Por F. Palinorc
Este artigo está dividido em três partes. Leia a parte I e a parte III.
Nem mesmo a tentativa de criar mediações sociais e amortecedores mediante uma separação de poderes no “período de transição” é realista. As tensões centrípetas no coração de todos os Leviatãs nesse período capitalista estatal unificarão funções políticas, e mobilizações fanáticas apoiadoras de guerras serão indispensáveis. O partido proletário é uma organização ideal para centralizar e inspirar esses espetáculos. O solipsismo, desse modo, não é resolvido – no fim, os filhos de Lenin e Bordiga defenderão seu sangrento direito de nascença – “O Estado somos nós”.
Se um partido proletário nacional for possível, então muitos partidos proletários por todo o planeta serão possíveis. Eles ou se reagruparão a longo prazo ou exterminarão uns aos outros. Esses partidos, ou gangues, replicam uma tendência das firmas capitalistas – falência ou fusão em monopólio. Eis o destino de todos os partidos burgueses – a dinâmica totalitária é inerente a eles. Essa antropofagia permanente é visível internamente: nenhuma facção ou tendência é realmente permitida. Além disso, basta imaginar o tamanho de um tal “partido revolucionário” mundial para perceber a perspectiva bizantina das gangues esquerdistas e de ultraesquerda. Uma máquina com tarefas de “conscientizar” e organizar em massa teria que ser um partido centralizado de muitos milhões de membros. A única técnica operacional aberta a tal máquina leviatânica latente é a militarista, totalitária, terrorista.
A crescente atomização e passividade na sociedade civil provê um solo fértil para gangues e totalitarismos futuros. 1984 nunca terminou. A violência estatal fascina muitas pessoas e, ao invés de confrontarem-na em suas mentes – pré-requisito para confrontá-la coletivamente um dia -, elas se submetem, na esperança de recompensas. Porém, a passividade das pessoas é enraizada não na estupidez, mas numa esquizoide e temerosa compulsão de se evadir de verdades cruéis (barbárie). Quando os corpos das pessoas estão cansados pelo trabalho e suas mentes são fragmentadas, elas preferem os ícones infantis e espetaculares da mídia de massa, chafurdando no sentimentalismo e na má-fé reconfortante. Como individualistas atomizados conseguem encontrar solidariedade e comunidade na guerra de todos contra todos? A realidade aparece como um labirinto de infinitas separações e telas opacas. Confrontar verdades, que tomam tempo para desenterrar, e não deixar a resistência se tornar desespero e cinismo, é um teste diário para cada ser humano pensante. Apenas a razão, com perdão e perseverança, pode iluminar o caminho adiante. Que essa razão, em sua obstinação intransigente, contém empatia por todos os seres, não é preciso dizer [8]. Mas não é fácil resistir ao encanto das gangues, religiosas ou políticas.
A consolidação de um Estado fortalecido baseado no terror absoluto obviamente atraiu um apparatchik sanguinário como Stalin. Foi uma situação sem precedentes na Europa moderna (exceto talvez as curtas ditaduras jacobina e termidoriana). O bolchevismo sob Stalin cultivou um aparato – como o velho despotismo inca ou asiático, guarnecido com poder arbitrário total. A prisão e execução de qualquer um que se opusesse ao regime de Stalin surgiu como uma opção natural e irresistível. Quem estava ali para pará-lo? Ninguém, como ninguém poderia parar Lenin uma vez alcançado o poder. “Da revolução proletária à Lubyanka” – essa não era uma progressão impossível. O declínio começou muito cedo, desde 1917. Marc Ferro, entre outros, documentou essa abdicação do poder pelos conselhos e comissões de fábrica.
As gangues religiosas recrutam vítimas ao apresentarem-se camufladas. Seu objetivo de longo prazo pode ser o poder mundial, mas o objetivo cotidiano de extorquir o máximo de dinheiro é supremo. Daí sua manipulação sofisticada e uso de técnicas de marketing de massa. Em contraste, as gangues políticas não buscam acumular dinheiro. No caso das gangues esquerdistas e de ultraesquerda, elas almejam o poder apenas em circunstâncias sociais específicas. Enquanto isso, elas são condenadas a estagnar e se decompor de algum modo porque elas não têm flexibilidade nem “técnicas de marketing” atualizadas que lhes permitam crescer. Pelo contrário, elas insultam tudo e todos, dando a impressão (correta) de serem extremistas lunáticos isolados. Em períodos de contração social, essa tendência “sectária” se torna bastante manifesta. Se as circunstâncias sociais mudam, essas gangues podem estar demasiado isoladas para ter qualquer influência. Assim, há limites objetivos para o tamanho e influência das gangues políticas desse tipo. Mas a história também nos prega muitas peças.
