Ao teorizar a autonomia da classe trabalhadora frente aos ciclos econômicos e, posteriormente, aos sindicatos, os operaístas abriram caminho para o autonomismo italiano dos anos 1970. Por Manolo

Tomei estas notas há alguns anos para uma oficina sobre história do movimento operário junto a alguns companheiros de várias correntes políticas interessados, graças às mobilizações de junho de 2013, na história do autonomismo. Os afazeres e a exploração nossa de cada dia não nos permitiram avançar além da fase operaísta e chegar no autonomismo dos anos 1970, mas as notas permaneceram, e creio que mereçam ser circuladas.

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A Itália do pós-guerra viveu um processo de industrialização acelerada, que modificou profundamente não apenas a estrutura produtiva e a economia italianas, mas a própria composição da classe trabalhadora, graças aos enormes fluxos migratórios do Sul italiano de economia agropastoril para o Norte italiano que expandia rapidamente o parque industrial já existente. Criou-se aí um problema de representação, pois a base da Confederazione Generale Italiana del Lavoro (CGIL, “Confederação Geral Italiana do Trabalho”) era composta por trabalhadores qualificados, com alto nível médio de instrução e grande nível de preparação política[1]; com a chegada dos migrantes, a classe trabalhadora passou a ser formada não mais apenas por trabalhadores qualificados e bem-formados em seus respectivos ofícios, mas por ex-camponeses recém-chegados às cidades do Norte, sem qualificações técnicas para o trabalho industrial qualificado, para quem a vida urbana tinha muito de novo e o trabalho quase absolutamente braçal e de gestual rigidamente controlado nas fábricas tinha muito de estranho[2]. A explosão demográfica, todavia, não foi acompanhada por qualquer aumento da infraestrutura das cidades (saúde, educação, transporte, habitação etc.), relegando estes novos urbanitas a condições de vida bastante precárias – e à necessidade de lutar duramente para conquistar não apenas aumentos salariais, mas qualificação e melhorias nas condições de vida.

Para tentar entender, ainda em nível puramente teórico, as mudanças no capitalismo na Itália e as transformações da classe trabalhadora italiana, um grupo de “heréticos” de esquerda oriundos das vanguardas sindicais da FIOM-CGIL de Turim, do Partido Socialista Italiano (PSI) e do Partido Comunista Italiano (PCI), reunidos em torno de Raniero Panzieri (1921-1964) e Mario Tronti (n. 1931), a quem rapidamente se uniram Antonio Negri (n. 1933), Alberto Asor Rosa (n. 1933), Romano Alquati (1935-2010) e outros, resolveu fundar em 1961 a revista Quaderni Rossi (“Cadernos vermelhos”). O grupo manteve-se umbilicalmente ligado às lutas do movimento operário, em especial dos sindicatos metalúrgicos, apesar de as organizações de onde vieram penderem cada vez mais para conciliações com a direita e o centro.

Em julho de 1962, entretanto, após as lutas na fábrica da FIAT em Mirafiori e da revolta da Piazza Statuto (Turim), durante os quais a sede de um sindicato ligado à Unione Italiana del Lavoro (UIL, “União Italiana do Trabalho”, central sindical social-democrata) foi atacada pelos grevistas, surge uma divergência interna na revista. Uma facção defendia que estas lutas não eram capazes de alargar-se espontaneamente nem de apresentar uma alternativa política, sendo necessário, portanto, formar uma vanguarda revolucionária para trabalho propagandístico a longo prazo dentro do movimento sindical. Outra facção, diametralmente oposta, via na derrota sindical um salto político essencial, caracterizado por uma difusão maciça e espontânea da luta e da violência, sendo a derrota sindical uma alternativa tanto ao reformismo do capital quando ao reformismo do movimento operário, trazendo como consequência político-organizacional a participação permanente e imediata nas lutas operárias, dentro e fora do movimento sindical. Outro ponto de disputa entre as duas facções foi o método de atuação junto ao movimento operário: embora ambas praticassem a enquete operária – pesquisa sociológica junto aos trabalhadores voltada para a compreensão da composição da classe – uma defendia que os próprios trabalhadores participassem ativamente da pesquisa enquanto pesquisadores, enquanto outra defendia que o papel dos trabalhadores seria apenas de destinatários da pesquisa.

