Qual foi a experiência do socialismo iugoslavo? Por Lucas

Esta série em 4 partes tem por objetivo refletir sobre a autogestão das unidades produtivas de uma economia nacional a partir de seus contextos históricos e políticos. É certamente um objeto de estudo que merece maior aprofundamento e que aqui ganha um tratamento apenas introdutório e comparativo, dentro dos limites de uma pesquisa diletante-militante. A proposta é abordar três casos particulares do passado recente e do presente onde a autogestão fez parte, de uma forma ou de outra, dos processos econômicos e sociais experimentados pela classe trabalhadora. Um dos objetivos desta pequena pesquisa e reflexão é entender melhor a relação entre a tomada do poder pelos trabalhadores nos locais de trabalho e os processos produtivos mais amplos, históricos, nos quais o movimento proletário se afirma. A última parte terá como propósito realizar a reflexão comparativa. Por ora, comecemos pelo cronologicamente primeiro, até chegar ao tempo presente.

Iugoslávia

A palavra autogestão surge nas línguas latinas como uma tradução do servo-croata samoupravlje (samo ~ como o grego “auto”, upravlje ~ “gestão”). Embora do ponto de vista conceitual essa história seja bem mais antiga que uma simples adaptação linguística, o surgimento da palavra indica a importância que a experiência iugoslava teve na massificação do debate a respeito da gestão direta das unidades produtivas por mãos dos trabalhadores. O termo teria primeiro aparecido em francês, autogestion, justamente para traduzir algo que se nomeava nas práticas da Iugoslávia socialista. Então, qual foi a experiência do socialismo iugoslavo?

Diferente de muitos outros países do leste europeu, não foram as tropas soviéticas quem liberaram o território iugoslavo da ocupação nazista após a segunda grande guerra, mas sim diferentes forças milicianas de resistência, em especial os partisãos sob a liderança do comunista Tito. A vitória completa da resistência ocorre em maio de 1945, um mês após a entrada do exército vermelho em Berlim, sendo que boa parte do território já estava sob controle dos partisãos comunistas. Tendo um grande apoio popular colhido pela vitória militar, os comunistas ganham a eleição organizada em novembro do mesmo ano: com o boicote eleitoral dos monarquistas, Tito é elevado ao governo nacional com mais de 90% dos votos, todavia em muitos bons termos com a União Soviética. Mas isso não durou muito, em 1948 ocorre a ruptura com Stalin, alimentada pela defesa da soberania nacional contra a potência soviética, o que leva à busca por uma “via própria” de realizar o socialismo nacional – desalinhar-se com o bloco comunista e aspirar a relações comerciais multilaterais com ambos os blocos do pós-guerra e demais países que tentavam estabelecer um campo independente[1].

Em 1950 o partido comunista iugoslavo (renomeado Liga dos Comunistas da Iugoslávia, LCI) legislará o novo modelo econômico baseado na formalização de conselhos proletários responsáveis pela gestão tanto de unidades produtivas como de territórios (essa lei será complementada em 1953, fará parte da Constituição de 1963 e seguirá sendo modificada nos anos seguintes, La Autogestión… 1969). Não é demais lembrar que o modelo econômico soviético de então estava baseado na extrema centralização e na expansão aceleradíssima da indústria pesada, e que o imperialismo russo se expandia justamente levando seu modelo de produção e gestão característicos a outros territórios. A ruptura com Stalin não se limita ao fechamento do trânsito econômico, a aplicação de um caminho “heterodoxo” ao socialismo não deixava de ser uma afronta ideológica e política à linha oficial do movimento comunista internacional, o que se formaliza na não participação da Iugoslávia no Pacto de Varsóvia e tampouco na COMECON, a organização de cooperação econômica internacional do bloco soviético (uma espécie de OCDE do bloco soviético, assim como o Pacto foi seu braço militar contra a OTAN).

Apesar da vontade pública de se diferenciar do comunismo “oficial”, já em poucos anos o regime iugoslavo mostrava que sua linha política não estava assim tão afastada das práticas stalinistas. Que o diga Milan Djilas, militante comunista tido como o futuro sucessor de Tito na presidência nacional e por muitos anos membro do Comitê Central do partido, preso pela primeira vez em 1954 após realizar severas críticas públicas ao regime. Na prisão, no ano de 1957, escreve o livro “A Nova Classe” onde expõe o espírito da classe, que outros autores chamaram de gestores, no seio dos regimes comunistas pelo mundo, seus métodos, suas ideologias, seu papel histórico. Ainda que escrito em meio à reorganização econômica, Djilas já entende os motivos profundos das reformas “autogestionárias”: não se tratava de que os comunistas iugoslavos fossem especialmente humanistas e sensíveis em comparação com seus vizinhos stalinistas. Sem o apoio da potência soviética, o regime iugoslavo buscava assegurar o apoio popular para garantir sua estabilidade:

Todo o esforço iugoslavo em prol da administração direta não foi para o regime mais do que uma válvula de segurança; por meio da rede de impostos fiscais e de empréstimos forçados, viu-se retido o salário beneficiário que os trabalhadores acreditavam que poderia ser distribuído: não lhes restou mais do que as sobras da mesa e algumas ilusões a menos. (Djilas 1963, p. 72)

Tentativas muito estudadas de dar aos operários uma participação nos benefícios [excedentes] têm sido feitas na Iugoslávia e se projetam agora nos países da Europa Oriental. Essas tentativas têm como rápida consequência a retenção dos “benefícios excessivos” nas mãos da burocracia, que justifica essa ação dizendo que está contendo a inflação e investindo o dinheiro de maneira sensata. Tudo o que sobra ao operário são pequenas quantidades nominais e o “direito” a sugerir como devem ser investidos estes benefícios por meio do partido e da organização gremial, ou seja, da burocracia. Sem direito à greve e a decidir o que deve possuir cada qual, os operários não têm muitas probabilidades de obter uma verdadeira participação nos benefícios. Se mostra evidente que todos estes direitos estão entrelaçados com diversas formas de liberdade política. Não se pode obtê-los isolados uns das outras. (op. cit., p. 109)

Pois bem, de que se tratava tal legislação, a via da autogestão iugoslava?[2] As primeiras reformas foram responsáveis por criar as estruturas de gestão locais, que envolviam as unidades produtivas industriais, as rurais, os territórios e por fim os serviços gerais. Uma das propostas relevantes foi o controle da gestão comunal sobre a gestão das empresas, que dava à comuna territorial a responsabilidade de supervisionar o balanço das empresas, além de interferir na nomeação dos diretores. Enquanto o Estado mantém de forma “discreta” o papel de orientar a economia por meio das planificações, impostos e decretos, a supervisão comunal seria um dos instrumentos de controle popular sobre as tendências liberalizantes das empresas autogestionadas. Cada empresa conta com um conselho operário, que juntava entre 15 e 120 operários (mais frequentemente entre 15 e 60). O seus integrantes são eleitos pelas bases por um mandato de 1 ou 2 anos, e três quartos devem estar compostos por trabalhadores que desempenham a atividade principal da empresa para evitar uma sobrerrepresentação dos quadros técnicos. Os diretores são os responsáveis técnicos de gestão, podem contratar e licenciar operários e participam do conselho. Antes da nova lei o diretor era apontado pelo Estado, posteriormente passa a ser nomeado pelo conselho operário e pela comuna. Algumas reformas posteriores descentralizaram ainda mais as unidades produtivas (por exemplo, a companhia de trem se dividiu em 160 unidades autônomas), cada uma com seu conselho, mas estes de natureza consultiva. O grau de autonomia de cada unidade produtiva pode ser expresso na divisão dos excedentes obtidos por cada empresa: até 1958, os impostos sobre os excedentes chegavam a 88%, quando foram baixando progressivamente até que em 1962 a divisão era de 25% para os organismos centrais, 35% para a comuna e 40% para a própria empresa. Veremos que com o passar dos anos essa autonomia financeira irá aumentar ainda mais à medida que o mercado passa a ter maior papel na organização econômica. Com relação aos salários, o Estado estabelece um salário mínimo, mas não um máximo. Num primeiro momento se tratou de estabelecer uma remuneração por função, depois passou-se à remuneração por unidade produtiva, segundo os resultados da mesma, e por fim, com a introdução das subdivisões das empresas, chegou-se a formular um salário composto por três fatores: o resultado do trabalho individual, o resultado do trabalho de sua equipe e o obtido pelo conjunto de sua empresa.

No campo, os modelos clássicos da agricultura soviética estavam presentes: as granjas estatais (“sovkhoz”), com assalariados rurais, e as cooperativas de trabalho (“kolkhoz”). Antes do período da autogestão foram praticadas as coletivizações forçadas ao modo soviético – que igualmente resultaram num grande fracasso de participação e de produtividade, gerando escassez de alimentos. A partir de então a agricultura voltou a ser majoritariamente praticada em terras privadas e as terras utilizadas pela produção socializada (cooperativa ou estatal) não passavam de 10% do solo cultivável. No entanto, devido à baixa produtividade do cultivo familiar de pequenas proporções, a produção socializada era responsável por 50% do excedente comercializado, especialmente de grãos e dos cultivos de matéria-prima industrial. Tal como as unidades produtivas urbanas, as rurais eram controladas pelas comunas, que autorizavam a fundação das cooperativas e supervisionavam a atividade. Além destas duas modalidades de produção socializada “oficiais”, também foram muito comuns as cooperativas de consumo que estendiam suas funções também para a área produtiva, por meio de variados contratos de trabalho comum, outorgamento de crédito etc.

