Após Brest-Litovsk, alguns comunistas debateram seus receios com os rumos da revolução; raramente se viu compreensão tão certeira dos fatos do momento e do porvir. Pelos editores do jornal Kommunist
Introdução (revista Critique, Glasgow, 1977)
O documento que segue abaixo traduzido é o manifesto da Oposição de Esquerda, publicado no primeiro número do jornal moscovita Kommunist em 20 de abril de 1918. Esta tradução é a primeira tradução integral para o inglês a ser publicada[1].
O manifesto foi um documento profético, pois muitas das ideias nele contidas prenunciaram os programas dos grupos posteriores de oposição de esquerda na União Soviética. De fato, muitas das personalidades associadas com a posição dos Comunistas de Esquerda foram destinadas a aparecer em tais grupos. É, deste modo, altamente significante que o fator a precipitar a formação do grupo tenha sido a conclusão da paz de Brest-Litovsk. Tal fato pareceu a alguns como a primeira ruptura do partido bolchevique com os princípios do marxismo revolucionário e com seu compromisso com a revolução mundial. Os argumentos em favor da aceitação dos termos da paz alemã foram, é claro, pesados[2], e soaram realistas em contraste com o ponto de vista oposto, que estava aberto à acusação de romantismo revolucionário. Apesar disto, na visão dos Comunistas de Esquerda, a partir da aceitação de tais termos fluíram as consequências inescapáveis de uma revolução socialista em isolamento: degeneração e burocratização. O próprio ato de aceitar a paz, para piorar, diminuiria por si só as chances de uma revolução no Ocidente.
O debate em torno de fazer ou não a paz com a Alemanha que avançava passou por uma série de etapas. Primeiramente, em janeiro, a maioria estava a favor da guerra revolucionária. Trótski ocupou a posição intermediária que defendia “nem paz, nem guerra”, mas quando sua temporização se mostrou infrutífera em face do exército alemão, ele aceitou então a trégua. Argumentou na reunião do Comitê Central destacada abaixo que, se o partido estivesse unido, poderia e deveria conduzir uma guerra revolucionária; uma vez que este não era o caso, “ele não poderia assumir a responsabilidade de ter votado pela guerra”[a]. Lenin, todavia, argumentou consistentemente que o partido não tinha outra escolha além de aceitar a paz.
A decisão de assinar a paz foi aprovada no Comitê Central em 23 de fevereiro de 1918. Houve sete votos favoráveis (Lênin, [Grigóry Yevsêievich] Zinóviev, [Yákov Mikháilovich] Sverdlóv, Stálin, [Grigori Yakovlevich] Sokolnikov, [Ivar Tenisovich] Smilga e [Elena Dmítrievna] Stásova) e quatro contrários ([Nikolai Ivanovich] Bukhárin, Lomov, [Andrêi Serguêievich] Búbnov e [Moisêi Solomônovich] Uritsky), com as abstenções de Trótski, [Adôlph Abrâmovich] Joffe, [Nikolái Nikoláievich] Krestinsky e [Félix Edmúndovich] Dzerjinsky. No dia seguinte a resolução foi aprovada pelo Executivo Central Soviético (VTsIK) por 112 votos contra 84, com 24 abstenções. O tratado foi, subsequentemente, ratificado pelo VII Congresso do Partido (6 a 8 de março de 1918) e pelo IV Congresso dos Sovietes (14 a 16 de março de 1918). O Congresso dos Sovietes a que o manifesto se refere contou com a presença de 1.172 delegados com direito a voto, e a resolução foi aprovada por 784 votos contra 261, com 115 abstenções.
Foi na sequência de sua derrota na questão de Brest-Litovsk que a esquerda do partido (que incluía Bukharin, [Valerian Obolensky, vulgo Nikolái] Osinsky, [Karl Berngardovich] Radek, Búbnov, [Stanisław Vikentyevich] Kosior, [Alexandra Mikháilovna] Kollontai, Pokrovsky, [Yevguêni Aleksêievich] Preobrazhensky, [Georgy Leonidovich] Pyatakov, [Timofêi Vladímirovich] Saprônov, Saparov, Uritsky, Kritsman, [Vladímir Mikháilovich ] Smirnov, [Józef Stanislávovich] Unsklikht, [Yemelyan Mikháilovich] Yaroslavsky, Inessa Armand, Bela Kun e [Ivan Ivânovich] Skvortsov-Stepanov) apresentou as teses abaixo. Elas foram discutidas com Lênin e outros líderes partidários numa reunião em 4 de abril de 1918. Lênin prometeu apresentar uma série de contrateses. Sua resposta aos Comunistas de Esquerda, todavia, tomou a forma de artigos mais extensos, tais como As tarefas imediatas do poder soviético e Sobre o infantilismo “de esquerda” e o espírito pequeno-burguês, que castigaram os pontos de vista definidos no manifesto da Esquerda.
Em janeiro de 1918, três das mais importantes organizações partidárias apoiavam a Esquerda: os comitês distritais de Moscou, Petrogrado e dos Urais. O jornal Kommunist foi produzido como o órgão do comitê partidário local de Petrogrado de 5 a 19 de março sob a editoria de Bukhárin, Radek e Uritsky. Onze edições apareceram no total[b]. De 20 de abril a 15 de maio quatro outras edições do Kommunist foram publicadas; desta vez o jornal foi publicado em Moscou, com V. Smírnov e Osinsky na comissão editorial no lugar de Uritsky. O debate original que havia começado em janeiro em torno da questão da guerra e da paz agora se tornara um debate em torno da questão de ser ou não correto empregar a gerência unipessoal, o sistema Taylor de controle industrial, o uso dos especialistas burgueses e da disciplina hierárquica. Assim escreveou Preobrazhensky em resposta àqueles que apoiavam o fim do controle operário nas ferrovias:
O partido terá, aparentemente, de decidir até que ponto a ditadura dos indivíduos será estendida desde as ferrovias e outros ramos da economia até chegar ao Partido Comunista Russo[c].
Apesar de os Comunistas de Esquerda terem perdido o controle dos comitês partidários de Moscou e Petrogrado, o debate continuou. Na Conferência Partidária da Área de Moscou, em 15 de maio de 1918, Lênin aceitou a acusação de que a Rússia estava se movendo rumo ao capitalismo de Estado, argumentando que a disciplina na produção era o necessário para empreender a transição ao socialismo. Isto respondia à Esquerda, que argumentava em favor de uma socialização mais extensiva. Radek e Osinsky reivindicaram explicitamente por uma nacionalização generalizada no primeiro Congresso dos Conselhos Econômicos ocorrido entre maio e junho de 1918.