Devemos aguardar o dia em que a transformação social e a perspectiva ‘utópica’ de uma sociedade emancipada poderão ser discutidas sem o estigma do bolchevismo. Isso levará algum tempo, porque tais mitos têm uma poderosa base irracional na sociedade. A evidência factual é um antídoto débil, visto que fatos podem ser negados ou explicados de modo enganador. A escola esquerdista e de ultraesquerda de hagiografia bolchevique foi iniciada pelo partido bolchevique no poder, e os bordiguistas – como todos os apoiadores de outubro – acriticamente engoliram a mitologia. Bastou que um partido da esquerda das conferências de Zimmerwald e Kienthal tomasse o poder para que todo pensamento crítico fosse por água abaixo. Nada faz tanto sucesso quanto o sucesso. Até Rosa Luxemburg se iludiu quando congratulou o bolchevismo por ter “salvo a honra do socialismo internacional” (em momentos mais sóbrios, sua crítica do bolchevismo é demolidora).
O processo de acumulação/valorização do modo de produção capitalista pode ainda conter importantes consequências para uma consciência comunista. A ruptura pode sugerir um colapso entrópico das partes militarizadas constituintes do Leviatã. Isso permitiria às forças unificadas da sociedade civil “sair deste mundo” (Camatte) com um mínimo de destruição e violência que, se permeia a sociedade, afeta sobretudo o proletariado. Perlman descreve como os Taboritas, ao se defenderem contra o Leviatã, reconstruíram-no dentro de suas próprias fileiras. É um trágico aviso. Os bolcheviques fizeram o mesmo, em parte porque sua ideologia apoiou o jacobinismo, e porque o Leviatã russo necessitou que o bolchevismo inconscientemente o expressasse desde o início (Lenin: “Nos tornaremos defensistas somente quando estivermos no poder”). É claro, esse “nós” não era o proletariado, mas um partido servindo o Leviatã.
De acordo com Marc Ferro, os sovietes/comissões de fábrica cessaram de funcionar desde 1918. O livro de Maurice Brinton sobre controle operário confirma isso. A era de ouro da “democracia soviética” de Victor Serge é uma fábula. Talvez a “democracia” (isto é, o faccionalismo de gangue) tenha sobrevivido dentro do partido por um momento (algumas semanas a mais? Até 1921?). Mas isso é uma questão formal, se rejeitamos a premissa de que os interesses históricos do proletariado possam ser representados por qualquer partido ou Estado.
Para as gangues de ultraesquerda, a devoção ao bolchevismo de 1917 é uma “lealdade às posições revolucionárias”, ou a um “Estado socialista”, mas não aos incontáveis indivíduos – proletários ou qualquer um – que foram sacrificados pelo Leviatã bolchevique. Assim, Kronstadt realmente não importa; é um “erro” causado por sabe-se lá o quê (não pelas posições revolucionárias, é claro, essas nunca falham). Mas Kronstadt é usada aqui como uma abreviação – a perfídia anti-humana iniciou muito antes de 1921. A capacidade do aparato bolchevique – tanto o partido como o Estado – de trair e aterrorizar os apoiadores e os neutros começou desde o primeiro dia. Assim que as organizações de massa que o proletariado e a sociedade haviam criado para se emancipar foram subvertidas o movimento comunista em gestação foi abortado. E isso acabou acontecendo desde cedo, provavelmente desde o início de 1918. O proletariado e a humanidade foram pegos numa cilada em 1917. Pagaram muito caro por isso, e quase 80 anos depois a armadilha ainda pode ser reativada.
Ao ler a correspondência de 1936 entre Serge e Trotsky, percebe-se uma atitude ganguista de que estamos falando. Com frequência, Serge menciona que sua esposa, exilada com ele em Bruxelas, está sofrendo de esquizofrenia. Trotsky, a seu favor, pergunta por ela e o aconselha. Serge nunca dá detalhes; ele apenas menciona laconicamente que ela está piorando, e descreve as terríveis condições dos oposicionistas no gulag com muito mais detalhe e calor humano do que o pesadelo sem fim de sua esposa. Quando seu filho de 16 anos quer se alistar e combater pela Espanha republicana, nunca é mencionado o que sua mãe pensa (Serge o persuadiu, por razões de idade). É angustiante a coisa toda ser posta de modo tão… “macho”. E assim continua, carta após carta, com uma linha ou duas de Serge sobre a piora da doença dela… e o que aconteceu no fim? Ela escapou com ele para o México? E o que aconteceu com sua filha de 18 meses? Nunca é dito. Algumas suspeitas ficam reforçadas – esses grandes revolucionários não tinham algumas empatias elementares, e pensavam que grandes cenas históricas, pastiches, compensavam essa falta. Mas nunca compensaram.