Por fim, faziam parte do setor da “gestão social” os serviços públicos gerais e a banca, em diferentes modelos: a banca nacional com uma participação “simbólica” dos conselhos operários (14 conselheiros indicados pelo Estado e 7 pelo conselho operário dos trabalhadores – o mesmo na radiofusão); nas editoras, teatros, bibliotecas e saúde: gestão dos quadros técnicos também com certa participação dos conselhos operários; gestão indireta de grupos representantes de consumidores e usuários; gestão de conselho diretamente eleito por consumidores e usuários; por fim, a modalidade mais direta de gestão social, realizada por assembleias que elegem diretamente os órgãos de gestão, além de decidir sobre aplicação orçamentária, presente no Conselho de Imóveis Habitacionais e nos institutos de segurança social de cada distrito. Por sua vez, o Comitê Popular é formado pelo conselho comunal (15 a 20 membros) e pelo conselho de produtores (15 a 20 também), eleitos por quatro anos; um conselho de cidadãos é formado por integrantes do Comitê Popular e por quadros técnicos para levar adiante comissões específicas como de Saúde, Educação, Agricultura, etc. A comuna se conforma como uma unidade não apenas administrativa, mas também econômica, pela sua composição organizacional e também por ter responsabilidades e funções nas atividades das unidades produtivas de seu território.

A que realidade econômica se aplicam estas modalidades formais de gestão? Antes da Segunda Guerra Mundial, 75% da população iugoslava estava no campo, implicada na economia agrária; em 1962 a divisão já é metade da população urbana e metade rural. A rápida industrialização do país se expressa na média de 6,3% de crescimento do PIB durante a década de 50, com taxas ainda mais altas nos anos seguintes – em 1947 a indústria representava 29,4% do produto nacional, passando a 48,3% em 1964. No entanto, o país experimentou seguidamente uma balança comercial negativa e uma baixa competitividade nos principais setores nacionais, algo para o qual Djilas já chamava a atenção em 1957:

As planificações comunistas, entre outras coisas, têm muito pouco em conta as necessidades dos mercados mundiais ou da produção em outros países. Em parte como consequência disto, e em parte como consequência de motivos ideológicos e de outras classes, os governos comunistas tomam demasiado pouco em conta as condições naturais que afetam a produção. Constroem com frequência plantas industriais sem contar com a matéria prima suficiente, e quase nunca prestam atenção ao nível mundial dos preços e da produção. Produzem algumas mercadorias a um custo várias vezes maior que o de outros países. Simultaneamente, são descuidados outros setores da indústria que poderiam superar em produtividade a média mundial, ou que poderiam produzir a preços inferiores da média mundial. Criam-se novas indústrias ainda que os mercados mundiais estejam abarrotados com as mercadorias que produzirão. A população trabalhadora tem que pagar por tudo isso para que os oligarcas sejam “independentes”. (pp. 120-1)

Com o gradual desaceleramento econômico nos anos 60 e o comércio internacional continuamente deficitário, novas reformas foram introduzidas rumo a uma maior descentralização econômica, como ocorria também na quase totalidade das economias nacionais socialistas do leste europeu. Isso queria dizer um papel mais indireto do planejamento central, que se limitava a traçar metas de longo prazo e “orientar” a economia, deixando de usar ferramentas econômicas como o estabelecimento de preços e salários, além dos investimentos de capital direcionados. Um maior controle sobre os excedentes em cada empresa, a premiação e uma maior liberdade aos diretores, novos sistemas de créditos e juros foram algumas das novidades que contribuíam para que as empresas tivessem uma maior autonomia, uma maior produtividade estimulada pela concorrência entre elas e uma maior capacidade de reagir ao mercado em geral. Um dos principais efeitos desta abertura ao mercado foi a acentuação das diferenças regionais do país, que proporcionou o contexto material para a fragmentação final regada à sangue.