Alguns membros do Comitê Central que apoiavam os Comunistas de Esquerda (Bukhárin, Lomov, Uritsky) recusaram-se a a assumir suas posições, apesar de um debate partidário endossando uma moção que recusava a aceitar suas demissões. Outros – como Preobrazhensky – não foram reeleitos para seus cargos anteriores, enquanto ainda outros deixaram o partido. Não apenas não foram empregues sanções contra os Comunistas de Esquerda como, em geral, eles continuaram a ocupar cargos estatais de liderança. Assim, por exemplo, Osinsky foi o primeiro presidente do Conselho Econômico Supremo, onde ele não hesitou em expressar seus pontos de vista.
Algumas das distorções dos pontos de vista de ambos os lados tornaram-se notórias. Lênin e Trótski, que adotaram essencialmente o mesmo ponto de vista após o Sétimo Congresso do partido, continuaram a reforçar a natureza unificada da revolução mundial, argumentando não em termos das necessidades da Rússia, mas em torno da necessidade de assegurar uma base proletária para avanços ulteriores, quando as demais partes do mundo estivessem prontas. De fato, em seu ataque aos Comunistas de Esquerda em 15 de maio de 1918, Lênin argumentou que o proletariado ocidental agora tinha a possibilidade de compreender a natureza dos bolcheviques e destacou a importância de tal fato para a agitação[d]. Em outras palavras, o debate era tático. Como E. H. Carr sugere, as diferenças entre Lênin e Trótski diziam respeito a questões de ênfase:
A figura popular de Trótski, o defensor da revolução mundial, conflitante com a de Lênin, o campeão da segurança nacional ou do socialismo num só país, é tão distorcida que chega ao ponto de ser quase inteiramente falsa… Na controvérsia de Brest-Litovsk, apesar de Trótski ser o mais eloquente e engenhoso defensor da revolução mundial, ele também foi o campeão da política de lançar um grupo capitalista contra o outro; ele estava no polo oposto daqueles que defendiam firmemente a posição do puro princípio revolucionário, imaculado pela transigência ou pela conveniência… Por outro lado, Lênin, ao tempo em que insistia nas necessidades da defesa nacional, estava tão longe de abandonar a revolução mundial que reforçou-a constantemente como meta suprema de sua política[e].
Há também aqueles que veem algum tipo de significado anarquista nos protestos da Esquerda em 1918; na visão de tais críticos, os Comunistas de Esquerda argumentavam em favor de um controle descentralizado por parte dos trabalhadores de cada fábrica. Todavia, Osinsky, que também tomou parte em futuras oposições, deixa bem claro em sua obra sobre economia escrita em 1918 que o partido bolchevique contrapôs corretamente o controle de classe das fábricas ao controle individualista por parte dos trabalhadores[f]. Se usarmos uma analogia moderna, os Comunistas de Esquerda são muito mais comparáveis à esquerda na extinta frente popular chilena que a um agrupamento semianarquista. Nem uns nem os outros estavam, de modo algum, opostos ao uso do poder estatal na construção do socialismo, mas ambos temiam que seus líderes procediam com muito vagar, e que os acordos necessários para manter o poder poderiam apenas enfraquecer o regime.
O ponto essencial é que todo bolchevique de relevo compreendia que a degeneração burocrática ou burguesa era inevitável na ausência da revolução mundial, mas Lênin e Trótski pensavam que o proletariado internacional se insurgiria a tempo de reverter o processo degenerativo. Os Comunistas de Esquerda não eram tão otimistas; queriam manter o ímpeto do processo revolucionário na Rússia e fora dela.
O significado dos Comunistas de Esquerda e de suas ações reside num número de diferentes direções. Em primeiro lugar, mostra as enormes diferenças possíveis no momento dentro do partido bolchevique sem que houvesse qualquer sanção. Em segundo lugar, o pessoal e as ideias dos Comunistas de Esquerda formaram a base dos grupos de oposição que lhe seguiram. Em terceiro lugar, e mais importante, há a questão em torno das lições que podem ser aprendidas para o presente; se, no fim das contas (com o benefício do conhecimento da total degeneração da URSS, como os Comunistas de Esquerda alertaram), se pode dizer que os Comunistas de Esquerda estivessem, talvez, com a razão.
Teses sobre a situação atual
Todo camarada que siga atentamente a vida partidária saberá que surgiram no início deste ano sérias diferenças nas fileiras partidárias acerca da questão da conclusão de uma paz com a Alemanha.
Tais diferenças foram discutidas duas vezes pelo Comitê Central junto com os militantes partidários responsáveis: a primeira vez no dia 20 (7) de janeiro e a segunda no dia 3 de fevereiro (21 de janeiro) de 1918. Nestas sessões apareceram duas tendências básicas, uma das quais, a de “direita”, defendeu a rápida conclusão de um acordo de paz nos termos então oferecidos, sem levar o assunto ao ponto de romper com as negociações; e outra, a “esquerda”, exigiu a rejeição destes termos e a declaração de uma guerra revolucionária. Uma tendência intermediária colocava-se contra a assinatura de uma paz anexionista, e também contra a continuidade da guerra.
Como é de conhecimento geral, foi primeiramente a posição intermediária que prevaleceu. Após o início do ataque alemão – a resposta à tática de parar a guerra sem assinar o tratado de paz – a questão foi novamente colocada na agenda do Comitê Central e, eventualmente, chegou-se a uma decisão em favor da conclusão da paz. Como resultado, a minoria, que insistiu na aceitação da guerra contra o imperialismo alemão, saiu do CC, e subsequentemente camaradas aderentes a esta tendência demitiram-se de postos de responsabilidade nos órgãos do poder soviético.
Uma solução final para tais diferenças em sua forma original foi dada pelo congresso partidário ocorrido no início de março e no congresso dos sovietes que tomou lugar em meados de março. O congresso do partido, por uma maioria de 28 a 12, com 4 abstenções, aprovou a tática da maioria do Comitê Central e reconheceu a confirmação da paz como inevitável. O congresso dos sovietes ratificou a paz por considerável maioria.
O grupo de bolcheviques que publica o jornal Kommunist em Petersburgo, o grupo minoritário no congresso partidário, todavia, considerou equivocado não fazer uso da palavra no congresso dos sovietes. Neste congresso, foi apresentada uma resolução em nome de 58 delegados e 10 membros do VTsIK, na qual os comunistas de esquerda declaravam que não se sentiam capazes de votar pela ratificação da paz uma vez que consideravam-na extremamente danosa à causa da revolução russa e ao proletariado internacional. Em defesa da disciplina partidária, não votariam contra, mas se absteriam de votar.
Após a ratificação da paz pareceu, de um lado, que as diferenças no partido perderam sua raison d’etre [razão de ser], uma vez que a ratificação da paz, o único ponto em disputa, tornara-se um ponto realizado e um fato irrefutável. Por outro lado, todavia, a conclusão da paz lançou as bases para o surgimento de novas diferenças. A conclusão da paz não poderia ser um simples ato legal; foi um evento que alterou fundamentalmente toda a posição política e econômica. Nos debates em torno da conclusão da paz, dois pontos de vista diferentes em torno das tarefas do proletariado russo, duas avaliações da corrente situação política, tornaram-se manifestas. A própria conclusão da paz colocou a revolução russa numa encruzilhada. A maioria partidária começara a seguir um caminho, e a minoria partidária – a ala comunista e proletária de esquerda – segue por outro.