Em ”A GPU no movimento trotskista“, de George Vereeken, lemos a seguinte passagem, que dá calafrios: “O que sempre me vem à mente, quase obsessivamente, é a execução de dois amigos, ambos ladrões. Eles morreram sem mostrar medo, encarando os rifles, e gritaram: ‘Viva a CNT’… eram dois bons camaradas” (p. 138).
Isso é de uma carta de um jovem companheiro belga de Vereeken, escrita das trincheiras da Espanha em 1936. Esse militante tinha entrado nas milícias da CNT. Os “revolucionários” da CNT executavam ladrões, é claro, e os pobres e infelizes amigos até saudaram seus carrascos – Ave CNT, morituri te salutant (“Ave, CNT, aqueles que estão prestes a morrer a saúdam”) – algo que só “dois bons camaradas” fariam. Vereeken não esboça qualquer crítica, e nem o jovem escritor da carta. Não há indicação de que o jovem “amigo” dos ladrões intercedeu por eles. Tal era o esgoto ético daqueles anos. Afinal, Trotsky introduziu a pena de morte no Exército Vermelho, e o Terror Vermelho se esmerou em execuções sumárias e tomadas de reféns. Por que não na Espanha, em nome do anarquismo e do POUM? Naturalmente, a participação da CNT no governo republicano não foi um ato que mereça qualquer retribuição draconiana imediata. Tartufos assassinos estatais, isso foi o que o glorioso cenetismo terminou patrocinando.
A adesão neurótica e obsessiva à “política” como meras posições e programas é uma tática para esconder as reais atividades das gangues. Sob essa negação e camuflagem, manobras e truques – o negócio real da política, a arte do possível e da podridão – podem ocorrer sem impedimento. Todas as gangues se engajam nisso, mas negam que essas práticas ocorram. Ou acusam outras gangues, mas nunca a si próprias, dessas práticas. Admitir abertamente que elas ocorrem seria admitir a fraude e a falência moral. Mas um crítico de fora deve analisar cuidadosamente o porquê de as gangues agirem desse modo. A preservação do poder, evidentemente, é o principal componente dessas práticas. Porém, para muitos marxistas, críticos especializados do “poder burguês”, esse aspecto do poder não é política. Ele não conta.
O trecho abaixo é de uma publicação de agosto de 1995 de Communism, periódico do órgão central francês do GCI (Groupe Communiste Internationaliste / Grupo Comunista Internacionalista). Trata-se de uma gangue de ultraesquerda, um clone imediatista e messiânico da CCI (International Communist Current / Corrente Comunista Internacional). O ensaio, intitulado “Características Gerais das Lutas da Época Atual”, começa interessante, mas logo degenera no previsível:
“O mundo de hoje é caracterizado pela consequência da trágica falta de associação permanente do proletariado: inexistência de núcleos permanentes, de centros de encontro, falta de imprensa classista de massas, de organização internacional do proletariado capaz de reunir a vanguarda dessa comunidade de luta que aparece aqui e ali. Portanto, [aqui inicia um longo non-sequitur] a importância da atividade militante permanente – da ação diretamente comunista internacionalista (?) centrada em um programa revolucionário de ação (?), de organização, de perspectivas como as desenvolvidas por nosso pequeno grupo (!) de militantes –, apesar de nossas modestas forças, se torna clara” (p. 44).
Essas fantasias trivializam um problema social de dimensão gigantesca, pretendendo que uma gangue possa ser o elo perdido para a consciência da humanidade e da emancipação global.
O ICG condimenta suas publicações com imagens de saque e do “Terror Vermelho contra o Terror Branco” (mostrando um oficial do Exército chinês queimado por proletários em Pequim, em junho de 1989), como se isso não expressasse a barbárie geral e a confusão da humanidade nessa época. Alguns sonhos militantes reencaminham os piores pesadelos do século XX. Toda visão sociopolítica seleciona quadros apropriados. Aparte a necrofilia social, é difícil saber o que o ICG representa, mas o futuro nos dirá. Seja o que for, duvidamos que seja positivo.
