helo a Arthur e a primeira carta de Arthur aqui.

Ouro Preto, 10 de abril de 2016

Meu amor,

Acredito que a carta anterior nem tenha chegado ainda, mas resolvi colocar em pauta o caso Wilhelm Meister. Há uma questão muito importante que você não percebeu Nos Anos de Aprendizado.

A questão esta no interior do romance de formação. Deixo por enquanto uma discussão mais apurada do romance de formação em si. Quero discutir algo para pensar na nossa práxis política.

yannis_morales8Em primeiro lugar, temos um longo excerto no interior de Meister que se chama Confissões da bela alma. Goethe escreveu Meister em 1777 só publicando integralmente essa obra em 1795.

Como sabemos a Fenomenologia do Espírito de Hegel é mais tardia, é de 1807. Nessa última há um longo trecho que se chama: A boa consciência – A Bela alma. Ironia hegeliana ou ironia camponesa?

Naturalmente, sabendo que ambos – poeta e filósofo – foram contemporâneos, se tomarmos a Fenomenologia como um projeto estético, temos que não é mera coincidência um capítulo da obra de Hegel ter título semelhante ao de um capítulo da obra de Goethe.

Confesso, minha Helo, que essa “coincidência” despertou uma forte curiosidade que nasceu pela horrenda simplicidade da alma confessora da obra de Goethe. O que se vê nessa confissão se não uma ode ao trabalho e a vida burguesa?

“Estava acostumada demais a ocupar-me comigo mesma” diz a confessora, “a pôr em ordem os assuntos de meu coração e espírito e a conversar a respeito com pessoas que pensam como eu, para poder contemplar com atenção uma obra de arte sem voltar-me logo a mim mesma”.

Olha só que ideia batuta me surgiu: lembra-se que no último carnaval nós lemos O que fazer? De Tchernichevski? Lembra-se como foi penoso descobrir que o desarranjo revolucionário na sociedade russa possa ter sido causado por um livro simples e, por vezes, tedioso?

Pois bem! A impressão que tive é que ambas obras detém uma substância comum que é a educação ou formação (Bildung).

Se partem de uma mesma raiz, os frutos, no entanto, são diferentes: Meister se conforma, enquanto Vera Pavlovna cria outro sentido social, dissolvendo a sociabilidade opressora russa. Com essas ideias na cabeça fui investigar Hegel.

Se, contrapormos a Bela alma goethiana com a boa consciência hegeliana, veremos um radical comum que o filósofo alemão ironiza e eleva como dado importante na compreensão e da fundamentação do indivíduo burguês. Isso é um achado!

yannisUma pergunta que deves fazer é: o que isso tem em comum com a nossa práxis política? Em primeiro lugar é preciso considerar nossa esquerda em sua infância. Em segundo lugar, situar a bela alma e a boa consciência no nível de parte da esquerda governista.

Assim, o velho Hegel alude as formas da consciência moral – e aqui é preciso largar todo arsenal tradicional e teórico do marxismo vulgar para tentar compreender quais figuras do espírito Hegel abarca.

Como surge o desgosto com o capital e como isso impulsiona uma formação que se propõe para além de sua miséria existencial? Esse é o primeiro momento de uma dialética complicadíssima que, apesar de real, soa como imensamente abstrata.

Por acaso, o desgosto com o capital, não surge quando nossa concepção moral de mundo se vê atacada por contradições, entre a ideia e a realidade, no instante em que se escolhe uma posição (ético-política) e a vê distorcida por essas mesmas contradições?

Ora, não é a própria ação levada a cabo pelas pautas da esquerda, que origina a harmonia e a conformidade com a realidade posta pelo modo de produção capitalista, ao mesmo tempo em que deforma a consciência moral da própria esquerda?

Não é essa mesma ação que se torna o abismo da moralidade de esquerda enquanto relegada ao interior das relações totalizantes do capital? Ademais isso não causa um fosso em que não é a moralidade que governa, mas um elo mais profundo e visceral – o capital?

Observamos agora Meister em seu caminho. Sua ação só considera a si mesmo em sua inadequação com a realidade.

Sua própria ação é um fazer que se mostra contingente por partir de uma consciência singular, para quem o mundo, tal como é, se revela inadequado ou vazio de sentido.

Parte de nossos jovens não se parecem mais com Meister que com Vera? Qual sua diferença em relação a eles? A ação revolucionária não requer como fim universal a razão para sua execução?