Ainda é difícil dizer como os dois caminhos divergirão. É possível que as diferenças sejam tratadas no decurso de um debate entre camaradas. É também possível que se aprofundem. Em todo caso, a ala esquerda não considera necessário ou útil escondê-las. Tendo isto em mente, o escritório do distrito moscovita do PCR, que se alinha com a ala esquerda do partido, abriu as páginas de seu jornal, que agora está sendo publicado para discutir tais diferenças. As teses impressas abaixo representam os pontos de vista do corpo editorial acerca da situação política corrente e as tarefas da classe trabalhadora russa. (Tais teses foram lidas e debatidas na sessão conjunta do grupo de comunistas de esquerda e camaradas importantes do centro partidário no dia 4 de abril de 1918.)
1. A conclusão de uma paz anexionista com a Alemanha fechou o período precedente da revolução russa e abriu nela uma nova etapa. Em consequência da contradição entre o imperialismo alemão e a revolução dos trabalhadores e camponeses russos, demandas revolucionárias internacionais foram contrapostas aos desejos anexionistas dos imperialistas. Tal contraposição produziu por si mesma a agudização da luta de classes na Áustria e Alemanha, temporariamente embotada quando o imperialismo alemão agiu decisivamente contra a república soviética. O ataque alemão, o ultimato alemão e a paz anexionista foram, todos, formas e armas deste massacre.
2. No começo de março a revolução proletária e camponesa foi confrontada com a escolha: aceitar ou declinar da batalha. Uma maioria decisiva de organizações de operários, soldados e camponeses tomou o último caminho. Representantes de vários elementos compuseram esta maioria. Houve primeiramente as massas soldadescas exaustas e desclassificadas. Em segundo lugar houve alguns trabalhadores da região industrial do norte da Rússia, onde a separação das fontes sulistas de matérias-primas como carvão e ferro haviam-se combinado com o rebentamento agrícola geral para produzir a fome, um forte declínio na indústria, desemprego e a interrupção do curso normal do trabalho produtivo. Isto levou ao debilitamento do caráter de classe do proletariado (o enfraquecimento de sua consciência e unidade de classe) ou, em qualquer taxa, à redução de sua militância enquanto classe. Finalmente, estiveram representados camponeses das regiões industriais do norte e do centro, exaustos pela guerra, pela má colheita, pelas dificuldades com os suprimentos e pelo rebentamento da indústria urbana. Os trabalhadores e camponeses das regiões mais economicamente ativas e mais bem alimentadas do sul, sudoeste e dos Urais, todavia, estavam na maioria dos casos a favor de aceitar a batalha, mas não prevaleceram. Para preservar o norte industrial que havia estado até aqui no centro da revolução, a paz foi concluída às expensas da separação do norte industrial do sul industrial e granífero.
3. Seria ridículo pregar, como fazem os SRs de esquerda, pela “não-aceitação em princípio” desta paz. A conclusão desta paz, assim como a vitória das frações atrasadas e exaustas dos trabalhadores e camponeses, é um fato objetivo que cria uma nova situação objetiva, um novo conjunto de circunstâncias para a atividade econômica, uma nova combinação de forças de classe. A separação da “Grã-Rússia” da Ucrânia ocidental, a ameaça de isolamento das regiões de Katerynoslav e da bacia do Don, a evacuação de Petersburgo – estes são fatos objetivos da vida econômica. As concessões de caráter econômico que os imperialistas estrangeiros demandarão com base no tratado de paz concluído em Brest-Litovsk poderão também ter um forte efeito sobre as circunstâncias econômicas. Finalmente, a consolidação entre as massas de uma “psicologia da paz” é um fato objetivo da situação política.
Mas ao levar em conta a situação produzida pela paz de Brest, os comunistas proletários não podem basear-se apenas nestes fatos, não podem adotar o nível de consciência de uma porção atrasada, passiva e inativa de uma das seções do proletariado ou do campesinato russos. Eles determinam suas tarefas com base nos interesses dos trabalhadores da Rússia como um todo, ligando tais tarefas com o crescente movimento revolucionário internacional. A direção básica de sua linha política não é a preservação a todo custo das conquistas dos trabalhadores no presente e desarticulado território da república soviética, pois tal situação, na prática, significa sacrificar tais conquistas no território atrasado da Rússia e a transformação pequeno-burguesa do atual Estado soviético. Sua linha é o desenvolvimento e o fortalecimento de toda a Rússia enquanto unidade de luta da revolução internacional dos trabalhadores contra o imperialismo internacional.
4. A conclusão, pela república soviética, de uma paz anexionista com a Alemanha sem dúvida enfraqueceu temporariamente as forças da revolução internacional e fortaleceu o imperialismo internacional. Mas as forças básicas da revolução internacional ainda crescem e abrirão caminho em meio aos obstáculos que a confrontam, fazendo uso de alguns resultados da conclusão da paz como fatores de fortalecimento do movimento revolucionário.
A conclusão da paz, no presente, enfraqueceu o impulso imperialista rumo a uma redivisão internacional do território. De seu ponto de vista, a Rússia foi lançada para trás enquanto centro da revolução mundial. O medo de sua influência não mais empurra tão fortemente os imperialistas beligerantes uns nos braços dos outros. A Rússia também está derrotada enquanto unidade militar. Daí a possibilidade ter sido aberta para os imperialistas alemães de lançar todas as suas forças em direção ao Ocidente e de lutar pela vitória completa sobre os imperialistas das potências da Entente. Esta última, por sua vez, tendo em vista a iminente partição da Rússia e o perigo da derrota que os ameaça, empregam todas as suas forças para resistir e garantirem a si próprios contra-anexações no Extremo Oriente e na Turquia. Para fortalecer tais conquistas, devem lutar para prevalecer num teatro de guerra decisivo. Consequentemente, a conclusão da paz já levou à agudização da rivalidade entre as potências imperialistas.
5. Sem dúvida, a conclusão de uma paz anexionista no presente momento restringiu acentuadamente o desenvolvimento das pré-condições psicológicas para a revolução internacional que se amadureciam já na primavera de 1918. Mas não foi capaz de conter, e parcialmente promoveu, o desenvolvimento das contradições materiais que constituem a principal base de um surto revolucionário. O atraso da revolução em se fazer aparecer em aberto sem dúvida fá-la-á assumir formas mais fortes e violentas.