Por que Lenin e Trotsky esconderam suas intenções de poder total antes de outubro? Eles certamente fizeram isso. Sabiam que os sovietes proletários e comissões de fábrica iriam desprezar, se não resistir, a uma tomada bolchevique. Mas a questão importante não é “por que” e sim COMO o bolchevismo conseguiu persuadir o proletariado a um experimento que só poderia terminar numa derrota mundial para o comunismo. Se o mecanismo de engano em massa e influência for exposto, talvez possamos contribuir para uma maior consciência no futuro.
Os indivíduos disfuncionais só podem reproduzir – através do deslocamento – as famílias das quais são um produto. Esse deslocamento, apegado a uma política de aversão e ódio mascarada como “amor à raça humana”, é condenado a levar, uma vez que seu objeto – “a classe”, essa categoria metafísica – ignora a mensagem, à aversão e ódio aos seus companheiros de fé. A exofagia se torna endofagia. Os Cristos devoram-se uns aos outros.
Os impulsos destrutivos são transferidos à sociedade através da hegemonia ideológica do Leviatã. O subsolo é a alienação peculiar do capitalismo, aquela completa despossessão espiritual e material dos seres humanos. Esse empobrecimento em meio à abundância potencial é um processo historicamente cumulativo. Devemos supor também que há um crescimento geométrico da matéria mental violenta e repressiva. No proletariado, esse material funciona por meio da aceitação, por essa classe, do trabalho assalariado, da família, da nação e do Leviatã. Até agora, isso paralisou e defletiu a única classe social capaz de liberar uma humanidade sem classes. Isso neutraliza e dispersa suas capacidades emancipatórias. A integração é um processo violento, e cria uma mentalidade de passividade e raiva fervilhante inconsciente entre bilhões de indivíduos atomizados.
Em momentos de profunda crise, o Leviatã canaliza esses impulsos destrutivos em ações, desde espetáculos eleitorais até o apoio a soluções autoritárias como o fascismo, “guerras humanitárias” ou populistas demagogos nas periferias. Gangues religiosas e fundamentalismo de Estado absorvem mais outros milhões de atomizados. A invenção de bodes expiatórios é uma componente chave nessas estratégias.
Diante dessas iniciativas leviatânicas, a humanidade permanece com tarefas práticas decisivas e urgentes. O que é vital é a necessidade de entender que o capital e o Leviatã não são invencíveis – daí a necessidade de ver a crise (econômico-social) em termos históricos. A “crise” não começou hoje. Ela se iniciou com a dissolução das comunidades humanas primitivas. Há a necessidade urgente de nos emanciparmos rumo a algo superior, numa base planetária. Não um retorno, como algumas vezes Perlman e Camatte parecem advogar. Não um “sair deste mundo”, mas a emancipação de uma nova comunidade global, usando a razão, ciência, empatia e o amor individual/social. O comunismo “liberta” a humanidade naquilo que ela pode ser potencialmente.
Historicamente, várias camadas da classe trabalhadora aquiesceram e apoiaram o Leviatã e o capital. Mas não é questão de culpar ou moralizar. Se essa classe tem um potencial emancipatório, ela pode ter, em certos momentos, a capacidade essencial de escolher a vida contra a necrofilia. E, porque ela tem essa escolha, seus erros, humilhações e auto-traições podem ser entendidos e transcendidos na prática. As gangues e partidos que dirigem leviatãs não têm essa capacidade de autorreflexão. Elas são estruturalmente ligadas ao poder, e somente um proletariado emancipado pode tirar esses indivíduos dessa armadilha, mostrando-lhes um novo modo de viver (sem trabalho assalariado e nem Estados-nações), desarmando-os sem retribuições e com o mínimo possível de violência. O proletariado em movimento terá de mostrar uma saída para milhões de pessoas hoje capturadas e empregadas por Leviatãs. A transformação coletiva da humanidade não tem necessidade de vingança nem de terrores vermelhos. O inimigo sempre foi as relações sociais, não os humanos.
Uma postura assim para com o resto da humanidade aparece como possibilidade para o proletariado em momentos que levam a uma iminente desintegração universal. Nessas ocasiões, o proletariado mostrará se é capaz de libertar a sociedade, de modo que os indivíduos se transformem para continuar humanos. Antes desse tempo, os indivíduos que compartilham de visões críticas só podem esperar disseminá-las em pequenos círculos de discussão. Isso não requer qualquer estrutura formal, “corpo de membros” ou agendas de poder não escritas. O princípio de gangue é rompido nesses projetos soltos, transitórios, mas comprometidos.