A explicação para o fracasso iugoslavo tem alguns argumentos específicos no que diz respeito à novidade da autogestão. Não queremos aqui abordar o desafio complexo de explicar o fracasso das economias socialistas do século XX. Ainda que não haja dúvidas de que esse destino comum tenha afetado as formas como se deu a gestão econômica iugoslava, partimos do princípio de que não podemos entender uma coisa sem a outra, especialmente se tratando de uma economia nacional inserida no mercado global e portanto na divisão social do trabalho global capitalista. Alguns autores, ainda assim, chamam a atenção para fatos relativos aos conselhos operários desta experiência: Tragtenberg (1986) aponta para uma gradual diminuição dos trabalhadores não qualificados na composição dos conselhos operários; Jacopovich e Lebowitz apontam para o fato de que embora os trabalhadores estivessem formalmente encarregados da gestão, o mais frequente era que simplesmente acatassem as sugestões dos quadros técnicos ou dos diretores, seja por simples passividade, seja por sentirem-se incapacitados para gerir a empresa. Certamente esta passividade está vinculada com o contexto político mais amplo, dado o grau de desconfiança e de resignação frente a um Estado controlado por um partido único centralizador. O PC iugoslavo teve uma história de 20 anos de clandestinidade antes da Segunda Guerra, forjando uma experiência altamente conspiratória e centralizadora, e sua composição também foi se transformando durante o regime: em seus inícios chegou a contar com 4/5 de operários e camponeses, em 1957 estes já eram menos da metade, dando espaço para os burocratas e gestores de carreira. Do ponto de vista econômico, o Estado seguiu sendo o operador das Condições Gerais de Produção, estabelecendo o volume de impostos e controlando aspectos estratégicos como a imprensa e a banca. Do ponto de vista político, tinha o monopólio como partido único e também como organizador dos trabalhadores, já que lhes era proibido organizarem-se em federações de produtores ou qualquer organização “extra-estatal”:

Sem liberdade geral não pode ser livre nem sequer a administração pelos trabalhadores. Em uma sociedade que não é livre ninguém pode decidir nada livremente. Os doadores obtiveram a parte mais valiosa da doação de liberdade que supostamente foi feita aos trabalhadores.(Djilas, 1963, p. 72 )

O caso iugoslavo nos apresenta uma tentativa talvez inédita de institucionalização da autogestão proletária como construção alternativa ao “socialismo real”. Com os poucos dados e materiais que se pode encontrar em línguas latinas, é possível ver que tal tentativa falhou em diferenciar-se das demais experiências, tanto pelo destino comum que tiveram como pela incapacidade de socializar verdadeiramente os meios de produção, para além do discurso. Infelizmente não contamos com materiais que relatassem a experiência vivida pelos trabalhadores, para que pudéssemos entender os movimentos e tendências internas à classe – a mera descrição dos fatos econômicos e institucionais não nos permite entender profundamente as causas da passividade, ou mesmo se a passividade era moral ou apenas a explicação mais “palatável” para as pequenas repressões cotidianas. Assim ficamos sem saber que efeitos teve na classe trabalhadora a imposição de cima para baixo de uma autogestão formal – se ela foi tomada com plena indiferença, se ela gerou algum movimento, restrito que fosse, que almejasse a superação do controle estatal, enfim, se colaborou ou não para algum tipo de novas associações entre os trabalhadores. Algo assim é possível constatar no caso chileno, que veremos à continuação.

Adendo: Para os interessados no tema, temos um exemplo destes debates entre centralização ou autogestão das empresas no socialismo real, por mãos de Che Guevara, no seu texto Sobre el sistema presupuestario de financiamiento (1964).

Notas:

[1] Como o Movimento de Países Não-Alinhados.

[2] Os próximos parágrafos estão essencialmente baseados em La Autogestión, el Estado y la Revolución (1969), pp. 79-105

Textos consultados:

Jakopovich, Dan (2010) Las fuentes del déficit democrático en el sistema de “autogestión” yugoslavo. Revista Cayapa Año 10, no. 19, pp. 23-30

La Autogestión el Estado y la Revolución (1969), ed. Proyección, Buenos Aires, pp. 79-105

La economía de los países socialistas (1974) Biblioteca Salvat de Grandes Temas. Salvat Editores S.A., Barcelona

Las Heras, Jon (s.d.) El deterioro de una utopia: la crisis económica Yugoslava. Disponível aqui.

Lebowitz, Michael A.(2008) Gestión obrera, desarrollo humano y socialismo. Temas no. 54, pp 4-13

Tragtenberg, M.(1986) Reflexões sobre o Socialismo, Editora Moderna, São Paulo, pp. 46-50

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As imagens que ilustram o artigo são screenshots do filme Underground (1995), dirigido por Emir Kusturica. O filme é uma alegoria de parte da história da Iugoslávia.

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