O incremento na luta entre as alianças de imperialistas drena até a escória os recursos econômicos rebentados das potências beligerantes; tal fato leva tanto à destruição de “material humano” quanto ao acentuado declínio econômico geral. A agudização das contradições materiais na base da crise agricultural e alimentar nas potências centrais (especialmente na Áustria) não pode ser contida satisfatoriamente com a tomada da Ucrânia, pois durante a fase mais crítica – a primavera de 1918 –o capital alemão não conseguirá extrair de lá os recursos alimentares e mercantis necessários. A Ucrânia está sendo tomada num momento em que as requisições de grãos estão sendo finalizadas (elas próprias, por seu turno, fracassadas), no auge da Guerra Civil, e num momento em que fábricas e minas encontram-se carentes da força de trabalho necessária, do coque, da lenha, do combustível etc., e as ferrovias de carvão e material rodante. Ao mesmo tempo, a política anexionista da Alemanha na frente oriental dá origem a um número de conflitos nacionais tanto em sua “retaguarda imediata” (Polônia, Ucrânia, Letônia, Estônia) quanto no coração do bloco nacional austríaco (Galícia, Boêmia) e também no interior da própria aliança das Potências Centrais.
Por outro lado, deve ser notado que a conclusão da paz tem um efeito negativo no desenvolvimento espiritual e psicológico da revolução internacional. A influência da revolução russa no movimento operário internacional é enfraquecida por sua capitulação ao imperialismo internacional (o fim da propaganda revolucionária no fronte, a rejeição da política de desmascaramento do imperialismo internacional, o possível curso “moderado” da política interna na Rússia). Nem podem as tentativas do Estado soviético de fazer manobras diplomáticas inspirar o proletariado internacional, vez que demonstram não a força, mas a fraqueza da revolução. O próprio fato da conclusão de uma paz anexionista fortalece as tendências defensistas nas seções atrasadas do proletariado internacional. Na Alemanha, os imperialistas podem destacar esta paz e prometer aos trabalhadores paz e pão como resultado das vitórias imperialistas. Eles os intimidam com o exemplo da derrota e “colapso” russo. Na França e Grã-Bretanha, eles impelem seus trabalhadores contra o proletariado alemão, que “traiu” a revolução russa. Na América, a agitação defensista se desenvolve e faz uso flagrante da defesa da revolução russa contra a invasão alemã.
Mas ao mesmo tempo o espraiamento da carnificina pelo globo afora destrói as esperanças de paz que tomaram as massas trabalhadores no outono de 1917. A exposição extremamente clara da política anexionista das classes dominantes e de seus agentes sociais no momento em que a paz foi concluída revela as tendências subjacentes do defensismo e da paz civil. Ela prepara o colapso das últimas inibições que coíbem as massas trabalhadores de agir.
O momento mais crítico no desenvolvimento das contradições afloradas pelo sistema imperialista como um todo e pela guerra imperialista estão à mão. Por toda a primavera e verão o colapso do sistema imperialista deve começar, e uma vitória do imperialismo alemão na fase atual da guerra pode apenas adiar este colapso e aumentar sua intensidade quando ele ocorrer.
6. Os cálculos dos imperialistas alemães ao concluir a paz com a república soviética são os seguintes. Primeiramente, parecia vantajoso adiar a anexação do norte da Rússia, a derrubada direta do poder soviético e a tomada imediata da economia do norte da Rússia: isto se deveu largamente à dificuldade em organizar a economia e os suprimentos no norte e à ausência de poderosos agentes burgueses que pudessem apoiar o poder ocupante (ex., a Rada central ucraniana). Em segundo lugar, era importante subjugar e explorar para as necessidades da economia capitalista alemã o sul granífero e industrial. Em terceiro lugar, ao cortar o norte do sul, criando assim um declínio econômico natural do norte; ao explorar o controle sobre as fontes de matérias-primas e grãos que alimentam o norte; e ao exercer pressão militar sobre pontos estratégicos capturados no norte e em novas anexações parciais, o imperialismo alemão estava, na realidade, calculando a sujeição do norte aos tentáculos do capital financeiro germânico, destruindo as conquistas sociais da revolução dos trabalhadores e assim, internamente, desde o centro, solapando o poder soviético. O grau de severidade, o caráter aberto ou oculto do ataque do imperialismo alemão contra a república soviética dependerá de várias circunstâncias: da posição no cenário de guerra, da situação interna das Potências Centrais e da determinação da resistência oposta simultaneamente pelo Estado soviético e pelas classes revolucionárias tanto no sul quanto no noroeste ocupado da Rússia.
7. Em adição ao ataque do imperialismo alemão, a república soviética é ameaçada por ataques da coalizão da Entente. Os planos do imperialismo alemão no futuro imediato serão dirigidos à sujeição da economia da Rússia setentrional às influências internas do capital financeiro alemão por meio de extorsões praticadas contra a república soviética, por tentativas de emasculação de seu conteúdo revolucionário, mas não pela derrubada direta. Os planos do imperialismo anglo-francês e japonês serão voltados à ocupação parcial, à restauração parcial de uma ordem burguesa e conciliacionista em áreas separadas do Extremo Oriente, à sujeição destas áreas ao controle do capital da Entente por meio de seus agentes pequeno-burgueses russos (os defensistas e os kadets). A última nota dos “Aliados” sobre a questão das dívidas canceladas mostra, a propósito, que também o capital anglo-francês inclina-se a tentar sujeitar a república soviética (como a Alemanha) a seu controle interno. Finalmente, os esforços do capital americano equivalem à sujeição da república soviética à influência do capital americano por meio do poder soviético, e não como a Alemanha que pretende exauri-lo. O capital americano conta neste caso com garantir para si um saudável mercado camponês livre da servidão, em estabelecer na Rússia uma indústria pesada unificada em trustes e em contrapor a democracia burguesa agrária e industrial que vislumbra na Rússia aos rivais dos Estados Unidos – Alemanha e Japão. Sobretudo, a situação da república soviética é agora tal que, estando sob a ameaça de ataque direto do imperialismo por todos os lados, não pode no momento levar adiante uma política de ataque geral e aberto, mas pode e deve estar preparada para ela a qualquer momento, desenvolvendo por enquanto uma política de resistência sistemática e oposição ativa aos importunos dos imperialistas de todos os países e cores.
8. A situação econômica e os agrupamentos de classe na Rússia após a conclusão da paz mudaram. A situação criada dará as bases para duas tendências opostas (o enfraquecimento e o crescimento de forças revolucionárias), o primeiro dos quais é diretamente fortalecido pela conclusão da paz e pode prevalecer num futuro imediato.
A liquidação parcial da região de Petersburgo completa seu rápido declínio, que já era aparente na primavera de 1917 e foi consequência da “artificialidade” econômica da indústria de Petersburgo num período de guerra e comunicações marítimas interrompidas. A paz foi concebida para salvar a capital “vermelha”, mas salvou apenas o território de Petersburgo, e matou-a enquanto força revolucionária. O rebentamento da produção, o desemprego, a degradação do proletariado e a redução de sua militância de classe aumentou. Petersburgo perdeu sua significância enquanto centro econômico e revolucionário principal.