O bolchevismo nunca entendeu essa necessidade de responsabilidade individual e coletiva e, portanto, mostrou às massas apenas decretos assassinos de impulso e ação destrutivos. O pensamento, que inclui a consideração pela vida humana e pela responsabilidade individual, deve se por entre os impulsos irracionais e a ação. A tendência histórica de punir o forasteiro, o bode expiatório, é um de muitos fatores que destroem as revoluções proletárias por dentro. O “terror vermelho” de Lenin-Trotsky-Dzerzhinsky exemplifica essa tendência (N.do R.: Félix Edmundovich Dzerjinsky, o “Félix de Ferro”, foi o fundador da Tcheka, a polícia secreta russa). Na Rússia, latifundiários e capitalistas expropriados eram os bodes expiatórios ideais e uma guerra de extermínio supostamente contra eles se seguiu, com a vasta maioria das vítimas sendo operários e camponeses. A tendência de eliminar civis já estava presente na revolução francesa de 1789. Essas atrocidades só podiam deprimir a consciência numa escala massiva, e desarmar a humanidade de seus recursos espirituais interiores e da solidariedade.
Para os recrutas potenciais e círculos, as gangues sempre parecem benignas, abertas, até obsequiosas… no início. Os cultos religiosos se comportam de modo similar. As brigas de facções nas gangues partilham algo – elas expressam a dinâmica totalitária intrínseca à vida de hoje. Em última análise, essa dinâmica reflete as necessidades e a preservação da dominação. Os gurus das gangues de esquerda e ultraesquerda defendem uma perspectiva profundamente totalitária. A construção de gangues, que contém as sementes da construção de partidos, segue um método gerencial. É um sistema de controle da mente. Lenin foi certamente O mestre de construção na tradição dessa dinâmica, mas seus elementos já existiam em vários movimentos do século XIX. John Zerzan afirma de modo persuasivo que Marx participou de atividades de gangue. O milieu (ambiente) da ultraesquerda, em menor (esquerda holandesa) ou maior grau (esquerdas alemã e italiana), compartilhou essa tradição com o leninismo.
As gangues são incapazes de ver a lógica da organização em sua totalidade. É seu ponto cego. Algumas de suas análises são interessantes e mostram uma genuína pesquisa teórica, mesmo se ainda presas numa armadilha pelos dogmas do leninismo e pelas polêmicas manipulativas. Tomemos o exemplo de outubro de 1917, principal ícone dessas gangues. Quais são as “lições” de outubro? A evidência sugere que a “Comuna Russa” morreu ao nascer. Porém, isso cria um insuportável dilema moral para as gangues: como iremos defender as “tradições do partido” se não há quase nada em outubro? Essa resistência obstinada confirma que lendas e “tradições” imaginárias são cruciais para a construção de gangues. Elas dão conforto, uma garantia teleológica, continuidade e legitimidade… algo como a “missão” de uma empresa. Mesmo que tudo seja mentira, mentiras sociais.
Porém, só porque o marxismo terminou sendo o “último refúgio da burguesia” (Mattick) não significa que a humanidade não possa aprender bastante dos muitos insights de Marx e Engels, e de muitos pensadores dessa tradição. Como se pode e se deve aprender de Hegel, Weber e incontáveis outros. É como se a contribuição e relevância do Iluminismo ainda não tivessem terminado.
Não há nada de errado em formar círculos de leitura ou de estudos, ou núcleos engajados em trocar ideias e discutir. O que é debilitante é a noção ganguista de que tudo isso é um “dever” com uma missão histórica, além de um papel tão fundamental a ponto de o destino da humanidade depender disso. A ideia de Partido Mundial jaz por trás desta noção de onipotência. Que tal partido surja agora é muito improvável, e se ele fosse essencial, nós perdemos o bonde por mais de 150 anos. Em todo caso, hoje não há nada que se possa fazer sobre isso. O proletariado mundial não tem relação duradoura e genuína com “suas minorias”, e não tem há gerações. O que sugere que a humanidade terá que se virar sem elas – sem os muitos partidos mundiais – quando o momento chegar. E se, porventura, as frações revolucionárias sempre foram desnecessárias, ou podem ser geradas durante a própria revolução? Em um movimento de bilhões, tais associações podem aparecer simultaneamente por toda parte, e não portarão o vírus ganguista.