Ainda em 1963 as duas alas dos Quaderni Rossi elaboraram um número especial da revista dedicado à crônica das lutas operárias, verificando, a partir de depoimentos de trabalhadores, que o sindicato nada mais era que um “instrumento dócil da programação capitalista”, e promovendo, a partir de então, a defesa da autonomia operária como a recusa da planificação capitalista, que concentra o poder político do capital.

Não obstante esta tentativa de encontrar um terreno comum de diálogo entre as duas correntes, entre o verão e o outono de 1963 uma das facções saiu da revista para fundar o jornal Classe Operaia(“Classe Operária”), dedicado à crônica e crítica das formas mais radicais da luta operária por fora dos sindicatos (greves selvagens, não-colaboração, passividade, sabotagem, absenteísmo etc.), na tentativa de compreender as novas formas de combate contra o planejamento capitalista e formar sua síntese. Enquanto o conteúdo original da autonomia operária proposto pelo grupo remanescente dos Quaderni Rossi era pautado pela autonomia das reivindicações operárias frente aos ciclos econômicos – vigia então o “gatilho da produtividade”, ou seja, a vinculação dos aumentos salariais a aumentos de produtividade[3] – os eventos da Piazza Statuto levaram o grupo de Classe Operaia a alargar o conteúdo da autonomia operária para compreender também – e prematuramente[4] – a autonomia frente ao sindicato.

A integração dos Quaderni Rossi e de Classe Operaia com o movimento operário italiano foi tão forte que chegaram a sintetizar, cada qual a seu modo, a partir das lutas dos trabalhadores e de intervenções na Conferência dos Operários Comunistas (1964) e no XI Congresso do PCI (1966), um programa de reivindicações posto à prova nas negociações salariais de 1964-1965. Tratava-se, segundo os Quaderni Rossi, de lutar por aumentos iguais para todos e independentemente dos aumentos de produtividade; de 40 horas de trabalho pagas por 48; da eliminação das categorias; e da inclusão do tempo de transporte para o trabalho na jornada de trabalho[5]. Já Classe Operaia manteve a linha de promover reflexões inovadoras sobre classe, partido e organização a partir das lutas mais radicais e extra-sindicais, embora concordasse em parte com o programa proposto pelos Quaderni Rossi[6].

O programa proposto por ambas as publicações foi fragorosamente derrotado, inclusive nas negociações salariais de 1966.

Ocorre que, já antes das negociações salariais de 1966, Classe Operaia encontrava-se num momento de crise: incapaz de encontrar sínteses políticas adequadas às lutas que divulgavam, dividido em inúmeras facções (cada qual com sua própria proposta de solução para os problemas de tática política) e recusando-se a transformar-se, ele mesmo, num novo partido, o grupo optou pela autodissolução.

Os Quaderni Rossi, que sobreviveram por dois anos após a morte prematura de Raniero Panzieri em 1964, pararam de circular também em 1966. Da permanência de certos núcleos de leitores e colaboradores destas publicações surgiram organizações como Potere Operaio(“Poder Operário”), Il Manifesto(“O Manifesto”) e Lotta Continua(“Luta Contínua”), que deram o salto do operaísmo para a autonomia, principal forma de luta dos movimentos sociais italianos na década de 1970[7].

Ao teorizar a autonomia da classe trabalhadora frente aos ciclos econômicos e, posteriormente, aos sindicatos, os operaístas abriram caminho para o autonomismo italiano dos anos 1970. Mas, apesar das continuidades e desenvolvimentos, nosso assunto se encerra por aqui; o autonomismo será assunto nosso em outro momento.