A conclusão da paz anexionista solapa, embora em menor extensão, as outras regiões industriais progressivas – a área de Moscou, onde a classe trabalhadora será igualmente enfraquecida pela interrupção de suprimentos de metal, carvão, grão e o consequente desemprego e degradação.
A conclusão de uma paz anexionista também tem efeito negativo sobre a situação econômica e a atividade política (militância) dos camponeses pobres cansados e famintos das províncias industriais centrais e setentrionais. A derrocada da indústria urbana, a cessação do suprimento de grãos do sul, e o fim da migração laboral rumo à Rússia meridional criarão o empobrecimento e a degradação. Por outro lado, a proletarização do campesinato erguerá, parcialmente, impulsos revolucionários e ódio dos ocupantes alemães.
O campesinato pobre e “trabalhador” das províncias agriculturais, ocupado com a divisão da terra e não tendo tido oportunidades de organizar uma forte economia agrícola privada no período de decadência da estrutura burguesa e do declínio das forças produtivas de todos os países, continuará a apoiar o poder soviético.
A região fabril e mineira dos Urais, ligada a Priuralsky, à Sibéria Ocidental e a seus centros industriais, forma, comparativamente, uma região econômica sadia, fortemente permeada, é verdade, por estratos pequeno-burgueses e também sujeita aos efeitos da crise econômica geral. Entre os trabalhadores e camponeses pobres de tais partes a revolução dos trabalhadores e camponeses pobres e o poder soviético também encontrará apoio.
O proletariado meridional, que suportou toda a carga da derrota do levante burguês no sul e que agora dá mostras da resistência mais decisiva à ocupação alemã, deve, apesar da destruição e da exaustão, graças precisamente à sua educação de classe no fogo da guerra civil, preservar considerável combatividade de classe. Junto com o campesinato pobre da Ucrânia, também ameaçado pelo retorno dos terratenentes e pela bandidagem alemã e haidamaque[3], ele constitui um apoio constante a um levante contra os ocupantes imperialistas e seus capangas burgueses ucranianos.
O noroeste russo, como resultado do efeito ainda mais destrutivo das requisições alemãs sobre sua economia, também proverá, e já o faz, forças para a luta contra os ocupantes e terratenentes que estão sendo reinstalados. Um fator positivo é a completa desmobilização do velho exército, o que fez retornar milhões de pessoas ao trabalho produtivo, que serve para fortalecer a economia no campo, faz avançar lá o processo revolucionário e põe fim ao ambiente putrefato das unidades militares inativas. Estamos apenas começando a sentir os efeitos favoráveis do término de facto da guerra imperialista (desde outubro de 1917) e a desmobilização da indústria que começou simultaneamente.
9. Em tais circunstâncias, apesar do enfraquecimento temporário das forças da revolução e apesar da grave situação internacional da república soviética, no interior das fronteiras do atual Estado soviético não há nenhum apoio sério a um levante por parte dos monarquistas ou dos partidos conciliacionistas.
A economia terratenente e o poder político da classe terratenente foram quebrados; a burguesia foi derrotada, não há campesinato forte (um novo estrato da pequena-burguesia agrária não teve ainda tempo para se formar, e o velho estrato abandona a estrutura sob pressão dos pobres das vilas). O apoio à monarquia foi eliminado da estrutura. Por outro lado, a pequena burguesia urbana e a intelligentsia burguesa foram tornados impotentes. Não há bases para uma revivescência do poder dos partidos conciliacionistas, os mencheviques e os SRs, que em todo caso poderiam ser apenas um estágio transitório anterior à restauração da ditadura do proletariado e do campesinato pobre, e nem para a restauração da ordem burguesa. Sequer há bases para a restauração permanente da economia capitalista e terratenente nas regiões ocupadas pelos alemães.
Pelo contrário, há bases para o fortalecimento e crescimento da ditadura do proletariado e dos camponeses pobres e para a transformação socialista por eles iniciada. Em adição aos fatores antes mencionados, que fortalecem tal tendência positiva no desenvolvimento da revolução, as seguintes circunstâncias ainda são cruciais. Sobretudo, o processo inicial de esmagamento da ordem estatal burguesa e conciliacionista, das velhas relações de produção e do poder material de classe da burguesia e de seus aliados está quase completo. Ademais, a educação de classe do proletariado no curso da guerra civil dá-lhe grande medida de coesão, energia e consciência de classe. Do mesmo modo, as conquistas reais já feitas fortaleceram as forças revolucionárias e a energia do proletariado na resistência à ameaça inimiga a tais conquistas. A organização enérgica da produção em princípios socialistas, por um lado, deve fortalecer a base econômica do proletariado enquanto força econômica, e, de outro lado, ser-lhe uma nova escola de organização e atividade. Finalmente, a preservação da ligação com o movimento proletário internacional e grão-russo também fortalece a atividade de classe do proletariado e preserva-o da desmoralização e exaustão. Mas, como resultado das consequências diretas e imediatas da paz, a redução da atividade de classe e a crescente degradação do proletariado nos principais centros revolucionários, como resultado da crescente aproximação entre o proletariado e os camponeses pobres (que, após a assinatura da paz sob a pressão de suas demandas e influência, deve tornar-se um baluarte do poder soviético), surge a forte possibilidade de uma tendência ao desvio por parte da maioria do partido comunista e do poder soviético por ele liderado rumo a uma política pequeno-burguesa de novo tipo.
Caso tal tendência se materialize, a classe trabalhadora cessará de ser o líder e o guia da revolução socialista, inspirando o campesinato pobre a destruir o domínio do capital financeiro e dos terratenentes. Tornar-se-á uma força dissipada nas fileiras das massas pequeno-burguesas semiproletárias, que veem como sua tarefa não a luta proletária em aliança com o proletariado da Europa Ocidental pela derrubada do sistema capitalista, mas a defesa da pátria do pequeno proprietário contra a pressão do imperialismo. Tal meta também é atingível por meio de compromissos com este último. Numa eventual rejeição de uma política proletária ativa, as conquistas da revolução dos trabalhadores e camponeses começará a coagular-se num sistema de capitalismo de estado e relações econômicas pequeno-burguesas. A “defesa da pátria socialista” provar-se-á, na realidade, ser a defesa de uma pátria pequeno-burguesa submissa à influência do capital internacional.
10. O partido do proletariado é confrontado com a escolha entre dois caminhos. Um é o caminho da preservação e fortalecimento da parte do Estado soviético que foi deixada inteira, que no presente, do ponto de vista econômico e considerando a natureza parcial do processo revolucionário, apenas um órgão de transição para o socialismo (tendo em vista a nacionalização incompleta dos bancos, uma forma capitalista de financiamento de empresas, o controle da pequena propriedade e da economia de pequena escala no campo e os esforços dos camponeses de resolver a questão da terra por meio da divisão das terras). Mas do ponto de vista político este caminho pode, sob a capa da ditadura do proletariado apoiada pelos camponeses pobres, transformar-se num instrumento do domínio político das massas semiproletárias pequeno-burgueses e provar-se apenas uma etapa transitória para o completo domínio do capital financeiro.