Historicamente, motivações grandiosas e intenções sublimes proclamadas por partidos e indivíduos, ou mesmo pelas massas, não são garantia nem critérios por si só. Devem-se julgar os resultados, de curto e longo prazo, das ações sociais. Todas as ideias revolucionárias podem degenerar e servir o Leviatã, e elas só provam ser verdadeiramente humanas quando a humanidade como um todo se envolve na sua auto-emancipação. Uma prova de que as ideias são revolucionárias (negando o Leviatã e a lei do valor) é que a própria população entende, adota e implementa praticamente essas ideias. Afinal, essas ideias derivam da prática histórica, quando comunidades anteriores tentaram reverter a dominação do Leviatã. Isso só é possível em um período revolucionário, e numa escala mundial. Antes disso, as massas da população sofrem uma espécie de torpor, sob o domínio do Leviatã e sob a atomização implícita na dominação global do valor.
Um novo movimento revolucionário – que significa a maioria da humanidade em movimento – apenas pode surgir em um período revolucionário. Esse período é uma possibilidade, não uma inevitabilidade. Assumindo que esse período virá, as ideias ganguistas do bolchevismo, mesmo se pesadamente reformadas, podem ser um dos mais terríveis inimigos desse movimento, porque o bolchevismo, em suas inúmeras formas, se mascara como “revival” [renascimento, renovação] de uma tradição duradoura e válida. Sua tradição, de fato, é o jacobinismo, um militarismo vingativo da burguesia primitiva, mas, tomado historicamente, é a dominação milenar. Os indivíduos podem contribuir à emancipação da humanidade se ajudarem a clarificar os objetivos gerais de uma comunidade humana (comunismo) durante um período revolucionário. Seu papel não é dirigir ou criar um partido. Eles são parte da população que está se tornando revolucionária como um todo. Antes desse período, eles devem tentar clarificar entre si questões básicas sobre o Leviatã e o comunismo. Eles devem tentar antecipar o que o futuro pode trazer. Revolucionários pertencem à humanidade, e suas ideias – se elas são verdadeiras – pertencem à busca da humanidade por biofilia e podem contribuir e acelerar a consciência comunista da massa. Pertencer a uma gangue não ajuda em nada nessa busca. Pelo contrário, todas as gangues “revolucionárias” são campos de treinamento para futuros policiais orwellianos.
Que indivíduos sejam tragados em gangues é um lamentável desperdício de potencial humano. Mas a situação nas periferias é monstruosamente trágica, porque um enorme número de seres humanos muito jovens está sendo recrutado em gangues militares que trabalham em conjunto com Leviatãs genocidas. Crianças como guarda pretoriana de senhores da guerra africanos e primeiros ministros (Congo, Somália, etc), crianças como paramilitares e sicários de gangues de traficantes na Colômbia, crianças como escudos humanos nas guerras do Irã-Iraque e Etiópia-Eritreia, crianças como torturadores e comandos especiais nos Balcãs, crianças como sádicos, estupradores e viciados em drogas, e gangues coordenando pela base essas atividades necrófilas sem fim. Poucas realidades expressam mais a brutalidade e a decadência de um sistema social baseado na desumanidade predatória. É durante esse declínio que gangues militares aparecem em primeiro plano, processando os corpos e a miséria humana numa vasta escala, eliminando qualquer vida que os Leviatãs deixam em seus rastros de extermínio e mutilação.
As gangues expressam a necessidade de acesso pessoal à comunidade. Mas em zonas de guerra são falsas comunidades, pesadelos disfarçados de sonhos. As gangues resultam da decomposição da sociedade, e elas também contribuem para ela, impedindo soluções humanas, ao destruir toda esperança no futuro.
Os humanos que desmantelarão um sistema capitalista em colapso terão de ser os mesmos que emanciparão uma alternativa adequada aos seres humanos. São pessoas que hoje estão “integradas” no Capitalismo porque todo mundo está. Em nossa época, não há espaço para gangues niilistas de “outsiders” ou “bárbaros” que destruiriam de fora um sistema em colapso, como aconteceu na queda do Império Romano do ocidente.
Somente assim as gangues desaparecerão para sempre.
(Continua…)
Notas:
[8] Nota dos tradutores: Aqui não poderíamos deixar de expor uma perspectiva diferente sobre empatia: “Há quem argumente que, para interromper esse ciclo [de violências], é preciso “compaixão” ou “empatia”: nos compadecer com a dor do agressor porque na verdade ele teria sido antes vítima de outro agressor e assim sucessivamente, ad infinitum. Porém quem diz isso esquece que a empatia é a própria causa da espiral de violência (sob a forma de indignação). O erro do argumento da empatia é que “empatia de amor” e a “empatia de ódio” são igualmente emoções – e emoções são reações espontâneas (se não forem, são falsas emoções), ou seja, não dependem de nenhum argumento.