Quer dizer, não precisa sempre se justificar teoricamente no nível do conceito para respaldar sua prática, tendo em vista que a ação por si mesma se limita a realização parcial do fim total a que se busca?

Não é engraçado que parte deles não atuem nesse sentido? E o mesmo não se dá com o jovem Meister? Não temos aí uma espécie de dever puro que na superfície aparece como universal enquanto na ação se afigura como algo contingente?

Por isso, temos uma deformação entre a nulidade das ações reais empreendidas por esses indivíduos e a realidade concreta do capitalismo. Sem que eles a entendam como algo interno ao próprio mecanismo que querem combater.

Esse é o primeiro passo de uma consciência que se desenvolve contra a égide do capital. No entanto, é engraçado pensar na sua própria negação enquanto ação.

No caso de uma ação que se efetiva pelo desejo de mudar as coisas tal como são, nada há em comum com os pressupostos da boa ordem capitalista, mas, com um dever desejoso de emancipação – naturalmente aceito, porém, criado socialmente que acaba em seu contrário.

Logo, esse dever que se põe pelo indivíduo diz respeito a alguns pressupostos idealistas. Como um dever puro, uma tentativa de transformação antes de tudo moral. Isso pode explicar, por exemplo, a busca incansável da verdadeira “tática” e “estratégia”.

Esse dever puro, contudo, não pode ser efetivado pelo retorno à natureza comum dos homens, pois se a ação moral retorna a uma espécie de lei natural (de uma bondade inata ou de coisas afins), ela se torna supérflua e se nega a si mesma.

Por isso, como diz Hegel, para agir é preciso conhecer os pressupostos das ações determinadas, ou melhor dizendo, as condições que impõe os problemas enfrentados por parte dos indivíduos no todo social.

Mas, obviamente esse tipo de consciência moral, não assume tais condições porque permanece atada em uma universalidade formal que está longe de se desdobrar na singularidade das ações. Isto é, na concretude da vida.

Por isso, o dever puro da esquerda em sua infância, não pode se relacionar com uma consciência moral atuante e, como resultado, se mantém plainando pôr sobre a segunda natureza e o mundo concreto com uma relação positiva.

Admitir uma consciência dita revolucionária destituída de realidade, significa negar o próprio fim que essa consciência adota, é novamente não se relacionar com uma ação efetiva.

Isto é uma deformação causada pela contradição em que se mantém essa boa consciência que não se suja com a mediação no mundo concreto.

Ao negar a representação do que efetivamente se afiança como ação, a consciência moral de Meister, e de parte de nossos camaradas, se vê coberta de uma série de deformações contraditórias.

Isto se dá porque se radica nessa noção a afirmação de si mesma de sua autoconsciência, aquilo que é pensado é tomado como realidade a ser seguida, mas que na realidade efetiva não toca a nada e, portanto, nada tem de verdade.

yannis_morales10Há um lindo ensaio hegeliano intitulado Quem pensa abstratamente?. Recomendo a você porque nele fica claro o que quero dizer no parágrafo acima.

O desperdício de papel explicando como deve ser a tática adotada pela classe trabalhadora não dá indícios disso? Não se afirma algo pela negação do que se quer manter? Isto é, não se afirma a tábua de Maomé revolucionária no momento que a nega?

Essa consciência não se transfigura assim naquilo que ela nega? Numa universalidade formal que dinamiza a própria realidade vindoura do capital?

É justamente o antagonismo contraditório entre esse dever e a ação concreta que fundamenta a boa consciência, ou melhor, a bela alma. Aqui minha amiga, a ironia de Hegel, é belíssima. E chegamos aos governistas.

A bela alma em Goethe e em Hegel representa uma ação moral determinada pelo indivíduo na qual se assegura uma universalidade real. Sua ação sai do regime abstrato da vontade e pensamento e parte para a atividade concreta.

Aqui se situa outra parte de nossos amigos da esquerda pois, essas boas consciências rechaçam as deformações da própria realidade para fazer-se uma verdade, garantida pela certeza concreta e imediata de si mesma.

A grande sacada Goethe/hegeliana é descobrir que a convicção de si mesma, nessa consciência, é obtida pelo seu ser Outro. Belíssimo. Hegel traduz os acontecimentos dolorosos de Meister.