Tal caminho – em palavras – pode ser justificado pelo esforço de salvar a todo custo as forças revolucionárias do poder soviético, mesmo que apenas na “Grande Rússia”, para a revolução internacional. Em tal caso, todos os esforços devem ser dirigidos ao fortalecimento do desenvolvimento das forças rumo à “construção orgânica”, ao mesmo tempo em que se rejeita o contínuo esmagamento das relações capitalistas de produção e mesmo se faz avançar sua restauração parcial.
11. O possível programa econômico e político que se sugere caso se siga de forma consistente tal caminho, partes do qual pode ser avançado pela ala direita do partido, e parcialmente também pela maioria partidária, é tal como se segue.
Na política externa, a tática agressiva de desmascaramento do imperialismo será substituída pelas manobras diplomáticas por parte do Estado russo em meio às potências imperialistas. A república soviética não apenas firmará com elas acordos comerciais, mas poderá também forjar ligações orgânicas tanto econômicas quanto políticas, fazendo uso de seu apoio militar e político (acordos sobre assistência por instrutores militares, possivelmente a contratação de dívidas com a admissão do controle interno no país, acordos sobre iniciativas políticas conjuntas etc.).
Uma política econômica correspondente a tal curso deve ser desenvolvida na direção de acordos com os vigaristas capitalistas, tanto os “nativos” quanto os internacionais que estão por suas costas, e com representantes dos “grandes” estratos no campo (“cooperadores”). A desnacionalização dos bancos, mesmo de forma sub-reptícia, está logicamente conectada a tais acordos. Pode ser feita por meio da formação de bancos especiais (semiprivados, semiestatais) para ramos individuais da indústria (os estatutos do banco de moagem de farinha já foi aprovado), por meio da preservação da extraterritorialidade dos assim chamados bancos “cooperativos”, e por meio da transição para um sistema de contabilidade pública centralizado e do fortalecimento do crédito capitalista nas formas estatal e semiestatal.
No lugar de uma transição das nacionalizações parciais para a socialização generalizada da grande indústria, acordos com os “capitães da indústria” devem levar à formação de grandes trustes por eles liderados, compreendendo os ramos básicos da indústria, que podem, com apoio externo, tomar a forma de empresas capitalistas. Um tal sistema de organização da produção dá a base para a evolução rumo a um capitalismo de Estado, e é uma etapa de transição rumo a ele.
Uma política de direção empresarial com base no princípio da ampla participação de capitalistas e da centralização semiburocrática segue-se naturalmente com uma política trabalhista direcionada ao estabelecimento entre os trabalhadores de uma disciplina disfarçada de “autodisciplina”, com a introdução da responsabilidade no trabalho para os trabalhadores (um projeto de tal natureza tem sido defendido pelos bolcheviques de direita), trabalho por peças, aumento da jornada diária de trabalho etc.
A forma do controle estatal das empresas deve desenvolver-se na direção da centralização burocrática, do domínio por vários comissários, da privação da independência dos sovietes e da rejeição prática do tipo de “Estado-comuna” controlado desde baixo. Numerosos fatos mostram que uma tendência definitiva nesta direção já está tomando forma (decreto sobre o controle das ferrovias, os artigos de [Mártin Ivânovich] Latsis[4] etc.).
No campo da política militar deve aparecer, e já se pode notar, um desvio rumo ao restabelecimento do serviço militar em escala nacional (incluindo a burguesia) (apelo de Trótski e [Nikolai Ilích] Podvoisky[5]). Com a formação de quadros militares para cujo treino e liderança oficiais são necessários, a tarefa da criação de um corpo oficial proletário por meio da ampla e planejada organização de cursos e escolas apropriados está se perdendo de vista. Deste modo, na prática, o velho corpo de oficiais e a estrutura de comando dos generais czaristas está a ser reconstituída.
Sob a capa da agitação “pela defesa da pátria socialista”, tais condições significam a introdução da propaganda pela pátria pequeno-burguesa e pela guerra nacional contra os imperialistas alemães.
12. A trilha acima descrita, vista como um todo, e igualmente as tendências ao desvio ao longo desta trilha, são perigosas ao extremo para a causa do proletariado russo e internacional. Tal trilha fortalece a separação, iniciada pela paz de Brest, da república soviética “grã-russa” de todo o movimento revolucionário pan-russo e internacional, ligando-o aos quadros de um Estado-nação com uma economia de transição e uma ordem política pequeno-burguesa.
Na política externa – com a inevitável fraqueza tanto da diplomacia soviética quanto da influência soviética na arena da luta imperialista internacional – ela sujeita a república soviética a ligações imperialistas, separando-a dos laços com o proletariado revolucionário de todos os países. Ela enfraquece ainda mais o significado revolucionário internacional do poder soviético e da revolução russa.
Dentro do país, ela fortalecerá a influência econômica e política da burguesia russa e internacional, e consequentemente também as forças da contrarrevolução e dos grupos da intelligentsia que sabotam o poder soviético. Com o declínio mundial das forças produtivas, concessões à burguesia não podem criar um crescimento rápido na economia nacional de um modo capitalista. Ao mesmo tempo, elas removerão a possibilidade de reter a maior parte do uso planejado e mais econômico dos meios de produção restantes, concebível apenas com a mais decisiva socialização.
A introdução da disciplina do trabalho em conexão com a restauração da liderança capitalista na produção não pode, essencialmente, aumentar a produtividade do trabalho, mas diminuirá a autonomia de classe, a atividade e o grau de organização do proletariado. Ela ameaça a escravização da classe trabalhadora, e provoca a insatisfação tanto nos setores atrasados quanto na vanguarda do proletariado. Para implementar um tal sistema com o agudo ódio de classe prevalecendo em meio à classe trabalhadora contra os “capitalistas e sabotadores”, o partido comunista teria de encontrar seu apoio na pequena burguesia contra os trabalhadores, e daí em diante colocar um fim a si próprio enquanto partido do proletariado.
A centralização burocrática da república soviética e os acordos de bastidores com os vigaristas da burguesia e da pequena-burguesia podem também promover o declínio na atividade de classe e na consciência do proletariado, e o estranhamento entre os trabalhadores e o partido.