Sem dúvida, a paixão é o que nos move e não há como escapar disso. O que fazer então? Uma possível resposta é dada pelos filósofos ultra-iluministas Benedito de Espinoza e Jean Meslier: entre as paixões humanas está a paixão pela liberdade – a razão. A razão é ação, e não reação (todas as demais emoções não passam de reações), porque ela busca modificar as causas, não reagir aos efeitos; busca transformar as condições de existência, e não escolher entre caminhos pré-estabelecidos; busca subverter o status quo, o tabuleiro, não mover mais uma vez as peças de um jogo suicida e escravizador. A questão é: a paixão pela liberdade, pela autonomia, é capaz de superar as outras emoções? E como agir, isto é, como criar um ambiente onde as emoções possam se expressar da maneira mais enriquecedora e feliz possível?” (humanaesfera, Autonomia, espiral de violências e apelo à força (i.e. à classe dominante).)
Obras consultadas
Blissett, Luther. Guy Debord is Really Dead. London: Sabotage Editions, 1995.
Bukharin, Nikolai. Historical Materialism. Michigan; U of Michigan Press, 1976.
Camatte, Jacques. This World We Must Leave. New York: Autonomedia, 1995.
Cribb, Robert. Gangsters and Revolutionaries, The Jakarta People’s Militia and the Indonesian Revolution 1945-1949. Honolulu: U of Hawaii Press, 1991.
Debord, Guy. The Society of The Spectacle. New York: Zone Books, 1998.
Eds HH Gerth & CW Mills. From Max Weber. London: Routledge, 1977.
Ferro, Marc. Des soviets au communisme bureaucratique. Paris: Gallimard/Julliard, 1980.
Kramer, Joel & Alstad, Diana. The Guru Papers. Berkeley: Frog Ltd, 1993.
Michels Robert. Political Parties. New York: The Free Press, 1962.
M Issa-Salwe. The Collapse of the Somali State. London: Haan Publishing, 1996.
Moss, Sam. ‘The Impotence of The Revolutionary Group’. International Council Correspondence, 1930s.
October 79 Winter 1997. Interview with Henri Lefebvre on Situationism.
Organisation des jeunes travailleurs révolutionnaires (1972). Le militantisme stade suprême de l’aliénation.
Perlman, Fredy. Anything Can Happen. London; Phoenix Press, 1992.
Rakovsky, Christian. Selected Writings on Opposition in the USSR 1923-30. London: Allison & Busby, 1980.
Saville John. The Consolidation of the Capitalist State. London: Pluto Press, 1994.
Wiggershaus, Rolf. The Frankfurt School. Cambridge: Polity Press, 1994.
Zerzan, John. ‘The Practical Marx’ in Elements of Refusal. Seattle: Left Bank Books, 1988.
Acompanhe a série
Rackets! (gangues, bandos) – parte I
Rackets! (gangues, bandos) – parte II
Rackets! (gangues, bandos) – parte III
“E se, porventura, as frações revolucionárias sempre foram desnecessárias, ou podem ser geradas durante a própria revolução? Em um movimento de bilhões, tais associações podem aparecer simultaneamente por toda parte, e não portarão o vírus ganguista.”
Como havia adiantado nos comentários da primeira parte, o autor faz críticas completamente necessárias às tradições estatistas, “leviatísticas”, e também demonstra como expressões históricas de correntes anti-estatais podem cair nas mesmas práticas totalizantes. Essa parte do texto parece deixar mais claro que o autor não está falando de qualquer gangue, no sentido de qualquer associação de indivíduos, mas sim de coletivos políticos. O recurso antropológico/sociológico da primeira parte do texto, ao meu ver, tem esse propósito científico de explicar o fenômeno para além das particularidades históricas. É totalizante: todo grupo político, por mais “anti-gangster” no discurso, será uma gangue. O único tipo de grupo que autor aceita é o grupo de estudos. O esforço por entender o mundo.