Não é uma coincidência estranha que as confissões de uma bela alma venham na sequência da recuperação de Meister e do seu ferimento a bala? A cena erótica de Mignon e seu poema não traduzem o que para Hegel vem a ser a bela alma?

Não me mandes falar, e sim calar,
Pois meu segredo é meu dever;
Queria mostrar-te todo meu ser,
Mas o destino isto me impede [1]

Este ser para Outro em Hegel significava o momento essencial da bela alma, porque reconhece com este Outro o ser universal de si mesma e o coloca em uma realidade que se eleva para além daquela universalidade formal. E assim sua ação moral sai a campo. Digamos que é a adolescência da esquerda. (Risos).

Aquilo que era apenas predicado de uma individualidade se enraíza num sujeito universal e a bela alma reconhece esses momentos como um sujeito que se sabe a si mesmo.

Observe Heloisa, tudo que estou dizendo inclusive o caminho feito pela bela alma esbarra em limites óbvios de uma universalidade administrada pela totalidade capitalista. Muito louco né?

O saber que tem a bela alma se mostra novamente insustentável porque se atenta somente e exclusivamente ao seu próprio saber.

oiA bela alma está enraizada na sua pura convicção e por isso tem que agir, pois, sua convicção resulta tão vazia como aquela outra: do puro dever levada a cabo pela esquerda na fase de infância.

Eis a ironia hegeliana e seu olhar crítico mirando Os anos de aprendizado. Tudo isso, é claro, é uma hipótese discutida no bar.

Não é engraçado os paralelos que a bela alma tem com a nossa práxis política e como é inerente a toda confissão da bela alma goethiana?

A bela alma determina sua ação a partir das questões práticas e com elas soma-se seus impulsos e inclinações. Essa ação cai com suas determinações no âmbito imediato da conjuntura já que não pode se desfazer das suas influências externas e, por isso, seu conteúdo está sujeito a arbitrariedade do singular e da contingência do mundo prático.

Assim, nossos amigos não se desvencilham das convicções inconscientes engendradas pelo imediatismo da prática política.

A bela alma atua, portanto, afastada da realidade concreta porque apoia-se na convicção de seu próprio saber. Sua convicção está em que cumprindo seu dever os outros o cumprirão.

O que isso significa em termos práticos? Que seu próprio saber se eleva, como diz Hegel, na majestade das alturas, alheia e purificada das mediações do mundo e da vida.

A bela alma segue sua voz interior como se ela fosse divina e se torna um solitário culto de si. Ou do partido.

Não é aparentemente o mesmo que ocorre com os governistas (e aqui não temos implícito uma dialética para além de coxinhas e petralhas, isto é, uma dialética entre os autonomistas e governistas)?.

E nisso aquela ação prática se desdobra em seu contrário e se afasta das mediações concretas.

yannis_morales9Encontrada a verdade e a convicção em seu saber, a bela alma, como a de muito de nossos companheiros, se deleita com a esplendorosa força de um saber que conserva a suposta liberdade de sua autodeterminação.

Com seu caráter intimista a bela alma, agora, regozija-se na pureza do seu coração e retira-se do mundo por ter encontrado o saber de si mesma.

Condena, assim, a ação e na medida que procede reduz a práxis política ao discurso e anseia por legitimar a universalidade do seu belo saber a partir de seu próprio pensamento. (Não são nossos professores? Risos).

A consciência desse tipo recai na individualidade e não faz outra coisa senão falar. Fala que realça a contradição consigo mesmo.

Então, esse tipo não estão mais para Meister do que para Vera Pavolovna? Tudo isso não tem em comum com nossa ação prática que, ao invés de ser antagônica ao capital, o dinamiza e o impulsiona a diante?

Sabemos que o fim de ambos, como o de Meister, é a adequação pura e simples. A aceitação de sua própria fortuna e o abaixar de cabeça para as condições impostas pelo deus capital.

Receio, todavia, que devo parar por aqui e abrir um caminho para falar sobre Vera Pavlovna futuramente, pois esta aparece como um ponto de contradição fundamental que está para além do dever puro ou da bela alma e, portanto, para além do capital (sem Mészaros… risos).

Abração de quem te adora!

Arthur.

Nota:
[1] Poema recitado por Mignon na última página do capítulo 5.

As imagens que ilustram esta carta são de Yiannis Moralis.

Leia aqui a 2º carta de Helo a Arthur.

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