Tentativas de restaurar a conscrição militar generalizada, na medida em que não estejam condenadas ao fracasso, podem em essência levar ao armamento e organização das forças contrarrevolucionárias da burguesia e da pequena-burguesia. Isto é ainda mais claro no que diz respeito à restauração do velho oficialato e o retorno dos generais czaristas ao poder e ao comando, na medida em que seu uso não é acompanhado pelos esforços mais enérgicos de criação de quadros proletários de um oficialato revolucionário e o estabelecimento de um controle vigilante sobre o corpo de comando czarista no período transicional. Forças armadas “nacionais” (e não de classe) encabeçadas pelos velhos generais não podem ser penetradas por um espírito revolucionário de classe, degenerarão inevitavelmente numa soldadesca degradada e não pode constituir um apoio para a intervenção armada do proletariado russo na revolução internacional.
A linha política delineada acima pode fortalecer a influência das forças contrarrevolucionárias internas e externas na Rússia, destruir a capacidade revolucionária da classe trabalhadora e, ao separar a revolução russa da revolução internacional, ter efeitos perniciosos sobre ambas.
13. Comunistas proletários consideram essencial um curso político diferente. Não um curso de conservação de um oásis soviético no norte da Rússia por meio de concessões que o transformem num Estado pequeno-burguês. Não uma transição para o “trabalho orgânico interno” com a convicção de que o “período agudo” da guerra civil se encerrou.
O período agudo da guerra civil se encerrou apenas no sentido de que a necessidade esmagadora da aplicação das mais drásticas medidas físicas de violência revolucionária já não se faz mais presente. Uma vez que a burguesia esteja esmagada e não seja mais capaz de luta aberta, os métodos “militares” são sumamente inapropriados. Mas a agudeza da contradição de classe entre o proletariado e a burguesia não pode diminuir; como antes, a atitude do proletariado frente a burguesia é de total negação, é a de sua aniquilação enquanto classe. O término do período crucial da guerra civil não pode significar a possibilidade de acordo com as forças remanescentes da burguesia, e a “construção orgânica” do socialismo, que é, sem dúvida, a tarefa premente do momento, pode ser conseguida apenas pelos esforços de todo o proletariado com a participação de técnicos especializados e administradores qualificados, mas não por qualquer tipo de colaboração com os “elementos qualificados” enquanto tal.
A revolução dos trabalhadores não pode “salvar-se a si própria” pela saída da senda da revolução internacional, ao evitar constantemente a batalha e ao recuar diante da carnificina do capital internacional, ao fazer concessões ao “capital nativo”.
Deste ponto de vista, três coisas são necessárias: uma decidida política internacionalista e classista, combinando a propaganda internacional revolucionária por palavras e fatos, e o fortalecimento das ligações orgânicas com o socialismo internacional (e não com a burguesia internacional); resistência decidida contra toda interferência imperialista em assuntos internos da república soviética; recusa de acordos políticos e militares que façam da república soviética um joguete nas mãos dos campos imperialistas.
Na política econômica internacional, apenas acordos comerciais, empréstimos e o suprimento de forças técnicas são permissíveis – sem a sujeição do capital russo à liderança e controle do capital financeiro estrangeiro.
É necessário completar a nacionalização dos bancos, tanto no sentido extensivo (socialização dos bancos “cooperativos” restantes, ainda imunes) e no sentido intensivo (organização da contabilidade social centralizada e destruição das formas capitalistas de financiamento). A nacionalização dos bancos deve ser combinada com a socialização da produção industrial e a remoção completa das reminiscências capitalistas e feudais nas relações de produção que ainda entravam sua organização ampla e planejada. O controle das empresas deve ser transferido a corpos mistos compostos por trabalhadores e pessoal técnico, sob o controle e liderança dos conselhos econômicos locais. Toda a vida econômica deve estar sujeita à influência organizada de tais conselhos, eleitos pelos trabalhadores sem a participação dos “elementos qualificados”, mas com a participação dos sindicatos do pessoal técnico e de serviço das empresas.
(Os seguintes pontos são necessários:)
Não uma capitulação à burguesia e a seus patetas intelectuais da pequena-burguesia, mas derrota da burguesia e o esmagamento final da sabotagem.
A liquidação final da imprensa contrarrevolucionária e das organizações burguesas contrarrevolucionárias.
A introdução da conscrição para o trabalho dos especialistas qualificados e dos intelectuais, a organização de comunas de consumo, a limitação do consumo das classes prósperas e o confisco de sua propriedade excedente.
A organização, nos campos, de um ataque dos camponeses pobres aos ricos, o desenvolvimento em larga escala da agricultura socializada e o apoio a formas de amanho pelos camponeses pobres que sejam transitórias para a agricultura socializada.
A seleção de certos bastiões, certos centros sadios de organização da produção em certos lugares (ex., os Urais, a Sibéria Ocidental etc.) e o direcionamento até eles de recursos técnicos, alimentares e financeiros em larga escala (para rápido incremento na produtividade) – e não de acordo com rações de fome como se tem feito até o momento.
Não a introdução de trabalho por peça e do aumento da jornada diária de trabalho, que em circunstâncias de desemprego crescente carecem de sentido, mas a introdução, pelos sindicatos e conselhos econômicos locais, de padrões de fabricação e redução da jornada de trabalho diária, com o aumento do número de turnos e ampla organização do trabalho social produtivo.
A concessão de ampla independência aos sovietes locais, e não à checagem de suas atividades por comissários enviados pelo poder central. O poder soviético e o partido do proletariado devem buscar apoio na autonomia de classe das amplas massas, para cujo desenvolvimento todos os esforços devem ser direcionados.
Quanto à organização das formas armadas, as questões seguintes se fazem necessárias: a criação de um quadro de instrutores e comandantes de unidades rapidamente mobilizáveis no seio dos trabalhadores das regiões evacuadas que permaneçam sem ocupação produtiva; o uso de oficiais czaristas para treinar tais instrutores; a criação de um oficialato de reserva proletário e revolucionário, não intelectual e burguês; o treinamento apenas de trabalhadores e camponeses pobres em assuntos militares; a organização de real controle sobre os generais czaristas e a preparação de um estado-maior entre os camaradas do partido que já tenham experiência militar, mas encontram-se até o momento sem treinamento teórico.
14. Em sua atitude prática quanto à guerra civil, os comunistas proletários são contrários à ruptura da paz pela organização de surtidas guerrilheiras nas partes do fronte onde a paz esteja sendo observada. Isto significaria uma ação desorganizada por uma minoria de trabalhadores na ausência de apoio de massa. Mas são favoráveis a toda forma de preparativos e apoio a levantes na retaguarda nos territórios ocupados, à mais enérgica luta nos lugares onde a ação militar siga em curso, à formação pelas organizações partidárias de unidades guerrilheiras a serem enviadas às linhas de combate.