A parte que recortei do texto e que abre este comentário para mim mostra onde o está permitido o vazio da argumentação. Para o autor não é necessário explicar como é possível que as frações revolucionárias nasçam sem o “vírus ganguista”. Ah, é porque a organização dos trabalhadores surge das lutas. Bem, mas e o que nós vivemos hoje? As lutas de hoje não contam para a formação de frações revolucionárias? São lutas de segundo escalão? Se não déssemos valor aos aspectos denunciativos do texto, o que sobra parece ser a necessidade de estudar e esperar o processo revolucionário. Entendo que a enorme maioria dos grupos que hoje se colocam a tarefa, não de ser uma fração, mas de ser a própria vanguarda revolucionária, são deploráveis. Mas parece haver nesse ataque ao fenômeno gangster um eclipse de todas as modalidades de associacionismo proletário, especialmente daquelas que de fato desenvolvem um pensamento coletivo expressamente contrário ao capitalismo, não só enquanto relação social individualizável, mas enquanto ordenamento global.
São duas as questões que este texto me suscita: primeiro, quanto à certeza de que o futuro da humanidade é comunista. Mais do que ensinar o erro dos métodos e das fórmulas, ensina que o futuro é mais difícil do que muito por muitos se pensava. O autor se pergunta se as frações revolucionárias não teriam sido desde sempre inúteis. Inúteis para o que? Para a revolução que nem sabemos se haverá? E ademais, choramos as contra-revoluções, mas e as revoluções que não foram? Não merecem elas as mesmas críticas, pelo que nelas faltou, que as que foram derrotadas pelo excesso?
A segunda questão também é sobre a revolução, é sobre a guerra. Como será possível lutar uma guerra de classes sem uma organização militar que subjugue um inimigo? A transformação humanista, a cornucópia espontânea e livre das gangues, não compartilha um espírito critão milenarista? Já diz a sabedoria popular, se deus vier, que venha armado.
Lucas, interessantes tuas críticas ao texto. Aparentemente, o trecho em que ele é mais claro quanto ao que você levantou é esse:
“Não há nada de errado em formar círculos de leitura ou de estudos, ou núcleos engajados em trocar ideias e discutir. O que é debilitante é a noção ganguista de que tudo isso é um “dever” com uma missão histórica, além de um papel tão fundamental a ponto de o destino da humanidade depender disso. ”
Na verdade, concordo com ele que discutir e trocar ideias é realmente a única ação que proletários que compartilham ideias comunistas podem fazer para influenciar os demais proletários na luta (que é a luta deles todos enquanto classe) sem criar vanguardas autoproclamadas, ou seja, gangues políticas. O outro modo de ação, que o senso comum considera como “ação verdadeira que não fica só nas palavras”, geralmente chamado “trabalho de base”, “ativismo” ou “militância”, aparentemente já é ganguista por si só, porque se constitui como um corpo separado que busca colocar os outros proletários como meios para o fim para o qual esse próprio corpo militante (na verdade, cabeça, “capo”) se constituiu. Assim, necessariamente, ao invés de estimular, enquanto iguais, que os demais proletários pensem a ajam por si mesmos, em que a capacidade de pensar e agir de cada um estimula e aumenta a capacidade de agir e de pensar uns dos outros, o que requer que rompam com a “espontaneidade” reacionária deles decorrente de serem submetidos à condição de capital variável, a “militância” de antemão já se coloca como um corpo separado que faz “trabalho de base” na base e, para fazer esse trabalho, é obrigada a não só a respeitar (cheia de dedos) essa espontaneidade reacionária, mas a reproduzi-la, já que esse é o único meio pelo qual os proletários continuarão meios para o fim para o qual esse corpo de militantes se constituiu.
Camaradas,
Acredito antes de mais nada que devemos ter critérios de análise. Por exemplo, para assuntos históricos tentar não cometer anacronismos. Os conceitos (e ou adjetivos) nascem no interior das relações sociais que são determinadas historicamente. Algo muito preocupante que tem problemas fundamentais e que virou moda na esquerda — e já era comum na direita e na economia burguesa — é essencializar uma categoria e aplicá-la a-historicamente. Aqui vi dois exemplos disso: 1) no texto sobre as gangues; 2) num comentário que disse que há registro de atuação policial em Eras pré-históricas. Essencializar as categorias é um problema que está se tornando comum”, a falta de cuidado e critérios com esse ponto abre arestas para a análise se reduzir a questão de opinião. E já que tudo sempre existiu logo: Platão, embora gay, era racista, misógino e escravocrata. Eis o ponto que acho extremamente vulg ar (um fundo do poço). Guardado esse ponto, central. E que quase de saída me fez abandonar a leitura. Terminei a leitura e o que Lucas falou foi a mesma impressão que fiquei. Ademais, soou o elogio de uma individualidade típica de sociedade civil burguesa e ode a Aufklarung que nos guiará para uma sociedade emancipada.