Notas

[1] CANEVACCI, Massimo. “A experiência da autonomia operária”. Em: Desvios, nº 4, jul. 1985, p. 126.

[2] Gian Primo Cella demonstrou como a força de trabalho industrial italiana, especialmente na Lombardia e em Milão, foi fortemente influenciada pela chegada às cidades das levas de migrantes do Sul, e tirou conclusões: “O aumento da categoria de especialistas parece indicar que existem grupos minoritários que se aproveitam da modernização das instalações e das técnicas de produção; por outro lado, outras variações indicam como se vai delineando um ‘grupo de trabalho semi-qualificado’ que compreende as categorias tradicionais de operários comuns e qualificados [do direito trabalhista italiano]. (…) Estas transformações têm aplastado objetivamente a hierarquia operária, e mesmo o trabalho de colarinho branco, para um grupo majoritário de trabalhadores. A possibilidade de ‘carreira’ ou desapareceu, ou tornou-se puramente formal. Continuar a falar em termos de categorias tradicionais de qualificação [tal como existentes no direito trabalhista italiano] impede a compreensão da essência destas mudanças e da definição de uma série de exigências suscetíveis de compensação. O nascimento do mercado de massa, a reorganização do trabalho no sentido de acentuar os aspectos quantitativos do esforço operário, mandaram para os ares as condições de vantagem que sustentavam o pacto histórico sobre o trabalho qualificado. (…) Dos trabalhadores (da maior parte dos trabalhadores) se explora hoje menos as habilidades adquiridas e cada vez mais as atitudes primárias, não consideradas profissionalmente, como a resistência psíquica, os reflexos, a capacidade de coordenação psicomotora. É o uso da força de trabalho típico da fase de mecanização. Se somarmos a isso o fato de que, não coincidentemente, o movimento sindical visa a uma representação de massa, veremos a vitalidade do debate dentro do próprio movimento. Das contradições estruturais e da dinâmica da consciência política, nasce um modo novo de considerar o homem no trabalho” (Divisione del lavoro e iniziativa operaia. Bari: De Donato, 1972, pp. 80-84).

[3] O “gatilho da produtividade” que vincula aumentos salariais a aumentos na produtividade, ressuscitado pelo governo federal brasileiro para indexar os aumentos do salário mínimo, é uma estratégia capitalista com bastante estrada rodada, como se vê.

[4] Apesar de os incidentes da Piazza Statuto haverem demonstrado a recusa dos trabalhadores a submeter-se pacificamente a acordos sindicais que lhes fossem prejudiciais, é apenas em 1968 que esta recusa se estenderá à maior parte dos trabalhadores italianos.

[5] BOUTANG, Yann Moulier. “Prefácio à edição francesa”. Em: TRONTI, Mario. Operários e capital. Porto: Afrontamento, 1977, p. 360.

[6] Parte do material publicado em Classe Operaia por Mario Tronti, seu editor e principal organizador, está reunido no livro Operários e capital (Porto: Afrontamento, 1977). Embora Antonio Negri participasse da equipe de redação de Classe Operaia, seu material publicado no jornal e outros escritos políticos começam a ser publicados tardiamente, com Marx sul ciclo e la crisi (Firenze: La Nuova Italia, 1968); Negri só passou a influenciar mais profundamente a extrema-esquerda italiana em meados da década de 1970.

[7] Para maiores informações sobre o período, cf. BOUTANG, Yann Moulier. “Prefácio à edição francesa”. Em: TRONTI, Mario. Operários e capital. Porto: Afrontamento, 1977, pp. 355-395; CANEVACCI, Massimo. “A experiência da autonomia operária”. Em: Desvios, nº 4, jul. 1985, pp. 124-133, e nº 5, mar. 1986, pp. 126-134.

1 COMENTÁRIO

  1. Opa,
    É possível encontrar essa referência na internet: CANEVACCI, Massimo. “A experiência da autonomia operária”?
    Não consegui encontrar. Se alguém tiver disponibiliza aí. Valeu

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