15. Os comunistas proletários definem sua atitude frente ao partido bolchevique como a posição da ala esquerda do partido e da vanguarda do proletariado russo, mantendo plena unidade com o partido na medida em que a política da maioria não cause uma divisão intransponível nas fileiras do próprio proletariado. Definem sua atitude frente ao poder soviético como uma posição de apoio universal a tal poder em caso de necessidade – por meio da participação nele, na medida em que a ratificação da paz removeu da agenda a questão da responsabilidade por aquela decisão e criou uma nova posição objetiva. Tal participação é possível apenas na base de um programa político definido, que previna o desvio do poder soviético e da maioria partidária no caminho inelutável da política pequeno-burguesa. Na eventualidade de um tal desvio, a ala esquerda do partido terá de se adotar a posição de uma ativa e responsável oposição proletária.
Kommunist, nº 1, 20 abril 1918.
Traduzido do russo para o inglês por Ian Fraser com base em Lenin, Sochineniya, (3ª ed.), vol XXII, pp. 561-571), publicado originalmente na revista Critique (Glasgow, 1977) e disponível aqui; traduzido e revisado para o português pelo Passa Palavra como parte do esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação.
Notas originais da introdução
[a] Lenin, Sochineniya (“Obras”), 3ª ed., vol. 22, p.608. A história da posição de Trótski é extensivamente tratada na sua biografia escrita por Deutscher: The Prophet Armed: Trotsky 1879-1921 (London, O.U.P., 1954) cap. XI. Para mais material em inglês ver: E. H. Carr, The Bolshevik Revolution 1917-1923 vol. 3, (London, Macmillan, 1953) caps. 21 e 22; e R. V. Daniels, The Conscience of the Revolution, (New York, Harvard, 1960) cap. 3.
[b] Lenin, Soch. 3ª ed., vol. 22, pp.610-612.
[c] Citado por Daniels, op. cit., p. 84 com base no jornal Kommunist nº 4, maio 1918.
[d] Lenin, Soch. 3ª ed., vol. 23, p. 17.
[e] Carr, op cit., pp. 64-66.
[f] N. Osinsky, Stroitelstvo Sotsializma (“A construção do socialismo”), Moscou, 1918, pp. 35-36.
Notas de tradução
[1] Até onde foi possível pesquisar, tudo indica que esta é igualmente a primeira tradução deste material para a língua portuguesa.
[2] Segundo o texto do tratado, a Estônia, a Letônia e a Lituânia se tornariam estados independentes sob a tutela alemã; a província de Kars, no sul do Cáucaso, seria cedida ao Império Otomano; a independência da Ucrânia seria reconhecida; e a Rússia pagaria à Alemanha seis bilhões de marcos de ouro a título de indenizações de guerra. Mesmo as pesadas condições impostas pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial no Tratado de Versalhes foram por eles consideradas mais leves que as da paz de Brest-Litovsk.
[3] Haidamaques: grupos paramilitares atuantes em áreas da República das Duas Nações hoje integradas à Ucrânia, formados por cossacos desvinculados das hostes tradicionais (ou seja, que não se haviam sujeitado à autoridade do rei polonês, do grão-duque lituano ou do czar russo), por camponeses livres e por rebeldes. No século XVIII, lideraram as haidamachchyna (“rebeliões haidamaques”) de 1734, 1750 e a maior delas, a Koliyivshchyna (“Revolta dos Impaladores”) de 1768, onde os massacres contra nobres, judeus, jesuítas e demais católicos nos territórios sob seu controle deram-lhes terrível reputação. O último levante haidamaque de que se tem notícia foi o liderado por Ustym Karmaliuk, cujo bando armado atacava nobres e comboios de mercadores e terratenentes entre 1812 e 1835 para distribuir o saque entre os pobres – garantindo-lhe assim enorme suporte popular. Desde então, a depender de quem a emprega, a palavra pode ter a conotação de “bandido”, “fora-da-lei”, “vagabundo”, “ladrão” e “salteador”, de um lado, e de outro “rebelde”, “insurgente”, “guerrilheiro” e “combatente pela liberdade”, enquadrando os haidamaques na teoria dos bandidos sociais de Eric Hobsbawn.
[4] Martin Ivânovich Lācis, ou Latsis (1888-1938): revolucionário letão, bolchevique desde 1905, veterano das revoluções russas de 1905 e 1917, foi membro do Comitê Militar Revolucionário (1917-1918), do Collegium da Comissão de Emergência Pan-Russa (1918-1921) e presidente da Comissão de Emergência da Ucrânia (1919). As Comissões de Emergência (chrezvychaynaya komissiya) ficaram conhecidas por suas iniciais no alfabeto cirílico: ЧК, ou tch-ka, e foram as infames sucessoras da polícia secreta czarista durante os primeiros anos do regime soviético. Latsis foi também diretor da Academia Russa de Economia Plekhanov entre 1932 e 1937 e membro do Comitê Executivo Central Pan-Russo (Vserossiysky Centralny Ispolnitelny Komitet – VtsIK). Defendeu a violência irrestrita contra os inimigos de classe em seu livro Dois anos de luta no fronte interior (Dva goda borby na vnutrennom. Moscou: Gos. Izd-vo, 1920), chegando a estabelecer durante seu período à frente da Cheka ucraniana em 1918 que as sentenças deveriam ser determinadas não pela culpa ou inocência do acusado, mas por sua origem de classe: “A primeira questão a se perguntar ao acusado é a que classe pertence, qual sua origem, educação, profissão. Tais questões devem determinar seu destino. Esta é a essência do Terror Vermelho”. Curiosamente, foi acusado em novembro de 1937 de pertencer a uma organização “nacionalista e contrarrevolucionária” pelo sucessor da Cheka, o Comissariado do Povo para Assuntos Internos (Narodnyi Komissariat Vnutrennikh Del – NKVD), preso e fuzilado em 1938.
[5] Nikolai Ilích Podvoisky (1880-1948): revolucionário russo, veterano da revolução russa de 1905 (onde trabalhou na agitação e mobilização dos ferroviários), alternou desde então até o início de 1917, quando foi finalmente preso, a militância clandestina e tratamentos de saúde para curar feridas e doenças conseguidas nas atividades clandestinas. Libertado com o advento da revolução de fevereiro, retornou a Petrogrado, onde foi eleito para o soviete local, onde defendia a oposição ao governo provisório antes mesmo do retorno de Lênin à Rússia e da publicação de suas famosas Teses de Abril. Eleito para a Organização Militar bolchevique, passou a fazer propaganda entre os soldados; foi em seguida eleito para o Comitê Militar Revolucionário, onde fez parte da troika que coordenou a tomada do Palácio de Inverno que marcou o início da segunda fase da revolução russa. Logo após a tomada do poder pelos bolcheviques, foi até março de 1918 o primeiro Comissário do Povo para a Defesa, quando opôs-se a Trótski quanto à formação de um conselho consultivo para o Exército Vermelho composto por antigos oficiais do exército czarista. Serviu em vários cargos militares durante a Guerra Civil, com pouca distinção. Do final da década de 1920 até sua aposentadoria em 1935 aos 55 anos, trabalhou no Instituto Marx-Engels-Lenin.